TELA - Coroa de Sonetos - Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues
TELA
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Coroa de Sonetos
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Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues
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1.
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"Chama que a cada gesto espelha a alma"
Ou mesmo alma que em chamas se acendeu,
Assim seremos nós, pintor e eu,
Que em tal labor ninguém nos leva a palma
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Numa exacerbação que nos acalma
Porquanto ao paradoxo se rendeu,
Nada se perde quando se aprendeu
A tudo ver, mesmo sem ver vivalma...
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Pintei ideias que de mim nasciam
E é dessa mesma forma que hoje escrevo;
Não sei se via além do que outros viam,
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Nem sei se digo mais do que o que devo...
Não vendo o que os meus olhos prometiam,
A pouco, ou nada mais, hoje me atrevo.
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Maria João Brito de Sousa - 01.06.2021 - 15.40h
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Soneto criado a partir do verso final do soneto PALETA de Gil Saraiva.
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2.
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"A pouco, ou nada mais, hoje me atrevo"
não sabendo se existe um amanhã...
Mas é aqui e agora que me enlevo
jogando ao claro-escuro com afã.
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Pinturas ou palavras, as que levo
em vibrações da minha mente sã,
são as pétalas de uma flor de trevo
que desflorei numa atitude vã...
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Procurava a resposta: "muito ou pouco"
que faz da minha vida um mundo louco
que nem eu sei porque caminho assim...
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Badaladas de sinos, som já oco
que repõe a música do ronco
que a minha voz ecoa sem ter fim.
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Laurinda Rodrigues
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3.
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"Que a minha voz ecoa sem ter fim"
Por vales e montanhas sem começo
E sendo exactamente o que pareço,
Sou quem regula a chama acesa em mim,
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Grata, talvez, por ter nascido assim,
Mas menos grata quando pago o preço
De cada queimadura que não peço
Aos deuses que expulsei do meu jardim.
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Do muito, passo ao pouco... ao quase nada...
De quase nada, muito e pouco faço;
Se me desgraço, torno-me engraçada
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E se amorosamente aqui te abraço,
Podes sentir-te, ou não, tão enredada
Quanto as fiadas em que me embaraço...
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Maria João Brito de Sousa - 03.06.2021 - 17.14h
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4.
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"Quanto as fiadas em que me embaraço"
eu quero partilhar os fios desse novelo
e seja só em verso que há o abraço
sinto o deslumbramento de tecê-lo.
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E pondo mais enredo nesse elo
que é apenas da história mais um passo
vai soneto mutar romance e, ao lê-lo,
percebe-se que é tudo tempo e espaço.
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Sofridas - não doridas - mas libertas
de escolher estar fechadas ou abertas
num mundo que nos lê ou nos ignora,
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Glorifico as paisagens, já desertas
de medos e lamentos, como alertas
de quem caminha em frente enquanto chora.
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Laurinda Rodrigues
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5.
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"De quem caminha em frente enquanto chora"
Deixando atrás de si um mar de sal,
Vejo, longínquo, o vulto no final
Da estrada em que o seu choro se demora.
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Olhando um mar que é céu naquela hora,
Esboço num breve impulso gestual
O voejar modesto de um pardal
E o de uma exuberante ave canora.
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Junto a uma paleta, a minha a tela
Jaz, por falta de espaço, à beira tempo
E já não vivo eu no mundo dela
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Que é outro o universo em que me invento;
Mudou-se-me esta casa em caravela
E em leme esta cadeira em que me sento.
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Maria João Brito de Sousa - 04.06.2021 - 10.04h
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6.
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"E em leme esta cadeira em que me sento"
onde flutua a minha inspiração
navegando naquele rio que invento
para, de vez, curar meu coração.
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Gritar bem alto como grita o vento
os temas da alegria e da paixão...
Sendo mais uma a sofrer tormento
acabando os tormentos sem razão.
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Se estou febril, a febre é o sinal
de que todo o meu Ser percorre o mal
de uma humanidade em insanidade...
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Somos a fruta da estação estival
que pode apodrecer sendo real
o sabor de uma luta pela verdade.
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Laurinda Rodrigues
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7.
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"O sabor de uma luta pela verdade"
É doce como o mel mas de repente
A ssume uma acidez quase adstringente
Que surpreende pela intensidade
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Mas mais nos alimenta essa vontade
De encontrar a verdade em quem nos mente...
Amadurece o fruto inda recente
Da nossa muito humana identidade,
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Veste-se a tela nua à nossa frente
De quanto houver de criatividade
- porque essa nunca morre, é ponto assente -
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E, enfim, se entende a transitoriedade
Daquilo que se pensa e que se sente,
Quando se sente e pensa em liberdade.
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Maria João Brito de Sousa - 04.06.2021 - 12.21h
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8.
"Quando se sente e pensa em liberdade"
cresce o deslumbramento de existir
de ter nascido Gente de verdade
e não ter de lutar para fugir.
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Porque ter de fugir cria ansiedade
que destrói aquele sonho de partir
p'lo prazer de encontrar noutra cidade
apenas um lugar para divertir.
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Fomos tão nacionais pela raiz
reconhecendo em nós essa matriz
de descobrir, sem ser um navegante...
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E olhamos este mar que apenas diz:
já nada corresponde aquilo que quis!
Estou presa de mim mesma a cada instante.
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Laurinda Rodrigues
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9.
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"Estou presa de mim mesma a cada instante"
Em que tentar deixar de ser quem sou,
Que a liberdade só me conquistou
Por ser rebelde, utópica e distante...
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De mim, serei eterna navegante
Porque o tempo das fugas já passou;
Mal esta minha tela naufragou
Passei a navegar no verso errante.
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No verso sempre encontro o que procuro
E mais que o que procuro encontrarei
Assim que colha um fruto mais maduro
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Dentre os que ainda agora semeei;
Onde cada colheita for futuro,
Há-de haver espaço para o que eu criei.
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Maria João Brito de Sousa - 05.06.2021 - 20.37h
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10.
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"Há-de haver espaço para o que eu criei"
pois espaço é relação de mim com alguém...
O tempo não existe: eu o sonhei
sempre presente, agora, aqui e além.
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Vivo comigo, sabendo aquilo que sei.
Quem me visita só virá por bem
alertando para um mundo que deixei
ficar lá fora, a rodar num trem,
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Onde já não viajo há muitos anos
porque viajam nele os muito insanos
que usam os milhões por vestimenta,
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escondendo, no porão, os muitos danos
que são esquecidos, depois de muitos anos
sem ninguém lhes ter dado reprimenda.
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Laurinda Rodrigues
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11.
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"Sem ninguém lhes ter dado reprimenda"
Vivem os amos/servos da riqueza
Vestindo a "caridade" e a "nobreza"
Que num vídeo viral põem à venda
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E assim prosseguem nessa sua senda
De conquistar as graças da pobreza;
Mentiras são anzóis cuja agudeza
Escapa a quem de vileza pouco entenda...
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Assim tornei concreta a tela abstracta;
Mais pincelada, menos pincelada,
Nesta estância da tela se delata
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A grande, a gigantesca mascarada
Em que o capitalismo se retrata;
Todos o servem e nem dão por nada!
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Maria João Brito de Sousa - 06.06.2021 - 11.21h
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12.
"Todos o servem e não dão por nada"
porque, no seu inconsciente cultural,
resguardam o segredo da montada
num cavalo feito em pérolas e cristal
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Expõem-se então à fúria da nortada
que os submete ao medo de animal
simbolizando o grande camarada
que veio salvá-los da desgraça e mal.
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Esqueceram que são a trilogia
que podem alcançar no dia-a-dia
sem ter de denegar a sua crença...
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Será esse o motivo da poesia
quando deixa de lado a alegoria
que não é sua a voz que a si pertença.
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Laurinda Rodrigues
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13.
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"Que não é sua a voz que a si pertença"...
Mas agora é só minha a decisão;
Camaradas não são o "grande irmão"
E a minha ideologia não é crença
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Que me assegure privilégio ou tença...
Trago-a na mente e diz-me o coração
Que ao nascer filha da revolução
Me compete cantá-la até que vença
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E, vez por outra, a minha branca tela
Pode encher-se dos traços realistas
De quem morreu lutando, não por ela,
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Mas pelos objectivos humanistas
Cuja memória, morta numa cela,
Ainda me sussurra; "Não desistas!"
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Maria João Brito de Sousa - 07.06.2021 - 12.04h
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14.
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"Ainda me sussurra: "Não desistas"
porque tudo na vida é transição
e mesmo o mais fatal nos mostra pistas
p'ro reencontro com o nosso coração.
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Ouço falar em histórias de revistas
cheias de sentimentos e emoção...
São, afinal, desfiles em que vistas
o melhor para mostrar à multidão.
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Somos trapos caídos a um canto
onde não chega o riso, nem o pranto,
que dê o privilégio de ter calma?
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Aos chutos, pontapés do desencanto
acendemos o fogo como um manto,
"chama que, a cada gesto, espelha a alma".
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Laurinda Rodrigues
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(Reservados os direitos autorais)