VIAGEM - COROA DE SONETOS
VIAGEM
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COROA DE SONETOS
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Laurinda Rodrigues e Maria João Brito de Sousa
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1
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Desço ao fundo de mim, ao inconsciente
onde dormem vivências esquecidas.
Sei que naquilo que sou já fui diferente
e que hei-de ser diferente noutras vidas.
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Sou toda um Uni-verso entrelaçado
de peças materiais que vão expandindo.
Fico parada a olhar o céu alado,
sentindo uma pulsão que está abrindo.
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Meu outro Ser perdurará na luz
que me envolveu na terra feita em cruz
que não pode fugir ao seu destino...
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Mas é aqui e agora que me afirmo:
mesmo que o corpo caia no abismo
a alma cantará, convosco, um Hino.
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Laurinda Rodrigues
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"A alma cantará, convosco, um hino"
Até depois da vida anoitecer
Enquanto se souber que fui menino,
Enquanto alguém lembrar que fui mulher
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Na memória persiste o tal destino
Que bem longo será se alguém me ler;
Assim o vejo há muito, assim defino
Viagem, vida e espanto de viver.
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De mim, da minha própria identidade,
Terá sobrado o verso que se evade
À decomposição inexorável
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Do que foi o meu corpo passageiro;
Cigarro aceso à beira de um cinzeiro
De porcelana breve e descartável.
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Maria João Brito de Sousa - 19.10.2020 - 13.43h
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"De porcelana breve e descartável"
ouço cair estilhaços pelo chão
e um riso perverso insaciável
atravessou o espaço da Razão.
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Talvez seja o diabo em sintonia
com a nossa condição de ser mortais
ele é sempre julgado à revelia
no tribunal dos loucos amorais.
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Mas não se iludam! Esse demo existe
bem no fundo de nós, onde persiste
uma história de erros, frustrações...
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Afinal, a loucura pouco importa
se é, com ela, que o poeta exorta
o mundo turbulento das paixões.
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Laurinda Rodrigues
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"O mundo turbulento das paixões"
Faz do Olimpo um nada, uma sequela;
No palco dos heróis e dos vilões
Desta realidade paralela
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Há gigantes que fogem dos anões
E a Fera é perseguida pela Bela
Enquanto os anjos brincam com dragões
E a bruxa se transmuta em Cinderela.
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No mais fundo de mim, se o demo existe,
Procuro descobrir-lhe o vulto triste
Mas não lhe encontro rasto e nem o faro
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Me dá qualquer sinal de outra presença
Que de mim mesma não seja pertença;
Será a sua ausência um caso raro?
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Maria João Brito de Sousa - 19.11.2020 - 16.22 h
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"Será a sua ausência um caso raro?"
ou o transporte ao Olimpo é de avião
e não viu lá de cima o exemplo claro
da luta do gigante com o anão?
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É preciso esperar pousar na pista
sem muita turbulência na aterragem
para que o piloto hábil lhe resista
sem medo de entrar em derrapagem.
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Porque isto de emoções tão reprimidas
que fogem ao arbítrio do Rei Midas
na decisão de ser um demo ou anjo
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é, mesmo, o velho tema do destino
(porque nasceu mulher e não menino)
porque toca piano em vez de banjo?
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Laurinda Rodrigues
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"Porque toca piano em vez de banjo"
Quem no trompete ou na guitarra é ás?
Quem lhe imporá tamanho desarranjo
Ao afastá-lo do que mais lhe apraz?
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Nestas perguntas, mais tempo não esbanjo;
Não quero incomodar, sendo tenaz,
Quem disto saiba mais que quanto abranjo
E, em coisas destas, nunca fui sagaz...
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Às emoções, porém, nunca reprimo
Que a toda a hora as rondo, sondo e esgrimo
Com grande habilidade e destemor
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E aos temas nunca escolho. O meu escolhido
É sempre um som que aflora ao meu ouvido
E me enfeitiça e se me sabe impor.
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Maria João Brito de Sousa - 20.11.2020 - 11.18h
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"E me enfeitiça e se me sabe impor"
como uma vaga que cresce sem aviso
alerta o marinheiro para compor
o sentido que o leva ao paraíso...
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Ele não está preparado mas aceita
deixar a onda desfazer na praia...
Não tem sabedoria nem receita:
o instrumento toca aquilo que ensaia.
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Mas não esqueceu o tema desta vida:
"em frente camarada" destemida!
não há razão que te perturbe o Ser.
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Músico ou poeta ou marinheiro
o canto das estrelas cabe inteiro
na mutação que vai acontecer.
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Laurinda Rodrigues
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"Na mutação que vai acontecer"
E vai acontecendo a cada instante
Do que a mãe-tecelã está a tecer
No seu velho tear desconcertante.
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Decerto nos irá surpreender
A criatividade galopante
Que esse velho tear demonstra ter
Na sua actividade que é constante.
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Viaja a tecelã no fio que fia
E viajamos nós em sintonia
Com trama fiada e por fiar,
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Que é porfiando que tudo se cria
E a trama é tal qual uma melodia
Quer nasça de um piano ou de um tear.
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Maria João Brito de Sousa - 20.11.2020 - 15.02h
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"Quer nasça de um piano ou de um tear",
a mão, que tece, é sempre a mão que cria,
na inspiração do eterno respirar
de uma alma tremendo em fantasia.
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Fantasia de fada ou de duende,
de uma ave canora ou imitação...
Aquele, que comunica, fogo acende
seja de amor sublime ou perversão.
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Não é ardil nem sonho camuflado
de palavras subtis de um Ego inflado
pela competição de seus iguais...
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O papagaio repete aquilo que ouviu
mas, se for transcendente, conseguiu
despertar o segredo dos mortais.
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Laurinda Rodrigues
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"Despertar o segredo dos mortais"
É dar-lhes um lugar nesta viagem
Na qual sempre há lugar pra muitos mais,
Ainda que alguns pensem ser miragem
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Viajar-se nas lonjuras dos murais,
Nunca tentando agir como outros agem,
Perdendo o Norte aos pontos cardeais
E levando a Garcia outra mensagem.
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O guia é sempre um ponto de partida
E nem sempre a viagem concebida
Naufraga em perfeição, tendo sucesso.
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O que importa é cantar, que um hino à vida
Vem de uma voz que é tanto mais ouvida
Quão mais se perca durante o processo.
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Maria João Brito de Sousa - 21.11.2020 - 13.51h
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11.
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"Quão mais se perca durante o (seu) processo"
em conexão com outros peregrinos
que atravessam o mar do insucesso
por nunca recusarem seus destinos,
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será uma montanha de ilusões
ascendendo no ar, quando nascer,
mas, quando o sol se esconde nos porões,
vai deitar-se na proa para morrer.
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Reavalia, então, o ofuscamento
que fez da sua vida esse tormento
de tanto querer e ter como pessoa
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E vê pontos de luz que vão chegando
à sua consciência, decifrando
o mal que tanto fez e não perdoa.
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Laurinda Rodrigues
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"O mal que tanto fez e não perdoa",
Porque não nasce, o mal, pra perdoar,
Mas pr`aumentar a dor do que já doa
Mesmo antes desse mal se anunciar.
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Mal fica quem viaja e fica à toa,
Mas pior ficará quem nunca ousar
Seguir o tal tal apelo que destoa
Do que é tido por norma ou por vulgar.
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Só não se atreve quem de si não gosta
Ou quem é surdo e cego e tudo aposta
Numa rota alheada e comedida;
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Esse, que à tempestade sempre arrosta,
Pode - quem sabe? - nem chegar à costa,
Mas até no naufrágio encontra vida.
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Maria João Brito de Sousa - 21.11.2020 - 15.53h
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"Mas até no naufrágio encontra vida"
escolhendo livremente naufragar
sem nunca desejar contrapartida
por ter salvo outro ser de se afogar.
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Com humildade, enfrenta a turbulência
desse vento feroz, que não esperava
destruísse o sentido da existência
a quem só na matéria acreditava.
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E aporta o barco no porto criador
escondendo na rocha a sua dor
pela dor de outro Eu sobrevivente.
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E, apelando à coragem e à união,
deixa no mar os restos da ilusão
que possa a humanidade ser diferente.
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Laurinda Rodrigues
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"Que possa a humanidade ser diferente",
Mais justa, igualitária, equilibrada
Do que a que hoje se curva ao prepotente
E que despreza quem já não tem nada.
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Mas há que navegar, seguir em frente,
Fazer um esforço, dar outra braçada...
Enquanto um sopro houver, há vida, há gente,
Há a luta, há a esp`rança renovada.
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Homem que navegando naufragaste
Mas que a qualquer destroço te agarraste
Tentando retardar o teu poente,
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Não há eternidade que nos baste;
No breve instante que à morte roubaste
"Desço ao fundo de mim, ao inconsciente".
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Maria João Brito de Sousa - 21.11.2020 - 21.37h