COROA DE SONETOS - Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues
A SANGUE-FRIO
*
Longos, longos dias de cinza vestidos
São tão mais compridos quão mais são vazias
As horas tardias dos tempos perdidos
Sem versos corridos e sem melodias.
*
Sem fugas, sem vias, nem novos sentidos,
Alastram sofridos tédios, agonias,
Neutras sinfonias de sons repetidos
Tão só pressentidos, se acaso os ouvias.
*
Eis as pandemias tiranas e cruas
Que invadem as ruas, as casas, os quartos...
Medrosos mas fartos, lançamos-lhes puas,
*
Compramos gazuas, sonhamos com partos,
Sofremos enfartos gemendo em cafuas;
Ó almas já nuas, seremos lagartos?
*
Maria João Brito de Sousa - 23.01.2021 - 11.50h
***
2.
"Ó almas já nuas, seremos lagartos?"
Porque subvertemos o quente no frio?
Porque, dos abraços, já ficamos fartos?
Porque esvaziamos as horas a fio?
*
Temos inda alma, que gerou os partos
de belos poemas, que falam do rio
que corre para o mar, sem medo de enfartos,
porque enfrenta a vida como um desafio.
*
E, todas as noites, que cruzam as ruas,
onde corpos sonham com as almas nuas
e contam relatos de um segredo eterno,
*
são esboços de luz em pinturas cruas
de mãos que procuram encontrar as tuas
para apagar o mal que vem do inferno.
*
Laurinda Rodrigues
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3.
"Para apagar o mal que vem do inferno"
No castigo eterno, supremo e total,
Deduzo, afinal, que esse vírus hodierno
Seja o subalterno de algo mais letal.
*
Procuro um sinal neste gélido inverno
Manchando o caderno de esboços sem sal...
Não mais que o normal de um sorriso fraterno
Que às vezes alterno com algo irreal
*
E um astro ideal, um lampejo, um fulgor
Engendra o calor onde o frio era a lei!
As coisas que eu sei transformar em amor
*
Retomam vigor como tanto esperei
Assim que as soltei sem ter medo ou pudor...
O inferno era a dor à qual não me verguei!
*
Maria João Brito de Sousa - 23.01.2021 - 16.03h
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4.
"O inferno era a dor à qual não me verguei"
com força subtil, que cresceu num espaço
no qual fui nascida e mais tarde testei
lutando com a mente para criar o laço
*
com a humanidade, a quem sempre honrei,
mesmo quando, só, lhe pressinto o passo
à beira da casa, onde pernoitei,
quando, dentro dela, não havia espaço.
*
E assim caminhando, sem saber porquê,
para onde me leva a minha amargura
de aqui estar parada e quase não vê...
*
Sou ainda luz numa noite escura
que ouve o destino, porque não o lê,
bebendo-lhe o sangue, de tanta secura.
*
Laurinda Rodrigues
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5.
"Bebendo-lhe o sangue, de tanta secura"
Que cresce e matura deixando-a exangue;
Mesmo que se zangue com tanta tortura,
Nenhum mal tem cura se é qual bumerangue...
*
Perdida no mangue apenas procura
Fugir à loucura, escapar-se do gangue;
Derrama o seu sangue por medo ou bravura?
Não sabe ser dura, por mais que se zangue
*
E ainda que o mangue seja o seu abrigo,
Ao ver-se em tal perigo, procura a saída;
Fará pela vida, com ou sem castigo!
*
Rejeita o jazigo, despreza a jazida
Que lhe era devida. Espreitou ao postigo
Quando o inimigo perdeu a corrida.
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Maria João Brito de Sousa - 23.01.2021 - 19.05h
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6.
"Quando o inimigo perdeu a corrida"
tu estavas presente, com aclamações:
tinhas uma túnica de negro vestida
e, ao peito, flores, símbolo de brasões.
*
Brilhavas ao sol, como divertida
embora sofrendo loucas emoções
e fazias versos de elegia à vida
onde, resguardadas, vibravam paixões.
*
A tua alma dança num desejo ardente
de voltares a ser Aquela que eras
num corpo sadio e olhar diferente...
*
Que não teme pragas que se tornam feras
e arroja para longe os dramas da gente
porque entoa a voz das grandes Esferas.
*
Laurinda Rodrigues
*
7
"Porque entoa a voz das grandes Esferas"
Fruindo as esperas, desfazendo os nós,
Descobrindo os prós nas contra-quimeras,
Sondando outras eras, voando em cipós,
*
Guiando os trenós por atalhos de feras,
Fintando as panteras que em salto veloz
Serão teu algoz se as não vês, nem superas;
Tão só te esconderas e a sorte era atroz...
*
Mas nós somos nós! Em catorze versos
Há mais universos dos que os já sonhados,
Que os sonhos são fados nos astros dispersos
*
E às vezes imersos vulcões conturbados
Do chão levantados; gigantes perversos,
Ou crias em berços recém conquistados?
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Maria João Brito de Sousa - 24.01.2021 - 18.30h
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8.
"Ou crias em berços recém conquistados"
onde vão dormir um sono tranquilo
no abraço doce desses seres alados
cantando baladas para ensaiar o trilo.
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Crias que nasceram como namorados
escondidos à noite dentro do seu silo
cheio dos perfumes por elas suados
quando de mãos dadas quiseram abri-lo.
*
Quem nos dera ser como as crias puras
que, recém nascidas e de olhos abertos
não aceitam males, nem dores, nem torturas,
*
e caminham fortes mesmo nos desertos
onde a vaguidão provoca tonturas
a todos os seres que dormem despertos.
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Laurinda Rodrigues
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9
"A todos os seres que dormem despertos"
Decerto encobertos, esquecidos por Ceres,
Sem quaisquer poderes, sem estarem libertos,
Deixo os desconcertos dos meus afazeres.
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Ele há tais prazeres a ser descobertos
Por olhos abertos que, por os não teres
Se assim o escolheres, nunca os tens por certos;
Outros, mais espertos, terão quanto queres.
*
Por desconheceres, por tua vontade,
O que a liberdade te pode of`recer
Pouco irás saber sobre a humanidade
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E que qualidade pode vir a ter
Quem olha sem ver pois de ver se evade
E nem a verdade tenta conhecer?
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Maria João Brito de Sousa - 24.01.2021 - 20.30h
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10.
"E nem a verdade tenta conhecer"
pois, o que é verdade? Alguém o afirma?
De olhos abertos mas sem poder ver
sem ouvir os sons dos versos que rima?
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Ou será que a alma a conduz e mima
com dons invulgares que acabo de ler
quando, em conjunção, vêm ao de cima
as grandes virtudes de amar e sofrer.
*
Trago ainda dúvida se devo ser Eu
com a multidão que recusa alguém
só por não rezar os sermões do céu...
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E, entre risadas, que o medo contém
numa confraria de rendas e véu,
agarro na cruz e levo-a pr' Além.
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Laurinda Rodrigues
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11.
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"Agarro na cruz e levo-a pr` Além"
Daquilo que vem desses dias sem luz...
Não sei onde a pus! Será que outro alguém
Pensou que era um bem de valor, que seduz?
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Maria! Jesus! Quem perder, nada tem!
Ninguém viu? Ninguém? Como vou fazer jus
Ao que me propus se não tenho vintém
E se julgo, também, que ao vê-la me expus?
*
Se a tal se reduz a tonteira que fiz,
Serei infeliz ou serei distraída?
Às vezes a vida, esquecida a raiz,
*
Faz tal qual eu fiz, deixa a gente perdida
No lar sem saída de um génio-aprendiz...
Ou fui eu que o quis e por mim fui traída?
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Maria João Brito de Sousa - 26.01.2021 - 15.33h
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12.
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"Ou fui eu que o quis e por mim fui traída?"
Serei o carrasco e também a vítima?
Projeto no tempo a vida esquecida
para o meu presente ser apenas rima?
*
Rima de destino com raiz roída?
com tronco curvado na parte de cima?
com folhas caídas, com copa despida?
numa tempestade que sempre me anima?
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Não sei as respostas. Não ouso sabê-las.
Que me importa o tempo! A glória, o poder!
Dormi ao relento coberta de estrelas...
*
E, tendo entre os dedos teclas a escrever,
Navego em imagens, que servem de velas
para toda a viagem que a vida tecer.
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Laurinda Rodrigues
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13.
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"Para toda a viagem que a vida tecer"
Eu hei-de colher a folha, a fruta, a vagem,
Cada qual imagem do projecto SER
A corresponder com a minha mensagem,
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Que isto de coragem tem de se viver
Pra se conhecer o que houver na bagagem;
Finte-se a sondagem venha o que vier
E a quem não quiser, faça-se a triagem!
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Depois da drenagem das águas libertas
Nas folhas abertas dos livros malquistos,
Cresce a olhos vistos a tensão. Alertas,
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Faces encobertas, mimetizam xistos
Os velhos Mephistos* de intenções incertas;
Ressonam despertas as mães dos ministros.
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Maria João Brito de Sousa - 28. 01.2021 - 19.00h
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* Mephisto - ver aqui, sff- https://pt.wikipedia.org/wiki/Mephisto_(aut%C3%B4mato)
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14.
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"Ressonam despertas as mães dos ministros"
de barriga cheia de falácias gordas
rezam orações aos pobres dos cristos
que mal podem ler as mensagens tordas.
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Numa podridão de intenções das hordas
onde, já nascidas, cultivam os quistos
que vão projetar em todas as bordas
pedaços de estrume coroado de xistos,
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É aqui e agora que renego o traço
que tentaram por-me colado aos sentidos:
não vou fraquejar nem tenho embaraço...
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Olho no horizonte os sonhos vertidos
que vão relembrando, no imenso espaço,
"longos, longos dias de cinza vestidos".
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Laurinda Rodrigues
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("tordas" = bebedeiras
"hordas" = famílias)