VERSOS DO DESENGANO - Mª João Brito de Sousa e Custódio Montes
VERSOS DO DESENGANO
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Coroa de Sonetos
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Mª João Brito de Sousa e Custódio Montes
1.
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O Mundo não me vê. Sou invisível
Como as teimosas ervas dos caminhos
E estes meus versos frágeis, comezinhos,
Não passam de um rumor quase inaudível...
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Não fosse eu tão humana, perecível
E eterna escrava dos meus desalinhos...
Mas os astros também morrem sozinhos
E nem esse teu deus foi infalível!
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O que é o Mundo, amor que um dia amei,
Se não a rocha astral em que me sei
Até que um dia deixe de saber-me
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E se os infindos beijos que deixei
Nos versos dos poemas que engendrei,
Não me tornam maior que um simples verme?
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Mª João Brito de Sousa
16.04.2022 - 11.45h
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Memorando o soneto VERSOS DE ORGULHO de Florbela Espanca
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2.
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“Não me tornam maior que um simples verme”
Mas isso é quem pensa sem noção
Daquilo que é a humana gestação
O tempo do começo no seu germe
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Eu nasci são, sem nada que me enferme,
Seguindo meu caminho em construção
Bem preso à charrua e ao timão
Revejo-me orgulhoso logo ao ver-me
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A terra esconde o verme que a perfura
E longe vá o agoiro que perdura
Desse vesgo plebeu cego e imundo
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Meus versos são de amor e de desejos
Só isso é que me apraz e os teus beijos
E nada mais eu quero neste mundo
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Custódio Montes
18.4.2022
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3.
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"E nada mais eu quero neste mundo"
Que a grandes faustos nunca ambicionei:
Ah, entendesses tu quanto eu te amei,
Sentisses o sentir de que eu me inundo...
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Disseste "sim" e havia um "não" rotundo
Por detrás desse "sim" que então escutei:
Se a incompreensão te perdoei,
Não pude perdoar-te aquele segundo
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Ah, sei que exigi muito. Exigi tudo!
Exigi-te o cantar quando eras mudo
E até surdo às cantigas que eu cantava...
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Só então despertei porque antes disso,
Pra proteger-te deste estro insubmisso,
Fui vulcão que digere a própria lava.
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Mª João Brito de Sousa
19.04.2022 - 15.45h
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4.
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“Fui vulcão que digere a própria lava”
Mas sonhei-te uma flor de primavera
E lá se foi o sonho, a quimera
Que tão louco por ti eu me encontrava
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Bem sabes, não te amava como escrava
Que escravo era eu, que o amor gera
A ânsia de te ter à minha espera
Como à espera de ti eu me encantava
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Querer tão só amor eu não queria
Mas ter-te plenamente, dia a dia…
A tua boca, os olhos, muito mais
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Sentia o teu pulsar cada momento
Mas fugiste de mim tal como o vento
Que vibra e foge e não volta jamais
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Custódio Montes
19.4.2022
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5.
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"Que vibra e foge e não volta jamais",
Sim, assim fiz depois do desengano,
Mas não te culpo, eras tão só humano
E eu quis-te mais que humano. Amei demais.
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Levei-te às profundezas viscerais
De um amor que aos comuns só causa dano:
Disseste-mo e eu puni-me, ano após ano,
Por excessos que, afinal, eram normais...
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Por enquanto só isto entendo e sei
Que não erraste tu, nem eu errei:
Aquele caminho a dois findara ali
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E nunca uma ribeira, de repente,
Pode correr pra trás, para a nascente,
Quando a voz de uma foz chama por si...
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Mª João Brito de Sousa
19.04.2022 - 18.45h
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6.
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“Quando a voz de uma foz chama por si…”
A água segue então o seu caminho
Às vezes segue até devagarinho
Que muitas vezes eu assim a vi
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Torneia um obstáculo aqui
E outras vezes salta em corridinho
Reflete as suas margens com carinho
Como também às vezes eu senti
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Passado é passado mas a gente
Volta atrás quando ele de repente
Nos lembra essas chamas, o calor
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Que sobe e nos inunda o coração
E nesse sentimento e visão
Para-se a contemplar o nosso amor
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Custódio Montes
19.42022
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7.
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"Para-se a contemplar o nosso amor"
Mas, neste caso, estou no meu passado,
Este "hoje" nem sequer foi vislumbrado
E há, em mim, uma chaga aberta em flor
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Só por instinto ignoro ou venço a dor,
Desconheço este mundo debochado,
Arrisco a cada passo um passo errado
E há mais lodo que lótus em redor...
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É deste filme antigo - e dentro dele -
Que hoje te falo enquanto visto a pele
Firme e sem rugas que então me cobria:
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Não faço ideia do que irei fazer,
Nem sei sequer se irei sobreviver,
Mas sei que fiz aquilo que devia.
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Mª João Brito de Sousa
19.04.2022 - 20.36h
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8.
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“Mas sei que fiz aquilo que devia”
Fiel à minha luta sem quartel
E sempre muito preso ao meu papel
De te ter junto a mim em companhia
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Mas quando se passava mais um dia
Sentia as minhas queixas em tropel
A mágoa por me seres infiel
Que aguentar a dor não mais podia
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E ando desenvolto sem parar
Sentado a ver o sol a ver o mar
E olho ao redor a ver a imagem
*
Dum voo de andorinha ao sol poente
Também voo e penso em tom dolente
Nos sonhos que me chegam dessa imagem
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Custódio Montes
19.4.2022
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9.
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"Nos sonhos que me chegam dessa imagem"
Que às vezes vem poisar nos sonhos meus,
Há poemas pagãos, versos ateus
Que se olham e, por vezes, interagem
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Não sei se são reais, se são miragem,
Se são suaves e frágeis como os véus
Que os cirros vão espalhando pelos céus
Enquanto o vento os leva na romagem...
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E sou jovem de novo, quem diria,
Que àquilo que vivi retornaria
Plo tempo que me fosse necessário
*
Pra compor uma C`roa de sonetos?
Serão estes meus versos obsoletos
E terei feito em vão este calvário?
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Mª João Brito de Sousa
19.04.2022 - 23.00h
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10.
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“E terei feito em vão este calvário?”
Calvário também há para se amar?
Sofrer sofre-se sempre que sonhar
Tem custo, esse custo necessário
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Para o suor do rosto há um sudário
Que levamos connosco ao se andar
E a alegria sucede-se ao penar
Nas veredas do nosso itinerário
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Na vida há tristezas e alegrias
Que surgem cada hora pelos dia
Não se vive sem esse condimento
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E quando recordamos o passado
Revive-se o segundo apaixonado
E vai-se todo o nosso sofrimento
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Custódio Montes
20.4.2022
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11.
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"E vai-se todo o nosso sofrimento"
Se houve um passado que sofrer nos fez...
Responderia que "talvez, talvez...",
Mas nesta C`roa o tempo passa lento
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E eu revivo ainda esse momento
Enquanto vou revendo o que nem vês:
Se nunca me entendeste como crês
Que eu possa celebrar o que lamento?
*
Aqui, no meu presente, o teu futuro
Desfasou-se do meu. Se algo procuro
É o que sempre a ti te ultrapassou
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Nenhum de nós o soube, no passado,
Por isso caminhámos lado a lado
Sem que sequer sonhasses quem eu sou
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Mª João Brito de Sousa
20.04.2022 - 11.00h
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12.
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“Sem que sequer sonhasses quem eu sou”
Que o sonho anda ao longe e a realidade
A cada um se ajusta na vontade
De só amar aquilo que se amou
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E sem correspondência aqui estou
Neste triste lamento que a saudade
Me faz voltar atrás àquela idade
Onde todo o amor se me esfumou
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Mas é assim a vida que o viver
Anda sempre em vaivém a acontecer
E a vida é sofrer além de amar
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Por isso, não me importa o sofrimento
Nem eu continuar neste lamento
Que alegre é bem melhor a gente andar
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Custódio Montes
20.4.2022
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13.
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"Que alegre é bem melhor a gente andar"
E se amor`s há profundos qual vertigem,
Outros há que rasinhos desde origem
Nem sequer vale a pena aprofundar...
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Tentar como eu tentei vai redundar
Nos duros desenganos que me afligem:
Desfeito o nó, não doem, não me atingem,
Deixam de ter o dom de me enganar...
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Caminho agora no tempo presente
E embora imóvel bem mais livremente
Do que na juventude aqui trazida
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Treze sonetos. Décadas passaram
Entre o primeiro e os mais que se somaram
Aos desenganos desta minha vida.
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Mª João Brito de Sousa
20.04.2022 - 13.00h
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14.
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“Aos desenganos desta minha vida”
Juntam-se outros que agora recordei
São vivências de outrora em que andei
Com a alma encantada mas perdida
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Eu via tudo à volta da ermida
Que no monte mais alto edifiquei
Que depois de a erguer desmoronei
Sem que ninguém a visse destruída
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O rumo dessa história pereceu
Que um manto invisível escondeu
Num amor que então era perecível
*
Embora mostre ao mundo a minha dor
E a triste e longa mágoa desse amor
“O mundo não me vê. Sou invisível”
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Custódio Montes
20.4.2022
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