Maria João Brito de Sousa
“PASSANDO AO LADO”
E quando mal se dorme porque a dor
Teimou a noite inteira, acrescentou-se
E, conseguindo levar a melhor,
Deixou dentro de nós a dor que trouxe,
Não há espaço pra sonho, ou chão pra flor;
Já nada é espanto, nada é pêra-doce
E tudo, analisado ao pormenor,
Parece um pesadelo. Antes o fosse!
Mas pesa-me, este longo desabafo;
Não tenho a fina lira que tem Safo,
Nem as paixões soberbas de Florbela.
Poeta de aço vivo e já tardia,
Subtraio à dor um pouco de ironia,
Passo-lhe ao lado e... já nem dou por ela!
Maria João Brito de Sousa – 19.05.2018 – 09.08h
publicado às 09:31
Maria João Brito de Sousa
Cantos não te of`reço que os trago ocupados;
Por todos os lados está já transbordando
Esse órgão sem mando que mos traz guardados,
Mesmo empoeirados, velhos, caducando,
Mas vai-me sobrando lugar noutro lado;
Num tempo passado que fui resgatando
Pensando num quando jamais exp`rimentado,
Um espaço asseado, limpinho, brilhando.
Será um cantinho, mas sobra-lhe espaço,
Abriga um abraço, abriga um carinho,
Serve-te de ninho, mata-te o cansaço...
Of`reço e se o faço, não ficas sozinho;
Há estantes de pinho, de papéis, um maço,
E o resto - tão escasso... - são lençóis de linho.
Maria João Brito de Sousa – 24.01.2018 – 12.24h
NOTA - Soneto escrito a propósito do poema "Soneto Datílico", de Albertino Galvão.
publicado às 13:28
Maria João Brito de Sousa
Escuridão que te exaltas, arrojada,
no sincelo da carne em que me sou,
mesmo quando de meu não tenho nada,
por mais que nada seja o que te dou,
Tens sido sempre a cor da minha estrada
e a noite que os cabelos me enfeitou
quando ao longo da longa caminhada,
nela cresci e o mais me abandonou.
Se és ausência de cor, o que me importa?
Serei da mesma cor, que dizem morta,
mas amo a Vida mais do que ninguém
E afirmo que nenhuma cor conforta
tanto quanto este negro que recorta
palavras sobre o branco que as contém.
Maria João Brito de Sousa – 09.10.2017 – 12.07h
publicado às 15:31
Maria João Brito de Sousa
(Soneto em verso alexandrino)
Adoro, ao pôr-do-Sol, ver a noite cair
Sobre esta minha rua, esta rua onde moro,
E por sobre a calçada amada ver surgir
Em raios de luar a luz com que a decoro.
Amanhã, se acordar, hei-de vê-la a florir!
Há sempre um “se” eu sei, mas nunca, nunca choro,
Tal como nunca sei se irei, ou não, mentir,
Dizendo não pedir, pois nunca nada imploro.
Passa a noite a correr. Nem dei por que passasse
Conquanto a sono solto um sonho cavalgasse...
E, quanto à rua amada, amor, vejo-a sem ti,
Pois por mais que no sonho ansiosa o procurasse
Não mais vi, nesta rua, abrigo que abrigasse...
Rua da qual gostasse, amor, não mais a vi.
Maria João Brito de Sousa – 12.09.2017 – 08.29h
publicado às 12:06
Maria João Brito de Sousa
Pr`a mim, perde o soneto o seu sentido
Se não sintonizar o que escrever
Com algo que sussurra ao meu ouvido
A toada que o faz poema ser,
Portanto nada dou por garantido;
Só criarei se o ritmo o preceder,
Impondo-se, em sentido proibido,
A quanto possa estar-me a acontecer...
Jamais admitirei um desmentido,
A não ser que me venha a arrepender
Caso o verso bloqueie, retraído,
Ou aconteça a pauta emudecer ...
Nesse caso, a razão terei perdido
E nem mais um soneto irá nascer.
Maria João Brito de Sousa – 11.09.2017 – 17.17h
publicado às 10:55
Maria João Brito de Sousa
(Soneto de métrica imperfeita/irregular)
Porque chegaste desequilibrado,
Porque partiste sem te equilibrar
E, tropeçando em teu passo apressado,
Me convidaste sem me convidar?
Porque me deste um beijo descuidado,
Porque me amaste sem nunca me amar,
Porque deixaste este cheirinho a fado
E bossa-nova, quase a combinar?
Se foi convite, chegou-me atrasado,
Se foi adeus, esqueceu-se de acenar
E foi-se embora quase envergonhado
Para não ter de ouvir-me perguntar;
Como é que pode alguém, sem ter voltado,
Dar-me esta sensação de por cá estar?
Maria João Brito de Sousa – 19.08.2017 – 08.31h
publicado às 09:00
Maria João Brito de Sousa
(em verso heróico)
Olho o copo de leite que aquecera
E emito logo involuntário grito,
Porquanto, nesse copo, acontecera
Boiar um desgraçado dum mosquito!
Sem saber por que raio se metera
Esse insecto no leite que ora fito,
Penso: - Quando mosquito assim se esmera,
Fica qualquer humano apoucadito!
Em leite, nunca nado... e sou mulher!
Como pode um flebótomo fazer
Tamanha veleidade, ousar assim?
Talvez tenha pousado pr`a beber,
Mergulhando depois, sem perceber
Que esse leite era apenas para mim...
Maria João Brito de Sousa – 06.08.2017 – 13.10h
Imagem retirada do Google
publicado às 13:49
Maria João Brito de Sousa
Não mais me prende o Tejo e nem o mar,
De que ao longe vislumbro um quase nada,
Faz por manter-me alegre ou minorar
As penas de uma morte anunciada.
É tarde. É muito tarde pr`a sonhar
E quando um sonho vai, não sobra nada,
Ou sobra-me, acoplado ao que sobrar,
Este sentir-me presa e derrotada.
No entanto, criei. Se ousei criar,
Se fui rebelde, persistente, ousada,
Tive um tesouro e cabe-me aceitar
Ter sido pela musa abandonada,
Ter já perdido a força pr`a cantar
E a sorte de ir morrendo, assim, calada.
Maria João Brito de Sousa -08.06.2017 - 19.21h
publicado às 19:31
Maria João Brito de Sousa
Mais fundo, neste poço tão sem fundo,
Mergulho a cada dia em que não vivo
E sinto-me, no fundo, um ser cativo
Que vai dizendo adeus à vida, ao mundo.
Perdida da palavra – e nela abundo… -,
De quanta poesia hoje me privo,
Resta-me este mal estranho, consumptivo,
Voraz, perverso, vil, nauseabundo…
E sonhei eu escrever até ao fim,
Quando, afinal, a morte chega assim,
Pé-ante-pé, esmagando a pouco e pouco
Os frutos que medravam no jardim
Que andava a cultivar dentro de mim,
Em vez de, abrupta, desferir-me um soco.
Maria João Brito de Sousa – 17.05.2017 – 11.57h
Imagem - Tela de Oscar F. Bluemner
publicado às 12:29
Maria João Brito de Sousa
Não são de prata fina, ouro-de-lei,
De jade, madre-pérola ou diamante,
Mas da lava insurrecta, inquietante,
Do verbo em que te deste, em que me dei,
Os versos, tantos quantos semeei
No torrão duma urgência, a cada instante
Da premência tão mais desconcertante,
Quão mais distante o tempo em que os plantei.
Não espero o fruto frágil, rendilhado,
Trágico, maneirista ou delicado;
Quero o verbo assumindo o linho puro
Do fruto firme, forte e já trincado,
Da terra, quando a rasga cada arado,
E do trigo dourado e já maduro.
Maria João Brito de Sousa - 21.04.3017 -16.35h
publicado às 16:57