GLOSANDO FLORBELA ESPANCA - (4)
MENDIGA
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era qu’rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida
– Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"
RETROSPECTIVA
"Se me ponho a cismar em outras eras"
Em que, de alguma forma, fui traída
Por vagas convicções, tolas quimeras,
Daquilo que, afinal, seria a vida
"E a minha boca triste e dolorida"
Sorrindo tão somente pr`a quem eras,
Esquecida de sorrir, somava esperas,
Perdendo-se em razões pr`a ser esquecida,
"E fico, pensativa, olhando o vago...",
Sorrindo à vida que bebi de um trago,
Quando outro tempo mo ditava assim
"E as lágrimas que choro(ei) , branca e calma,"
Sugerem-me infantis tragédias d`alma
Que mal se lembram de brotar de mim...
Maria João Brito de Sousa - 27.01.2016 - 13.03h