Maria João Brito de Sousa
BÁRBARA *
Eis que Bárbara passa e, em passando,
Vai-se mostrando bárbara, insubmissa,
Que embora um mar de lágrimas chorando
É feita fúria que se faz à liça. *
Passam as suas lágrimas voando
Sem cuidar de justiça ou de injustiça
Que não tem Bárbara a noção do quando
Nem dos porquês, enquanto assim se atiça. *
Não teme o Sol, nem a perturba a Lua,
Que a força com que sopra é tão só sua,
Não lhe ocorre explicar-se ou confessar *
Pecado ou pecadilho que lhe encontrem;
Não há fúrias humanas que a confrontem
Porquanto mais não faz do que passar. *
Maria João Brito de Sousa - 19.10.2020 - 17.41h
publicado às 09:28
Maria João Brito de Sousa
POR ENTRE OS DEDOS *
Por entre os dedos se te escapa a luz
Que não assumas como espaço e tempo;
Desprezados razão e pensamento,
Até a fantasia se traduz *
Naquilo que a ti próprio te reduz
Em força e garra, em graça e em talento;
Se àquilo em que acredito fujo, ou tento,
De mim me perco e do que a mão produz. *
Por entre os dedos se me vai escapando
Aquilo a que não chego, é bem verdade,
E até a vida que nunca sei quando, *
Ditará estar perdida a validade
Dos mesmos dedos que hoje estão grafando
Isto que penso e sinto ser verdade. *
Maria João Brito de Sousa - 18.10.2020 - 13.34h
publicado às 10:41
Maria João Brito de Sousa
LIVR(O)MENTE *
Limpos e arrumados nas estantes
Estão os livros que li. Outros, por ler,
Virão mais tarde, quando eu possa ver
Tanto ou melhor do que o que via dantes. *
Nem todos estão de mim equidistantes,
Nem todos por igual pude acolher,
Que a minha mente soube bem escolher
Os seus dilectos e os seus amantes. *
Não morreram, nem estão ao abandono
E embora muitos já nem tenham dono,
Todos revivem no que agora escrevo *
Pois devorados em noites sem sono
São, hoje, os companheiros deste outono
Ao qual devolvo o tanto que lhes devo. *
Maria João Brito de Sousa - 17.10.2020 - 12.38h
*
Soneto criado para um desafio no site Horizontes da Poesia
publicado às 10:29
Maria João Brito de Sousa
ORQUESTRA *
Linhas sombrias geram luminosas
Notas/acordes na pauta invisível,
Por vezes frágeis, logo vigorosas,
Todas galopam rumo ao impossível. *
Se trazem espinhos, serão como rosas
Despetaladas pela mão sensível,
Se os não trouxerem, inda que viçosas,
Virão depois, segundo o previsível. *
Linhas de pautas, sóbrias partituras
Instrumentos de corda, arquitecturas...
Vibra esta orquestra, tudo é sinfonia *
E assim que nasce o acorde primeiro
Logo eu mergulho a pena no tinteiro
Do verso livre que a razão pedia. *
Maria João Brito de Sousa - 16.10.2020 - 10.57h
publicado às 11:01
Maria João Brito de Sousa
LANTERNA QUE ILUMINA
*
Conceitos nossos, os de bem e mal,
Tão naturais quanto água cristalina
E tão inevitáveis quanto o sal
Da rocha que no mar o dissemina. *
Nossos porque nos é fundamental
Explicar espantos que a vida determina
Desde o tempo remoto e ancestral
Em que o medo nasceu. Quem o domina? *
Demos e deuses no mesmo bornal;
Era a razão ainda uma menina
Que a cada descoberta acidental *
Crescia no saber. Esmorece a sina
Na explicação do mundo e do real;
A razão é lanterna que ilumina! *
Maria João Brito de Sousa - 14.10.2020 - 15.38h *
publicado às 12:11
Maria João Brito de Sousa
Imagem retirada daqui
O LIVRO DA MINHA VIDA *
"Sem se saber contudo como acaba"
Vai-se a vida qual livro desfolhando...
À minha, quatro folhas vão faltando
E nem sei como o resto não desaba *
Se o papel não é pedra de mastaba
E já lhe vão as folhas rareando
Cada vez mais, até ao não sei quando
Em que por fim se fechem capa e aba. *
À minha vida, grafo-a em cativeiro
Sem saber quanta tinta há no tinteiro,
Sem sonhar que fantasma a lê no escuro; *
Ó mortos-vivos deuses do dinheiro,
Se imaginais ter lido o livro inteiro,
Qual de vós adivinha o meu futuro? *
Maria João Brito de Sousa - 12.10.2020 - 15.39h *
Soneto criado a partir do último verso do soneto "A Vida como um Livro"
do poeta Joaquim Sustelo.
publicado às 08:51
Maria João Brito de Sousa
Imagem retirada daqui
A "SOIRÉE" *
Não tenho tempo para não ter tempo
Que enquanto crio o tempo cristaliza
E o ponteiro das horas mal desliza
No eterno mostrador do pensamento. *
Desse não-tempo retiro o sustento
E dessa ausência estática, concisa,
Ressurge a musa etérea, essa indecisa
Que viaja em rajadas, como o vento. *
Outro cenário emerge. O novo palco,
Que afinal é o mesmo... ou já não é?,
Faz-se expressão de um mundo que decalco *
De um sargaço ao sabor de uma maré;
Talvez seja outra onda o que recalco
Enquanto o mar encena esta "soirée".
*
Maria João Brito de Sousa - 09.10.2020 - 18.24h
*
Soneto inspirado numa crónica/poética de MEA (Maria da Encarnação Alexandre)
publicado às 10:56
Maria João Brito de Sousa
DIZEM QUE MORREU... *
Usado, adulterado, gasto e morto
Está o velho soneto. Dizem, dizem...
Outras mãos haverá que o enraízem
Que as minhas, hoje, pedem-me o conforto *
De uma tarde serena. Olhar absorto,
Peço às horas que passem, que deslizem,
Que, em fraçcões de segundo, mimetizem
A paz da barca que chega a bom porto. *
Desse instante de paz nasce-me um verso
(sei lá quantos segundos já lá vão...)
E agora o que ambiciono é o inverso *
Dessa paz que me vem da reflexão;
Parem, mentiras, de embalar meu berço,
Que o soneto está vivo e forte e são!
*
Maria João Brito de Sousa - 09.10.2020 - 12.10h
publicado às 12:43
Maria João Brito de Sousa
SINFONIA DE OUTONO *
Eram só notas. Muitas nem sabiam
Que engenhos as prendiam, alinhadas,
Porque eram muito mais que o que podiam
Conceber as tangentes fatigadas
*
Que à tangente passavam, se tangiam
Mais notas noutras cordas retesadas
Que às vezes, só às vezes, convergiam
E as mais das vezes eram dispersadas *
Por outras que chegavam ou partiam
Com a velocidade de rajadas
E nem à convergência respondiam *
Mas que bem poderiam ser travadas
Por corações que sempre as consentiam
Porque soavam doces e afinadas. *
Maria João Brito de Sousa - 07.10.2020 - 12.49h
Ao Senhor das Nuvens
publicado às 12:54
Maria João Brito de Sousa
UM PÃO QUE NÃO TEM PREÇO *
A grandeza do poeta não se mede;
Em metros não se conta. Em peso, pesa
Exactamente quanto a natureza
De mãos dadas c`oa sorte lhe concede.
*
Se a verso usado um novo se sucede,
De espantos se lhe mede essa grandeza
Pois se o não satisfaz certa certeza,
Procura a que lhe dê mais que o que pede. *
Cavalga-me o poema os dias mornos
Sem esporas e sem sela, nem adornos,
Perdendo-se em lonjuras que não meço... *
Logo um segundo acode. Os seus contornos
Começo a vislumbrar. Acendo os fornos
Em que cozinho um pão que não tem preço.
*
Maria João Brito de Sousa - 26.09.2020 - 12.11h
Imagem - Os Comedores de Batatas - Vincent Van Gogh, 1885
publicado às 12:20