Maria João Brito de Sousa
110x85cm
PRESÉPIO
*
É por dentro de mim que chego a Deus,
É por dentro de mim, eu sei-o bem,
Que todos os natais vou pelos céus
Visitar o Menino de Belém.
Nunca o disse a ninguém, pois há segredos
Que devemos guardar dentro de nós
E há sempre quem duvide, ou tenha medo,
De uma mulher com asas de albatroz,
Mas da estranha viagem, que só faço
Se a estrela de Belém me der boleia,
Fica o registo, do divino traço:
Nascem raios de luz no meu regaço
E há anjos a cantar a noite inteira
Ao menino que dorme nos meus braços.
*
Maria João Brito de Sousa - 20.01.2008
publicado às 14:57
Maria João Brito de Sousa
Peça da autoria de Jorge Vieira
NOVE ANOS, POR AMOR, MOLDEI, ESCULPI... *
Nove anos, por amor, moldei, esculpi,
Mil formas dei ao barro da palavra:
Nove anos, sol a sol, servi, qual escrava,
A vontade do barro em que nasci *
Nove anos, por opção, não desisti
Dessa labuta que por mim clamava
E nove anos a fio sobrevivi
Dos parcos frutos que esse ofício dava... *
Por outros nove, ou mais, resistiria
Se esta vida tão só mos concedesse:
Mais nove vezes nove os moldaria *
No barro da palavra... se pudesse,
Pois quem do barro vive, em barro cria O que da mente emerge ou alvorece. *
Maria João Brito de Sousa
23.06.2016
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Peça da autoria de Jorge Vieira
publicado às 10:06
Maria João Brito de Sousa
POEMA À PRIMEIRA MULHER II *
Imaculada, afirmo o que não devo:
Preencho a escura cova do meu fim
Com quanta flor semeie num jardim
Quimérico, insondável e primevo… *
Ingénua, sem sonhar que me descrevo
À luz do que mais puro existe em mim,
Não fora o escuro abismo ser assim,
Profundo - tanto mais quão mais me elevo… - *
Talvez soubesse projectar-me toda
Nos sonhos que me orbitam numa roda
Que aspira à mais perfeita identidade *
Mas, finalmente, o germe do real
Corrompe a carne preservada em sal,
Desponta e vem-me impor toda a verdade. *
Maria João Brito de Sousa
20.06.2014 - 16.33h ***
NOTA – Soneto recriado a partir do soneto original “Poema à Primeira Mulher”
in Pequenas Utopias, Corpos Editora, 2012
Imagem- "As Três Idades do Homem", Hans Baldung Grien
publicado às 23:55
Maria João Brito de Sousa
DESLEIXO *
Soneto que me nasça por favor,
sem essa rebeldia indefinível
dos versos que se esculpem por amor
na sequência de urgência irreprimível *
Bem pode ostentar forma e ter rigor,
Porém não terá "garra", essa indizível,
que o tempera, o reforça, dá vigor
e é, no fundo, o que o torna irrepetível *
Mas que posso fazer contra a vontade,
transformada em rotina involuntária
que me exige um soneto? Aqui o deixo, *
Sabendo que ajo mal pois, na verdade,
por capricho tornei-me, a mim, contrária
e em vez de excelência urdi desleixo! *
Maria João Brito de Sousa
17.06.2010 – 09.26h ***
publicado às 10:01
Maria João Brito de Sousa
Mulher em Molho de Luar - M.J.B.S., 1999
*
SONETO
À MINHA
"LOUCA, LOUCA, INSPIRAÇÃO" *
Venho tarde e más horas porque venho
de um momento lunar que desconheces
no despontar da teia em que te teces
há mais do que a noção que tens de antanho *
Se firo, como chaga ou corpo estranho
alheada do tanto que padeces,
é por puro desdém das gastas preces
que te confesso já, nego e desdenho! *
Matéria, anti-matéria… o que me importa
se, ao ser razão, de ti me quedo absorta
pr` assombrar-te depois, sem mais razão *
E sempre que me julgas muda ou morta
te invado ao arrombar a férrea porta
que usaste pra fechar-me o coração? *
Maria João Brito de Sousa
18.12.2012 - 02.47h ***
publicado às 10:32
Maria João Brito de Sousa
"Amor e Dor", Edvard Munch
AMOR E DOR
*
Trilogia
*
AMOR E DOR NAS FALDAS DO ARARATE *
Chegando ao Ararate, Amor e Dor,
Sentaram-se, cansados da jornada.
Olhando o Monte, a Dor ficou sanada
E, de contente, quis curar Amor: *
Repara, Amor, que eu estava bem pior
Antes de iniciar a caminhada,
Que olhei o Monte e foi-se-me a pontada
E sinto despontar força e vigor! *
Vem ver, para que o mal nunca te chegue,
Para que a praga, ao ver-te, se te negue,
E não possa haver peste que te mate! *
Ouviu-a, Amor. Olhou. Perdeu-se olhando.
Voltou sozinha a Dor, de dor chorando
Por se perder de Amor no Ararate. *
Maria João Brito de Sousa
10.05.2018 ***
AMOR E DOR II. *
Amor e Dor, brincando se entrechocam
E enredam-se num fio que acaba em nó...
Até então Amor vivera só
E Dor, lá nas lonjuras que se evocam. *
Moram juntos agora e, mal se tocam,
Sentem um pelo outro um mesmo dó:
Amor, que era imortal, desfaz-se em pó
E Dor sucumbe à dor que os nós provocam. *
Nesta paradoxal (des)união,
Sente Amor pela Dor tal compaixão,
Que cega, pra não vê-la sucumbir *
E Dor, que vendo Amor, o julga são,
Mais se enreda nos nós, mais sem perdão
Se obriga a não deixar Amor partir. *
Maria João Brito de Sousa
13.05.2018 ***
AMOR E DOR
Epílogo *
Pra rematar a saga, Amor consente
Tomar a Dor por esposa e companheira
E já que sendo ainda inexp`riente,
Não sabe o que é passar a vida inteira *
Lado a lado com Dor, que impenitente,
Inflige a Amor insónias e canseira:
Amor está cego e Dor, sendo inocente,
Não pode pressupor ter feito asneira *
Deu-se este enlace em tempos tão remotos
Que nem posso evocar que estranhos votos
Uniram para sempre este casal *
Mas garanto que afirmam ser felizes,
Que deram fruto, tiveram petizes
E se amam. Para o bem e para o mal! *
Maria João Brito de Sousa
14.05.2018 ***
In "... Até a Neve Chorará Num Dia Quente..."
Euedito, 2018 ***
publicado às 22:42
Maria João Brito de Sousa
A QUEM SOUBER OUVIR O (EN)CANTO DOS PARDAIS *
Aos mortos nos covais e aos que estão por vir,
Aos que estão a dormir, aos que nem dormem mais,
Aos troncos verticais dos cravos a florir
E a quem souber ouvir o (en)canto dos pardais, *
Aos rios nos seus caudais, aos montes por subir,
Às pedras por esculpir, aos mestres geniais,
Às infracções verbais, aos versos por escandir
E à morte que há-de vir porque somos mortais: *
O poema é uma aventura incerta e fascinante
Que ninguém nos garante, infinda descoberta,
Quase uma fresta aberta ao gesto vacilante *
Do que ainda hesitante ousar o que o liberta
Porque a fresta desperta o que o levara avante
Naquele exacto instante em que ele a dá por certa. *
Maria João Brito de Sousa
17.06.2020 - 12.31h ***
Em verso alexandrino com rima duplamente encadeada
publicado às 23:08
Maria João Brito de Sousa
"O Triunfo da Revolução", Diego Rivera
NÃO ME PEÇAS
PRA SER QUEM NÃO SOU *
Não me peças pra ser quem não sou,
Nem me colhas, de ramo enxertado,
Um só fruto dos frutos que dou
Sem que esteja polpudo e dourado *
Tão maduro do sol que o dourou
Que se of`reça aos teus lábios, ousado,
Sem pôr culpas na mão que o cortou,
Nem remorsos por tê-la tentado! *
Não me fales de medo! Não cedo
A caprichos e sedes tão poucas!
De outra sede fecunda procedo *
E se as sedes que trazes são loucas,
Também esta que cresce sem medo
Expressa a sede de muitas mais bocas. *
Maria João Brito de Sousa
23.04.2016 - 22.09h *
Soneto em verso eneassilábico ***
publicado às 13:29
Maria João Brito de Sousa
Gravura de Pieter Bruegel (o velho)
*
PENDE DO MEU ANZOL UM PEIXE VIRTUAL *
Amo o azul do mar, o verde da planura
E quanto da lonjura alcança o meu olhar:
Serei escrava de um lar que no mar se procura
Enquanto esta loucura assim me cativar *
E, sem me rebelar, nem franca, nem perjura,
Ainda que imatura aceito este invulgar
Destino de varar um mar que só me augura
Os ventos da ventura em que hei-de naufragar... *
Ao longe, pedra e cal, brilha um velho farol,
Branco como um lençol que foi tecido em sal
E se me saio mal porque um raio de sol *
Derrete e faz num fole esta rota ideal
Na colisão plural dos estros sem controle,
Pende, do meu anzol, um peixe virtual! *
Maria João Brito de Sousa
15.06.2020 - 16.09h *
Soneto em verso alexandrino com rima duplamente encadeada *
publicado às 15:42
Maria João Brito de Sousa
Fotografia de Nuno Fontinha
*
MAR REDENTOR *
Só o mar que do mar nunca volta
É do rio tanto cais quanto fonte
E na onda que em espanto se solta
Ergue um muro e também uma ponte *
De água azul e de espuma revolta
Entre mim e o longínquo horizonte,
Essa linha amovível que escolta
Cada além que ao meu sonho confronte *
Quando a onda nas rochas quebrando
Vem dizer-me que o mar ora é brando,
Ora em fúrias e raivas se exprime *
Digo a medo ou apenas segredo
Que deixei de ter medo do medo
E que o mar mesmo irado redime. *
Maria João Brito de Sousa
04.06.2021 - 09.40h * ** Soneto em verso eneassilábico
publicado às 09:53
Maria João Brito de Sousa
MARAVILHA
O meu conceito de... *
Porque a realidade maravilha
Se se nos abre em todo o seu esplendor,
E arrebata, porque em nós fervilha
O sangue ardente do pesquisador *
Que ao acender a luz que tanto brilha
Vai afastando a treva em seu redor,
Assumo-me inteirinha enquanto filha,
Não de quanto sonhei, mas do que for! *
Sempre que isso acontece e me arrebata
Dá-me, da maravilha, a forma exacta
E aponta-me o caminho da verdade *
Mas, se um segundo o esqueço, um lapso imenso
Conduz-me ao limbo róseo mas pretenso
De quem despreza a própria identidade *
Maria João Brito de Sousa
29.05.2018 – 10.41h ***
Soneto ligeiramente reformulado
publicado às 11:11
Maria João Brito de Sousa
GENETICAMENTE INSPIRADO *
Vou pincelando, a ocres e vermelhos,
Este soneto oval que me fascina
E engano os meus anseios de menina
Numa ressurreição de cacos velhos *
Desminto a evidência dos espelhos!
Deste enlevo renasço, pequenina,
Crescem-me asinhas de feição divina
E fico invulnerável a conselhos *
Pois moldo, pinto, engendro a "obra-prima"
Que vou solicitando aos meus sentidos
Sem que jamais me sinta arrependida *
E, a cada segundo, o que me anima
É toda a profusão de coloridos
Que há nesta sensação de criar vida! *
Maria João Brito de Sousa 31.01.2008 - 10.15h ***
In Poeta Porque Deus Quer
Autores Editora, 2009 ***
publicado às 10:43