Maria João Brito de Sousa
FOI NUM NATAL MUITO FRIO *
I * Era o Inverno mais frio
De que podia lembrar-se,
Mas nem tentou lamentar-se:
Se gritou, ninguém ouviu *
Corressem-lhe, embora, a fio
As águas, a agigantar-se
Cada dor até soltar-se
O filho que então pariu... *
Era o vento que soprava,
E era a chuva que, impiedosa,
Açoitava o velho quarto *
Mas só no filho pensava
Quando sobre a colcha rosa
Suportava as dores do parto *
II *
Nunca teve anjo, nem estrela
Que a viesse iluminar,
Só o menino a chorar,
Num cestinho à luz da vela *
A criança, o cesto e ela,
O improviso de um lar
Onde ela o põe a mamar
Sob um céu que a agride e gela... *
Não veio nenhum rei mago
Trazer-lhe ouro, incenso e mirra,
E nem sequer José veio *
Fazer-lhe um pequeno afago
Na desmedida barriga
Nem dar-lhe um pão de centeio *
III *
Nesse Dezembro gelado,
Nem vaquinha, nem burrico,
Só da chuva algum salpico
Saudou o recém chegado *
Pequenino ali deitado,
Tão pobre e de amor tão rico
Quão emocionada fico
Por havê-lo aqui citado... *
Mas esse menino existe!
Citá-lo é citar milhares
De crianças sem futuro, *
Ou na situação mais triste
Que, sem esforço, imaginares
Se o teu coração for puro. *
Mª João Brito de Sousa
27.11.2022 - 18.30h ***
Poema em sonetilhos inspirado no título do poema de Dália Micaelo
"Era o Inverno Mais Frio..."
publicado às 09:46
Maria João Brito de Sousa
I A ceifeira, nos trigais, Traz nas mãos sonhos negados E os dedos bem calejados De quem já ceifou demais… Flancos doendo, agachados, Entre mil gestos iguais Evoca uns pontos errados Destas questões laborais… Essa ceifeira não chora, Mas começa a acreditar Que pode bem estar na hora De que quem assim a explora Também se deva agachar Tal como ela o faz agora…
II Já não sonha, as dores são tantas Que só pode trabalhar Se as abafa nas mil mantas Que inventa pr`ás disfarçar… Faltam horas, umas quantas, Pr`á ordem de “despegar” E as ceifeiras, como as plantas, Podem, às tantas, murchar… Vai longa a jorna, ceifeira! Já esgotada da labuta, Tão no auge da canseira Depois de uma tarde inteira, Pensa enfim: - Antes a luta Que viver desta maneira!
III
Reúne os seus companheiros Da labuta dos trigais, Fala dos dias inteiros Sol a sol, sem poder mais, Lembra a escassez dos dinheiros, Diz que os patrões, sendo iguais, Os tratam como aos carneiros Que abundam nos seus currais… É dessa reunião, Que lhes nasce, firmemente, Uma justa decisão De exigirem mais do pão Que é devido a toda a gente Mas só não falta ao patrão…
IV Vão em grupo e vão em paz Falar da fome que sentem Pois pela fome se faz Quanto os fartos não consentem… Encontram o capataz, Dizem ter fome… e não mentem, Só o não sabem capaz De matar os que o enfrentem… Soa um disparo… a ceifeira Cai por terra; - O que se passa? Catarina, à dianteira, Jaz morta sobre uma leira Por ter negado a mordaça De humilhar-se a vida inteira!
Maria João Brito de Sousa – 26.04.2012 – 19.11h
IMAGEM - "A MORTE DE CATARINA EUFÉMIA" - Gravura de José Dias Coelho, retirada da net
publicado às 19:45