QUANDO VIERES POR MIM - Coroa de Sonetos - Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues
QUANDO VIERES POR MIM
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Coroa de Sonetos
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Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues
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1.
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Quando vieres por mim, logo à noitinha,
Com o teu negro manto aveludado,
O teu trágico ceptro de rainha
Não me acharás tremendo ajoelhado;
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Estarei escrevendo a derradeira linha
Do terceto final deste meu fado
Que mais ninguém lerá. Quem adivinha
O futuro de um verso assim negado?
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- Volta num outro dia... ou mês, ou ano!
Olhar-me-ás atónita, bem sei,
Pois nada disto estava no teu plano...
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Pressuporás que também eu sou rei
E partirás pra não causar-me dano;
Se dano houve, eu próprio o provoquei.
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Maria João Brito de Sousa - 05.05.2021 - 13.12h
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2.
"Se dano houve, eu próprio o provoquei"
morbidamente quase, quase louca...
Que sensação perversa que inventei
quando, em vez de beijar, mordi a boca.
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E, com os lábios fechados, intentei
dizer palavras que tem eco a ôca
porque, sem ter pincel, assim pintei
as telas que da vida são já pouca.
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Se querem ver-me apenas na roupagem
no corte de um cabelo, estilo pagem
e na curva da anca desnudada,
*
Recomendo que venham de passagem
porque eu sou vento, nunca fui aragem:
Voo sem asas seja bruxa ou fada.
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Laurinda Rodrigues
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3.
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"Voo sem asas seja bruxa ou fada",
Far-te-ei levitar quando eu quiser
E quando me trespassa a tua espada,
Só por instantes me verás sofrer;
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Terei morrido um pouco, um quase nada,
Pra noutro quase nada reviver...
Sei bem que voltarás, que é denodada
A tua força e enorme o teu poder.
*
Venci-te quatro vezes, mas sei lá
Qual de nós vence a próxima batalha...
Sei bem que não és boa nem és má,
*
Que, ao matar, não cometes uma falha,
A menos que te encontres com quem vá
Tecendo a própria Vida, malha a malha.
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Maria João Brito de Sousa - 05.05.2021 - 15.50h
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4.
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"Tecendo a própria Vida, malha a malha"
é o que fazemos todos, distraídos...
Às vezes, serenidade é que nos falha
para saudar a morte, divertidos.
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Tratam a morte como fora tralha
porque acabou o gozo dos sentidos;
mas afinal o corpo é que atrapalha:
o corpo é o centro dos gemidos.
*
Glorifiquemos, pois, a nossa alma
que tem, em si, potencial da calma
que atravessou o medo de morrer...
*
Não tratemos o medo como um trauma!
Olha a linha da vida em tua palma
e vais contar os anos para viver!
*
Laurinda Rodrigues
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5.
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"E vais contar os anos pra viver(!)"
Embora esteja, a minha, retalhada
E tão sumida que a mal posso ver,
Se bem que já não veja quase nada...
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Só nestes dedos meus posso inda crer
Já que, encontrando a tecla procurada,
Vão imprimindo o verso que nascer
Da minha mente sempre apaixonada
*
Por palavra plasmada numa ideia
Cuja sonoridade ecoe em mim,
Depois... de novo a chama me incendeia
*
E tudo ocorre exactamente assim;
Qual borboleta em torno de candeia,
Vou viver deslumbrada até ao fim!
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Maria João Brito de Sousa - 05.05.2021 - 20.53h
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6.
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"Vou viver deslumbrada até ao fim":
O caminho é tão belo, que antevejo
reencontrar, bem perto de mim,
aqueles a quem quisera dar um beijo.
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E, numa dança nua, sem que o pejo
venha repudiar-me ser assim,
eu, a deslumbrada, só desejo
ter o perfume doce de um jasmim.
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E, perfumada a flor, mesmo distante,
irão reconhecer-me nesse instante
porque a morte não mata a identidade.
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Medo? Afinal, é medo de um mutante
que percorreu a vida como errante
sem saber até hoje O QUE É VERDADE.
*
Laurinda Rodrigues
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7.
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"Sem saber até hoje o que é VERDADE"
Vivemos todos nós, ó morte certa;
É, na verdade, eterna a descoberta
Desta nossa infinita insaciedade.
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Quanto mais se procura mais se evade
Por uma porta que está sempre aberta;
Tentar segui-la é viver sempre alerta
E conquistá-la é dar-lhe liberdade.
*
Morta, a identidade é transmutada
No bolo alimentar da própria vida;
Só a memória fica, ou não, plasmada
*
Nos que vão adiando essa partida
Pró reino da matéria inanimada
Que, tarde ou cedo, é coisa garantida.
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Maria João Brito de Sousa - 06.05.2021 - 11.02h
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8.
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"Que, tarde ou cedo, é coisa garantida"
pois, antes de nascer, quem perguntou
se eu queria ser um Ser no seio da vida
com forma do humano que é que sou!
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Terei sido uma forma consentida
que qualquer outro Ser encomendou
e, de repente, viu-se de partida
para um ventre materno que o gerou?
*
Quero saber! Exijo que alguém diga:
tenho direitos que este mundo obriga
e o pensamento apenas não me basta!
*
Ouço uma voz, sem nexo, que desliga
entre ser uma águia ou ser formiga
como um` alma imortal que, em terra, pasta.
*
Laurinda Rodrigues
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9.
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"Como um` alma imortal que, em terra, pasta"?
Se é essa a tua busca, já foi minha
Quando era tão, mas tão pequenininha
Que mal recordo a minha imagem gasta...
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Era uma cria humana, ingénua e casta
Filosofando como quem gatinha;
Não perguntava, lia! Quem detinha
Uma mente a quem nunca a crença basta?
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Bem cedo o descobri; tudo é mudança!
Tudo é passagem, transitoriedade,
E apesar de ser uma criança
*
Abracei logo a relatividade,
Na evolução pus toda a confiança
E entendi que há um fim prá identidade.
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Maria João Brito de Sousa - 06.05.2021 - 13.17h
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10.
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"E entendi que há um fim prá identidade"...
Mas que fim? que razão? onde a encontraste?
É só por seres diferente da unidade
que, em tantos outros tempos, reclamaste?
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Olhando os demais seres que já olhaste
e aceitando a reciprocidade,
em que parte de ti tu validaste
que és um Ser diferente na verdade?
*
Pergunto tantas vezes o que somos
De onde viemos e porque nos impomos
o ver nos outros o que somos nós,
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Que já nem sei se só seremos gnomos
ou, pior!, seremos tão só momos
de extra-terrestres com a nossa voz.
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Laurinda Rodrigues
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11.
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"De extra-terrestres com a nossa voz",
Talvez irmãos da Fada-dos-Dentinhos,
Primos do Quebra-Nozes que, sem noz,
Desistiu de dançar pr` assaltar ninhos...
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Podemos até crer em rios sem foz,
No Lobo Mau e até nos três porquinhos,
Mas eu prefiro crer que somos nós
Feitos de nervo e carne sobre ossinhos.
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Nunca te impus aquilo que aprendi;
Crerás em quanto entendas poder crer
E eu crerei naquilo que escolhi.
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Extra-terreste? Não, não posso ser!
Foi no planeta Terra que nasci,
Sou, portanto, terrestre até morrer.
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Maria João Brito de Sousa - 06.05.2021 - 20.38h
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12.
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"Sou, portanto, terrestre até morrer"
mas sempre interligada com o luar
que me inspirou a Musa acontecer
sem que deixe de amar a luz solar.
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Não faço caminhadas a correr
porque o meu corpo desistiu de andar:
estou aqui a cantar e a escrever
até deslumbramento terminar.
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E, então, deixo invadir serenidade
no espaço do vazio dessa verdade
de ter amado tanto e ser amada...
*
Não tenho nem desejo, nem saudade:
sou toda uma expressão da eternidade
que, depois de se abrir, ficou calada.
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Laurinda Rodrigues
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13.
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"Que, depois de se abrir, ficou calada"
Porque a morte é silêncio e paz imensa,
Mas, quando viva, deixaste pegada,
Como outro qualquer ser que sente e pensa
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E nada disto é coisa imaginada
Que essa pegada é muito mais intensa
Do que o vôo ideal de qualquer fada
E nem o Tempo a torna menos densa...
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Vês as marcas do Tempo no teu rosto?
Tal como a ti os anos te moldaram,
Também moldaste tu. Foi-te isso imposto.
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Sem que o sonhasses, teus rastos ficaram;
Perduram, na alegria e no desgosto,
Os traços que os teu pés e mãos gravaram.
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Maria João Brito de Sousa - 06.05.2021 - 22.32h
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14.
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"Os traços que os teus pés e mãos gravaram"
no chão imaginário da poesia,
mesmo depois de Ti no chão ficaram
porque de Ti ficou toda a energia.
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Uma energia que os dias não contaram
porque não tem relógio a fantasia
nem há tempo para os traços que traçaram
a rede mágica, que ficou vazia.
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Não há rosto com rugas no Outro Eu
que te acompanha como fosse céu
onde uma lua enorme se avizinha...
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Olhas para mim? Para este corpo meu?
Achas que alguma coisa se perdeu
"quando vieres por mim, logo à noitinha"?
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Laurinda Rodrigues
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Trabalho em pré-edição
Reservados os direitos autorais