Maria João Brito de Sousa
HOJE HÁ VAGAS!
* Coroa de Sonetos *
Mª João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues *
1 *
No mundo dos versos nascidos de humanos
Descubro um poema que cheira a suor,
Que pode trincar-se, que fede a bolor,
Que treme de frio coberto de panos, *
Que pinga das bicas, que escorre dos canos
De esgoto da casa de um trabalhador
Que ostenta as mazelas sem qualquer pudor,
Que geme de dor, que desmente os enganos... *
No mundo dos versos dos homens reais
Se sonhos encontro, procuro bem mais
Do que fantasias com asas douradas *
E se por achá-lo todos vós me achais
Inconveniente ou rebelde demais,
Replico,"hoje há vagas"; portas arrombadas! *
Mª João Brito de Sousa
03.02.2022 - 15.45h ***
2. *
"Replico "hoje há vagas", portas arrombadas!"
Eterno retorno: as salas vazias,
Paredes sem cor, janelas fechadas,
Imenso silêncio com palavras frias... *
Procuro pelos cantos. Onde estão as fadas?
Ou apenas há monstros para nos inspirar?
Encontro-te a ti, cantando baladas
Que me fazem rir, depois de chorar. *
Quero arrebatar-me da tua loucura
que atravessa o céu nesta noite escura
onde o chamamento é apenas som. *
Se somos diferentes na mesma leitura,
Se tanto ganhamos na sorte mais escura,
A vida é um sonho mas um sonho bom! *
Laurinda Rodrigues ***
3 *
"A vida é um sonho mas um sonho bom",
Quando se acredita, quando cá no fundo
Sabemos ter dedos pra moldar o mundo
E a vontade imensa de mudar-lhe o tom *
Que asas têm penas, não só de "crepon"
Os meus versos cubro quando del`s me inundo;
Por vezes recuso, lanço um NÃO rotundo
Aos que me acenderem luzes de Néon *
Quando um outro fogo me aquece as entranhas
E Simon dedica versos às montanhas
Enquanto Garfunkel faz vibrar as notas... * *
Quem escuta o silêncio dos que não se atrevem
A afrontar os grandes que tudo lhes devem?
Sorrirão as fadas aos das roupas rotas? *
Mª João Brito de Sousa
03.02.2022 - 18.25h *
* The Sound of Silence - Paul Simon/Art Garfunkel ***
4. *
"Sorrirão as fadas aos das roupas rotas"?
Por dentro de tudo, que estranha visão:
Crateras na carne como Aljubarrotas
Ou regresso, em sonho, D. Sebastião? *
Me agarro às amarras que têm as frotas.
Navego sem norte. Regresso ao porão.
Aqui não te encontro nem sequer me notas
É o tal silêncio. Maga escuridão. *
Quem quiser saber o mistério denso
Que se avulta em mim quando te pertenço
Envolta nas sombras de um gesto parado... *
Pergunte aos desenhos escritos no lenço
Que vou oferecer-te e julgo que venço
Essa solidão que me evoca Fado. *
Laurinda Rodrigues
***
5 *
"Essa solidão que me evoca Fado"
Mas Fado não sendo, pode ser trincheira
Onde habita a Musa minha companheira
E nela a encontro (se acaso lhe agrado) *
Pois é caprichosa, há que ter cuidado!
Se vem de bom grado, toma a dianteira,
Escreve tão depressa que "vai de carreira"
C´o pouco que apenas tinha começado... *
Ela é sempre jovem, nunca teve idade,
E eu vou tropeçando na velocidade
Que ela impõe aos versos de que mais gostar *
Nem Aljubarrota nem Sebastião
Podem ser mais fortes do que as musas são
Quando se decidem a poetizar... *
Mª João Brito de Sousa
03.02.2022 - 20.08h ***
6. *
"Quando se decidem a poetisar",
Humanos caminham com outros p'la mão
Que, ao ser conscientes, fazem recordar
Como o sonho é vago e vaga a razão. *
No espelho da alma retratam a mão
Com linhas dispersas, que dão p'ra pensar,
Sobre este destino que é o nosso chão
Onde, sem escolher, temos de pisar. *
Cobertos de medo, preparam a fuga.
De olhos abertos (que o saber enxuga)
vão a caminhar para o fim da existência... *
Conhecem a voz de longe, que os suga,
Mas o som dos versos, que o vento madruga,
Será, certamente, a sua referência. *
Laurinda Rodrigues ***
7 *
"Será, certamente, a sua referência"
Tal como o será a vida que acolheram
E os passos que somam aos passos que deram,
Desde que esses passos marquem a cadência *
Porque aos passos dados soma-se a consciência
Do que vão perder e do que já perderam
E ganharam força (toda a que puderam)
Nos sons que se esmeram nessa mesma urgência... *
Se é velho, o guerreiro que andar não consegue,
Não será por isso que os passos renegue,
De outra forma avança pela mesma estrada *
E vai-se esquecendo da dor que o persegue;
Se a velhice pesa, que a Musa a carregue,
Que ela bem mais pode não podendo nada. *
Mª João Brito de Sousa
04.02.2022 - 11.15h ***
8 *
"Que ela bem mais pode não podendo nada"
Um nada que encobre o Todo da vida
Presa nos seus dedos na palma fechada
Que, em tempos de guerra, serve de guarida. *
Nessa luta inglória onde já foi ferida
mas sempre cantou a sombra, encarnada
De palavras doces mas sempre temida
Por quem não conhece pr'além da fachada... *
Retornemos ora, na luz e na paz!
Porque toda a idade mostra que é capaz
De tecer a arte e criar do Nada. *
E, em palcos humanos, em gesto tenaz,
Aceita o que é e não é capaz
Canta a despedida, cantando balada. *
Laurinda Rodrigues *
9 *
"Canta a despedida, cantando balada"
E sempre seguro, dando o seu melhor,
Quer, enquanto vivo, ver que dão valor
Ao que é construído na sua empreitada *
E do pão cozido naquela fornada
Nascerão poemas com melhor sabor,
Que um travo de raiva traz outro de amor,
Fatia a fatia, dentada a dentada *
E se o gás é caro, se o arroz escasseia,
Se o feijão não cabe onde o poema ateia
Chamas tão fugazes que se desvanecem, *
Prefiro a modesta chama da candeia
Que, sendo real, toda me incendeia
Sempre que a aproximo dos fios que me tecem. *
Mª João Brito de Sousa
04.02.2022 - 13.50h
***
10. *
"Sempre que a aproximo dos fios que me tecem",
Deixo que essa vela me encha de calor...
E as almas alheias, nesse gesto, aquecem
Relaxando o corpo à espera do amor. *
P'ra que tantos choros agora acontecem?
Não querem esperar que se acabe a dor?
Não sabes que a mente nossos erros tecem
Parecendo que são versos de amador? *
Posso dar-te pão, cozido na aldeia
Onde há forno aceso, ao ser lua cheia
e os lobos pressentem o cheiro a comer... *
Assim conjugadas em voz, numa teia,
Esperamos que alguém nos ouça ou nos leia,
Nos faça sentir, pensar ou viver. *
Laurinda Rodrigues ***
11 *
"Nos faça sentir, pensar ou viver"
Quem nada sentindo em viver pensasse
E em ventos de proa que a barca enfrentasse,
Pudesse algum sonho tomar forma e ser *
Já desmaia o dia num entardecer
Sem ter de aguardar por pintor que o pintasse
E o Sol que esmorece fica num impasse
Que a noite depressa virá resolver... *
Vão cozendo os versos que amassámos juntas
Feitos de incertezas, cheios de perguntas
Que ou terão resposta, ou nunca a terão *
Quando tudo pronto, será partilhado
Inteiro, um poema, bocado a bocado,
Que para poetas também isto é pão... *
Mª João Brito de Sousa
04.02.2022 - 17.45h ***
12. *
"Que para poetas também isto é pão"
Cheiroso, macio, para regalar
Os olhos, a boca e o coração
de quem nossos versos queira partilhar. *
Depois, esvaídas com tanta paixão,
Olhamo-nos nuas sem véus a tapar
O que fez de nós um forte cordão
Que a força do tempo não pode quebrar. *
Somos atrevidas, rebeldes, profundas
Quando assim tecemos nossos versos juntas
E, sem pretensões, abrimos caminhos... *
Na estrada há veredas que são as perguntas
Mesmo que as respostas sejam desconjuntas
Ficamos felizes: criamos os ninhos. *
Laurinda Rodrigues *
13 *
"Ficamos felizes: criamos os ninhos"
Onde haverá vagas para toda a gente
Quando esse futuro se tornar presente,
Depois de um passado crivado de espinhos *
Das mãos dos pisados, dos que estão sozinhos,
Dos muitos que lutam por algo diferente,
Nascerá um dia o que se pressente
Ser o mais humano dos nossos caminhos *
E enquanto isto escrevo, porque mais não posso,
Vai-te preparando que o poema nosso
Veio arrombar portas que estavam fechadas... *
Uma que arrombasse e que bom seria
Termos apostado nesta parceria
Que acolhe palavras rotas e suadas! *
Mª João Brito de Sousa
04.02.2022 - 29.50h ***
14. *
"Que acolhe palavras rotas e suadas"
Em vírgulas, pontos, em linhas e espaços
Onde cabem risos, choros e abraços
E a filosofia de sábias mimadas. *
Tu teimas, insistes. Ficamos caladas.
Depois, só os gestos. Os gestos em traços
de provocações feitas de embaraços
que os outros perdoam por sermos aladas. *
Memória do tempo liberto da vida
Agora suspensa, agora perdida
Pelos desencantos, pelos desenganos... *
Por muito que esqueça nunca são esquecidas:
Todos são eternos, todas são queridas
"no mundo dos versos nascidos de humanos." *
Laurinda Rodrigues ***
NOTA IMPORTANTE PARA A COMPREENSÃO DESTE LONGO TEXTO POÉTICO - O primeiro soneto desta Coroa foi inspirado no poema NÃO HÁ VAGAS , de Ferreira Gullar
publicado às 22:33
Maria João Brito de Sousa
TELA * Coroa de Sonetos *
Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues ***
1. *
"Chama que a cada gesto espelha a alma"
Ou mesmo alma que em chamas se acendeu,
Assim seremos nós, pintor e eu,
Que em tal labor ninguém nos leva a palma *
Numa exacerbação que nos acalma
Porquanto ao paradoxo se rendeu,
Nada se perde quando se aprendeu
A tudo ver, mesmo sem ver vivalma... *
Pintei ideias que de mim nasciam
E é dessa mesma forma que hoje escrevo;
Não sei se via além do que outros viam, *
Nem sei se digo mais do que o que devo...
Não vendo o que os meus olhos prometiam,
A pouco, ou nada mais, hoje me atrevo. *
Maria João Brito de Sousa - 01.06.2021 - 15.40h
*
Soneto criado a partir do verso final do soneto PALETA de Gil Saraiva.
***
2. * "A pouco, ou nada mais, hoje me atrevo"
não sabendo se existe um amanhã...
Mas é aqui e agora que me enlevo
jogando ao claro-escuro com afã. *
Pinturas ou palavras, as que levo
em vibrações da minha mente sã,
são as pétalas de uma flor de trevo
que desflorei numa atitude vã... *
Procurava a resposta: "muito ou pouco"
que faz da minha vida um mundo louco
que nem eu sei porque caminho assim... *
Badaladas de sinos, som já oco
que repõe a música do ronco
que a minha voz ecoa sem ter fim. *
Laurinda Rodrigues ***
3. *
"Que a minha voz ecoa sem ter fim"
Por vales e montanhas sem começo
E sendo exactamente o que pareço,
Sou quem regula a chama acesa em mim, *
Grata, talvez, por ter nascido assim,
Mas menos grata quando pago o preço
De cada queimadura que não peço
Aos deuses que expulsei do meu jardim. *
Do muito, passo ao pouco... ao quase nada...
De quase nada, muito e pouco faço;
Se me desgraço, torno-me engraçada *
E se amorosamente aqui te abraço,
Podes sentir-te, ou não, tão enredada
Quanto as fiadas em que me embaraço... *
Maria João Brito de Sousa - 03.06.2021 - 17.14h ***
4. *
"Quanto as fiadas em que me embaraço"
eu quero partilhar os fios desse novelo
e seja só em verso que há o abraço
sinto o deslumbramento de tecê-lo. *
E pondo mais enredo nesse elo
que é apenas da história mais um passo
vai soneto mutar romance e, ao lê-lo,
percebe-se que é tudo tempo e espaço. *
Sofridas - não doridas - mas libertas
de escolher estar fechadas ou abertas
num mundo que nos lê ou nos ignora, *
Glorifico as paisagens, já desertas
de medos e lamentos, como alertas
de quem caminha em frente enquanto chora. *
Laurinda Rodrigues ***
5. *
"De quem caminha em frente enquanto chora"
Deixando atrás de si um mar de sal,
Vejo, longínquo, o vulto no final
Da estrada em que o seu choro se demora. *
Olhando um mar que é céu naquela hora,
Esboço num breve impulso gestual
O voejar modesto de um pardal
E o de uma exuberante ave canora. *
Junto a uma paleta, a minha a tela
Jaz, por falta de espaço, à beira tempo
E já não vivo eu no mundo dela *
Que é outro o universo em que me invento;
Mudou-se-me esta casa em caravela
E em leme esta cadeira em que me sento. *
Maria João Brito de Sousa - 04.06.2021 - 10.04h ***
6. *
"E em leme esta cadeira em que me sento"
onde flutua a minha inspiração
navegando naquele rio que invento
para, de vez, curar meu coração. *
Gritar bem alto como grita o vento
os temas da alegria e da paixão...
Sendo mais uma a sofrer tormento
acabando os tormentos sem razão. *
Se estou febril, a febre é o sinal
de que todo o meu Ser percorre o mal
de uma humanidade em insanidade... *
Somos a fruta da estação estival
que pode apodrecer sendo real
o sabor de uma luta pela verdade. *
Laurinda Rodrigues ***
7. *
"O sabor de uma luta pela verdade"
É doce como o mel mas de repente
A ssume uma acidez quase adstringente
Que surpreende pela intensidade *
Mas mais nos alimenta essa vontade
De encontrar a verdade em quem nos mente...
Amadurece o fruto inda recente
Da nossa muito humana identidade, *
Veste-se a tela nua à nossa frente
De quanto houver de criatividade
- porque essa nunca morre, é ponto assente - *
E, enfim, se entende a transitoriedade
Daquilo que se pensa e que se sente,
Quando se sente e pensa em liberdade. *
Maria João Brito de Sousa - 04.06.2021 - 12.21h
***
8.
"Quando se sente e pensa em liberdade"
cresce o deslumbramento de existir
de ter nascido Gente de verdade
e não ter de lutar para fugir. *
Porque ter de fugir cria ansiedade
que destrói aquele sonho de partir
p'lo prazer de encontrar noutra cidade
apenas um lugar para divertir. *
Fomos tão nacionais pela raiz
reconhecendo em nós essa matriz
de descobrir, sem ser um navegante... *
E olhamos este mar que apenas diz:
já nada corresponde aquilo que quis!
Estou presa de mim mesma a cada instante. *
Laurinda Rodrigues *** 9. *
"Estou presa de mim mesma a cada instante"
Em que tentar deixar de ser quem sou,
Que a liberdade só me conquistou
Por ser rebelde, utópica e distante... *
De mim, serei eterna navegante
Porque o tempo das fugas já passou;
Mal esta minha tela naufragou
Passei a navegar no verso errante. *
No verso sempre encontro o que procuro
E mais que o que procuro encontrarei
Assim que colha um fruto mais maduro *
Dentre os que ainda agora semeei;
Onde cada colheita for futuro,
Há-de haver espaço para o que eu criei. *
Maria João Brito de Sousa - 05.06.2021 - 20.37h
***
10. *
"Há-de haver espaço para o que eu criei"
pois espaço é relação de mim com alguém...
O tempo não existe: eu o sonhei
sempre presente, agora, aqui e além. *
Vivo comigo, sabendo aquilo que sei.
Quem me visita só virá por bem
alertando para um mundo que deixei
ficar lá fora, a rodar num trem, *
Onde já não viajo há muitos anos
porque viajam nele os muito insanos
que usam os milhões por vestimenta, *
escondendo, no porão, os muitos danos
que são esquecidos, depois de muitos anos
sem ninguém lhes ter dado reprimenda. *
Laurinda Rodrigues ***
11. * "Sem ninguém lhes ter dado reprimenda"
Vivem os amos/servos da riqueza
Vestindo a "caridade" e a "nobreza"
Que num vídeo viral põem à venda *
E assim prosseguem nessa sua senda
De conquistar as graças da pobreza;
Mentiras são anzóis cuja agudeza
Escapa a quem de vileza pouco entenda... *
Assim tornei concreta a tela abstracta;
Mais pincelada, menos pincelada,
Nesta estância da tela se delata *
A grande, a gigantesca mascarada
Em que o capitalismo se retrata;
Todos o servem e nem dão por nada! *
Maria João Brito de Sousa - 06.06.2021 - 11.21h
***
12.
"Todos o servem e não dão por nada"
porque, no seu inconsciente cultural,
resguardam o segredo da montada
num cavalo feito em pérolas e cristal *
Expõem-se então à fúria da nortada
que os submete ao medo de animal
simbolizando o grande camarada
que veio salvá-los da desgraça e mal. *
Esqueceram que são a trilogia
que podem alcançar no dia-a-dia
sem ter de denegar a sua crença... *
Será esse o motivo da poesia
quando deixa de lado a alegoria
que não é sua a voz que a si pertença. *
Laurinda Rodrigues ***
13. *
"Que não é sua a voz que a si pertença"...
Mas agora é só minha a decisão;
Camaradas não são o "grande irmão"
E a minha ideologia não é crença *
Que me assegure privilégio ou tença...
Trago-a na mente e diz-me o coração
Que ao nascer filha da revolução
Me compete cantá-la até que vença *
E, vez por outra, a minha branca tela
Pode encher-se dos traços realistas
De quem morreu lutando, não por ela, *
Mas pelos objectivos humanistas
Cuja memória, morta numa cela,
Ainda me sussurra; "Não desistas!" *
Maria João Brito de Sousa - 07.06.2021 - 12.04h ***
14. *
"Ainda me sussurra: "Não desistas"
porque tudo na vida é transição
e mesmo o mais fatal nos mostra pistas
p'ro reencontro com o nosso coração. *
Ouço falar em histórias de revistas
cheias de sentimentos e emoção...
São, afinal, desfiles em que vistas
o melhor para mostrar à multidão. *
Somos trapos caídos a um canto
onde não chega o riso, nem o pranto,
que dê o privilégio de ter calma? *
Aos chutos, pontapés do desencanto
acendemos o fogo como um manto,
"chama que, a cada gesto, espelha a alma". *
Laurinda Rodrigues ***
(Reservados os direitos autorais)
publicado às 10:20
Maria João Brito de Sousa
QUANDO VIERES POR MIM * Coroa de Sonetos *
Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues * 1. *
Quando vieres por mim, logo à noitinha,
Com o teu negro manto aveludado,
O teu trágico ceptro de rainha
Não me acharás tremendo ajoelhado; *
Estarei escrevendo a derradeira linha
Do terceto final deste meu fado
Que mais ninguém lerá. Quem adivinha
O futuro de um verso assim negado? *
- Volta num outro dia... ou mês, ou ano!
Olhar-me-ás atónita, bem sei,
Pois nada disto estava no teu plano... *
Pressuporás que também eu sou rei
E partirás pra não causar-me dano;
Se dano houve, eu próprio o provoquei. *
Maria João Brito de Sousa - 05.05.2021 - 13.12h
***
2.
"Se dano houve, eu próprio o provoquei"
morbidamente quase, quase louca...
Que sensação perversa que inventei
quando, em vez de beijar, mordi a boca. *
E, com os lábios fechados, intentei
dizer palavras que tem eco a ôca
porque, sem ter pincel, assim pintei
as telas que da vida são já pouca. *
Se querem ver-me apenas na roupagem
no corte de um cabelo, estilo pagem
e na curva da anca desnudada, *
Recomendo que venham de passagem
porque eu sou vento, nunca fui aragem:
Voo sem asas seja bruxa ou fada. *
Laurinda Rodrigues ***
3. *
"Voo sem asas seja bruxa ou fada",
Far-te-ei levitar quando eu quiser
E quando me trespassa a tua espada,
Só por instantes me verás sofrer; *
Terei morrido um pouco, um quase nada,
Pra noutro quase nada reviver...
Sei bem que voltarás, que é denodada
A tua força e enorme o teu poder. *
Venci-te quatro vezes, mas sei lá
Qual de nós vence a próxima batalha...
Sei bem que não és boa nem és má, *
Que, ao matar, não cometes uma falha,
A menos que te encontres com quem vá
Tecendo a própria Vida, malha a malha. *
Maria João Brito de Sousa - 05.05.2021 - 15.50h ***
4. *
"Tecendo a própria Vida, malha a malha"
é o que fazemos todos, distraídos...
Às vezes, serenidade é que nos falha
para saudar a morte, divertidos. *
Tratam a morte como fora tralha
porque acabou o gozo dos sentidos;
mas afinal o corpo é que atrapalha:
o corpo é o centro dos gemidos. *
Glorifiquemos, pois, a nossa alma
que tem, em si, potencial da calma
que atravessou o medo de morrer... *
Não tratemos o medo como um trauma!
Olha a linha da vida em tua palma
e vais contar os anos para viver! *
Laurinda Rodrigues *** 5. *
"E vais contar os anos pra viver(!)"
Embora esteja, a minha, retalhada
E tão sumida que a mal posso ver,
Se bem que já não veja quase nada... *
Só nestes dedos meus posso inda crer
Já que, encontrando a tecla procurada,
Vão imprimindo o verso que nascer
Da minha mente sempre apaixonada *
Por palavra plasmada numa ideia
Cuja sonoridade ecoe em mim,
Depois... de novo a chama me incendeia *
E tudo ocorre exactamente assim;
Qual borboleta em torno de candeia,
Vou viver deslumbrada até ao fim! *
Maria João Brito de Sousa - 05.05.2021 - 20.53h
***
6. *
"Vou viver deslumbrada até ao fim":
O caminho é tão belo, que antevejo
reencontrar, bem perto de mim,
aqueles a quem quisera dar um beijo. *
E, numa dança nua, sem que o pejo
venha repudiar-me ser assim,
eu, a deslumbrada, só desejo
ter o perfume doce de um jasmim. *
E, perfumada a flor, mesmo distante,
irão reconhecer-me nesse instante
porque a morte não mata a identidade. *
Medo? Afinal, é medo de um mutante
que percorreu a vida como errante
sem saber até hoje O QUE É VERDADE. *
Laurinda Rodrigues ***
7. *
"Sem saber até hoje o que é VERDADE"
Vivemos todos nós, ó morte certa;
É, na verdade, eterna a descoberta
Desta nossa infinita insaciedade. *
Quanto mais se procura mais se evade
Por uma porta que está sempre aberta;
Tentar segui-la é viver sempre alerta
E conquistá-la é dar-lhe liberdade. *
Morta, a identidade é transmutada
No bolo alimentar da própria vida;
Só a memória fica, ou não, plasmada *
Nos que vão adiando essa partida
Pró reino da matéria inanimada
Que, tarde ou cedo, é coisa garantida. *
Maria João Brito de Sousa - 06.05.2021 - 11.02h
***
8. *
"Que, tarde ou cedo, é coisa garantida"
pois, antes de nascer, quem perguntou
se eu queria ser um Ser no seio da vida
com forma do humano que é que sou! *
Terei sido uma forma consentida
que qualquer outro Ser encomendou
e, de repente, viu-se de partida
para um ventre materno que o gerou? *
Quero saber! Exijo que alguém diga:
tenho direitos que este mundo obriga
e o pensamento apenas não me basta! *
Ouço uma voz, sem nexo, que desliga
entre ser uma águia ou ser formiga
como um` alma imortal que, em terra, pasta. *
Laurinda Rodrigues ***
9. *
"Como um` alma imortal que, em terra, pasta"?
Se é essa a tua busca, já foi minha
Quando era tão, mas tão pequenininha
Que mal recordo a minha imagem gasta... *
Era uma cria humana, ingénua e casta
Filosofando como quem gatinha;
Não perguntava, lia! Quem detinha
Uma mente a quem nunca a crença basta? *
Bem cedo o descobri; tudo é mudança!
Tudo é passagem, transitoriedade,
E apesar de ser uma criança *
Abracei logo a relatividade,
Na evolução pus toda a confiança
E entendi que há um fim prá identidade. *
Maria João Brito de Sousa - 06.05.2021 - 13.17h ***
10. *
"E entendi que há um fim prá identidade"...
Mas que fim? que razão? onde a encontraste?
É só por seres diferente da unidade
que, em tantos outros tempos, reclamaste? *
Olhando os demais seres que já olhaste
e aceitando a reciprocidade,
em que parte de ti tu validaste
que és um Ser diferente na verdade? *
Pergunto tantas vezes o que somos
De onde viemos e porque nos impomos
o ver nos outros o que somos nós, *
Que já nem sei se só seremos gnomos
ou, pior!, seremos tão só momos
de extra-terrestres com a nossa voz. *
Laurinda Rodrigues *** 11. *
"De extra-terrestres com a nossa voz",
Talvez irmãos da Fada-dos-Dentinhos,
Primos do Quebra-Nozes que, sem noz,
Desistiu de dançar pr` assaltar ninhos... *
Podemos até crer em rios sem foz,
No Lobo Mau e até nos três porquinhos,
Mas eu prefiro crer que somos nós
Feitos de nervo e carne sobre ossinhos. *
Nunca te impus aquilo que aprendi;
Crerás em quanto entendas poder crer
E eu crerei naquilo que escolhi. *
Extra-terreste? Não, não posso ser!
Foi no planeta Terra que nasci,
Sou, portanto, terrestre até morrer. *
Maria João Brito de Sousa - 06.05.2021 - 20.38h ***
12. *
"Sou, portanto, terrestre até morrer"
mas sempre interligada com o luar
que me inspirou a Musa acontecer
sem que deixe de amar a luz solar. *
Não faço caminhadas a correr
porque o meu corpo desistiu de andar:
estou aqui a cantar e a escrever
até deslumbramento terminar. *
E, então, deixo invadir serenidade
no espaço do vazio dessa verdade
de ter amado tanto e ser amada... *
Não tenho nem desejo, nem saudade:
sou toda uma expressão da eternidade
que, depois de se abrir, ficou calada. *
Laurinda Rodrigues ***
13. *
"Que, depois de se abrir, ficou calada"
Porque a morte é silêncio e paz imensa,
Mas, quando viva, deixaste pegada,
Como outro qualquer ser que sente e pensa *
E nada disto é coisa imaginada
Que essa pegada é muito mais intensa
Do que o vôo ideal de qualquer fada
E nem o Tempo a torna menos densa... *
Vês as marcas do Tempo no teu rosto?
Tal como a ti os anos te moldaram,
Também moldaste tu. Foi-te isso imposto. *
Sem que o sonhasses, teus rastos ficaram;
Perduram, na alegria e no desgosto,
Os traços que os teu pés e mãos gravaram. *
Maria João Brito de Sousa - 06.05.2021 - 22.32h ***
14. *
"Os traços que os teus pés e mãos gravaram"
no chão imaginário da poesia,
mesmo depois de Ti no chão ficaram
porque de Ti ficou toda a energia. *
Uma energia que os dias não contaram
porque não tem relógio a fantasia
nem há tempo para os traços que traçaram
a rede mágica, que ficou vazia. *
Não há rosto com rugas no Outro Eu
que te acompanha como fosse céu
onde uma lua enorme se avizinha... *
Olhas para mim? Para este corpo meu?
Achas que alguma coisa se perdeu
"quando vieres por mim, logo à noitinha"? *
Laurinda Rodrigues ***
Trabalho em pré-edição
Reservados os direitos autorais
publicado às 10:50
Maria João Brito de Sousa
VIAGEM *
COROA DE SONETOS
*
Laurinda Rodrigues e Maria João Brito de Sousa
* 1 *
Desço ao fundo de mim, ao inconsciente onde dormem vivências esquecidas. Sei que naquilo que sou já fui diferente e que hei-de ser diferente noutras vidas. *
Sou toda um Uni-verso entrelaçado de peças materiais que vão expandindo. Fico parada a olhar o céu alado, sentindo uma pulsão que está abrindo. *
Meu outro Ser perdurará na luz que me envolveu na terra feita em cruz que não pode fugir ao seu destino... *
Mas é aqui e agora que me afirmo: mesmo que o corpo caia no abismo a alma cantará, convosco, um Hino. *
Laurinda Rodrigues *
2 *
"A alma cantará, convosco, um hino"
Até depois da vida anoitecer
Enquanto se souber que fui menino,
Enquanto alguém lembrar que fui mulher *
Na memória persiste o tal destino
Que bem longo será se alguém me ler;
Assim o vejo há muito, assim defino
Viagem, vida e espanto de viver. *
De mim, da minha própria identidade,
Terá sobrado o verso que se evade
À decomposição inexorável *
Do que foi o meu corpo passageiro;
Cigarro aceso à beira de um cinzeiro
De porcelana breve e descartável. *
Maria João Brito de Sousa - 19.10.2020 - 13.43h
*
3 *
"De porcelana breve e descartável"
ouço cair estilhaços pelo chão
e um riso perverso insaciável
atravessou o espaço da Razão. *
Talvez seja o diabo em sintonia
com a nossa condição de ser mortais
ele é sempre julgado à revelia
no tribunal dos loucos amorais. *
Mas não se iludam! Esse demo existe
bem no fundo de nós, onde persiste
uma história de erros, frustrações... *
Afinal, a loucura pouco importa
se é, com ela, que o poeta exorta
o mundo turbulento das paixões. *
Laurinda Rodrigues *
4 *
"O mundo turbulento das paixões"
Faz do Olimpo um nada, uma sequela;
No palco dos heróis e dos vilões
Desta realidade paralela *
Há gigantes que fogem dos anões
E a Fera é perseguida pela Bela
Enquanto os anjos brincam com dragões
E a bruxa se transmuta em Cinderela. *
No mais fundo de mim, se o demo existe,
Procuro descobrir-lhe o vulto triste
Mas não lhe encontro rasto e nem o faro *
Me dá qualquer sinal de outra presença
Que de mim mesma não seja pertença;
Será a sua ausência um caso raro? *
Maria João Brito de Sousa - 19.11.2020 - 16.22 h *
5 *
"Será a sua ausência um caso raro?"
ou o transporte ao Olimpo é de avião
e não viu lá de cima o exemplo claro
da luta do gigante com o anão? *
É preciso esperar pousar na pista
sem muita turbulência na aterragem
para que o piloto hábil lhe resista
sem medo de entrar em derrapagem. *
Porque isto de emoções tão reprimidas
que fogem ao arbítrio do Rei Midas
na decisão de ser um demo ou anjo *
é, mesmo, o velho tema do destino
(porque nasceu mulher e não menino)
porque toca piano em vez de banjo? *
Laurinda Rodrigues *
6 *
"Porque toca piano em vez de banjo"
Quem no trompete ou na guitarra é ás?
Quem lhe imporá tamanho desarranjo
Ao afastá-lo do que mais lhe apraz? *
Nestas perguntas, mais tempo não esbanjo;
Não quero incomodar, sendo tenaz,
Quem disto saiba mais que quanto abranjo
E, em coisas destas, nunca fui sagaz... *
Às emoções, porém, nunca reprimo
Que a toda a hora as rondo, sondo e esgrimo
Com grande habilidade e destemor *
E aos temas nunca escolho. O meu escolhido
É sempre um som que aflora ao meu ouvido
E me enfeitiça e se me sabe impor. *
Maria João Brito de Sousa - 20.11.2020 - 11.18h
* 7
"E me enfeitiça e se me sabe impor"
como uma vaga que cresce sem aviso
alerta o marinheiro para compor
o sentido que o leva ao paraíso... *
Ele não está preparado mas aceita
deixar a onda desfazer na praia...
Não tem sabedoria nem receita:
o instrumento toca aquilo que ensaia. *
Mas não esqueceu o tema desta vida:
"em frente camarada" destemida!
não há razão que te perturbe o Ser. *
Músico ou poeta ou marinheiro
o canto das estrelas cabe inteiro
na mutação que vai acontecer. *
Laurinda Rodrigues *
8 *
"Na mutação que vai acontecer"
E vai acontecendo a cada instante
Do que a mãe-tecelã está a tecer
No seu velho tear desconcertante. *
Decerto nos irá surpreender
A criatividade galopante
Que esse velho tear demonstra ter
Na sua actividade que é constante. *
Viaja a tecelã no fio que fia
E viajamos nós em sintonia
Com trama fiada e por fiar, *
Que é porfiando que tudo se cria
E a trama é tal qual uma melodia
Quer nasça de um piano ou de um tear. *
Maria João Brito de Sousa - 20.11.2020 - 15.02h
* 9 *
"Quer nasça de um piano ou de um tear",
a mão, que tece, é sempre a mão que cria,
na inspiração do eterno respirar
de uma alma tremendo em fantasia. *
Fantasia de fada ou de duende,
de uma ave canora ou imitação...
Aquele, que comunica, fogo acende
seja de amor sublime ou perversão. *
Não é ardil nem sonho camuflado
de palavras subtis de um Ego inflado
pela competição de seus iguais... *
O papagaio repete aquilo que ouviu
mas, se for transcendente, conseguiu
despertar o segredo dos mortais. *
Laurinda Rodrigues *
10 *
"Despertar o segredo dos mortais"
É dar-lhes um lugar nesta viagem
Na qual sempre há lugar pra muitos mais,
Ainda que alguns pensem ser miragem *
Viajar-se nas lonjuras dos murais,
Nunca tentando agir como outros agem,
Perdendo o Norte aos pontos cardeais
E levando a Garcia outra mensagem. *
O guia é sempre um ponto de partida
E nem sempre a viagem concebida
Naufraga em perfeição, tendo sucesso. *
O que importa é cantar, que um hino à vida
Vem de uma voz que é tanto mais ouvida
Quão mais se perca durante o processo. *
Maria João Brito de Sousa - 21.11.2020 - 13.51h
*
11. *
"Quão mais se perca durante o (seu) processo"
em conexão com outros peregrinos
que atravessam o mar do insucesso
por nunca recusarem seus destinos, *
será uma montanha de ilusões
ascendendo no ar, quando nascer,
mas, quando o sol se esconde nos porões,
vai deitar-se na proa para morrer. *
Reavalia, então, o ofuscamento
que fez da sua vida esse tormento
de tanto querer e ter como pessoa *
E vê pontos de luz que vão chegando
à sua consciência, decifrando
o mal que tanto fez e não perdoa. *
Laurinda Rodrigues *
12 *
"O mal que tanto fez e não perdoa",
Porque não nasce, o mal, pra perdoar,
Mas pr`aumentar a dor do que já doa
Mesmo antes desse mal se anunciar. *
Mal fica quem viaja e fica à toa,
Mas pior ficará quem nunca ousar
Seguir o tal tal apelo que destoa
Do que é tido por norma ou por vulgar. *
Só não se atreve quem de si não gosta
Ou quem é surdo e cego e tudo aposta
Numa rota alheada e comedida; *
Esse, que à tempestade sempre arrosta,
Pode - quem sabe? - nem chegar à costa,
Mas até no naufrágio encontra vida. *
Maria João Brito de Sousa - 21.11.2020 - 15.53h *
13 *
"Mas até no naufrágio encontra vida"
escolhendo livremente naufragar
sem nunca desejar contrapartida
por ter salvo outro ser de se afogar. *
Com humildade, enfrenta a turbulência
desse vento feroz, que não esperava
destruísse o sentido da existência
a quem só na matéria acreditava. *
E aporta o barco no porto criador
escondendo na rocha a sua dor
pela dor de outro Eu sobrevivente. *
E, apelando à coragem e à união,
deixa no mar os restos da ilusão
que possa a humanidade ser diferente. *
Laurinda Rodrigues *
14 *
"Que possa a humanidade ser diferente",
Mais justa, igualitária, equilibrada
Do que a que hoje se curva ao prepotente
E que despreza quem já não tem nada. *
Mas há que navegar, seguir em frente,
Fazer um esforço, dar outra braçada...
Enquanto um sopro houver, há vida, há gente,
Há a luta, há a esp`rança renovada. *
Homem que navegando naufragaste
Mas que a qualquer destroço te agarraste
Tentando retardar o teu poente, *
Não há eternidade que nos baste;
No breve instante que à morte roubaste
"Desço ao fundo de mim, ao inconsciente". *
Maria João Brito de Sousa - 21.11.2020 - 21.37h
publicado às 11:27
Maria João Brito de Sousa
ARTIMANHA *
Coroa de Sonetos *
Laurinda Rodrigues e Maria João Brito de Sousa *
1 *
O mal faz-se sempre anunciar.
Às vezes, disfarçado, nem se nota.
Poeira venenosa envolve o ar
e um cheiro nauseabundo fica à solta. *
Não há palavras, gestos ou imagens
que emudeçam, na alma, o medo insano
São sendas de pavor como paisagens
que atravessam a terra e o oceano. *
Impõe-se a solidão. Ficarmos presos.
É essa a solução para estar ilesos
de um ataque fortuito que nos espreita... *
Não vale a pena dizer "sim" ou "não":
tudo aquilo que se diz é sempre em vão,
se a confusão lançada é tão perfeita. *
Laurinda Rodrigues *
2 *
"Se a confusão lançada é tão perfeita"
Que aos mais sábios confunde e desatina,
Cremos, então, que o Mal está sempre à espreita
Atrás de cada porta, em cada esquina *
São coisas de que a Manha se aproveita;
Bem sabemos que a Manha, essa ladina,
Se quer fazer passar por insuspeita
E aquilo que prescreve, nunca assina. *
Mas passe a Arte a bem ou passe a mal,
Contorna os riscos e enfrenta o medo
Que a ameaça de forma desleal; *
Abre as janelas de manhã bem cedo
Bebe do Sol a força universal,
Reduz o Mal a peças de brinquedo.
*
Maria João Brito de Sousa - 09.11.2020 - 12.29h
*
3 *
"Reduz o Mal a peças de brinquedo"
mas - cuidado! - que o sol é enganador:
faz de conta que é Pai e mete medo
quando os filhos lhe estragam o fulgor. *
Mas, afinal, o sol é apenas estrela
entre tantas estrelas que há no céu
e, quando esta verdade se revela,
uma outra dimensão aconteceu. *
Juntando as peças, que temos na memória,
vemos que "chefes-sóis" fizeram história
que lhes servem a eles, sem discussão... *
E, usando o globalismo como lema,
garantem, no poder, o seu sistema,
impondo, sem destrinça, esse padrão. *
Laurinda Rodrigues *
4 *
"Impondo, sem destrinça, esse padrão"
Que a Maga-lua acorre a transformar;
Assim que o Sol se rende à escuridão
Impõe-lhe ela o seu manto de luar *
E assim concede ao mundo a sedução
Que o Chefe-sol se nem lembrou de dar,
Quem sabe se por pura distracção,
Se por puro capricho de mandar... *
Amo o Sol e concedo-lhe o perdão
(ou penso que o consigo perdoar...)
Porque me acende a imaginação, *
Porque a todos se entrega sem cobrar,
Porque - confesso! - me enche de paixão
E porque, enfim, assumo; sou solar! *
Maria João Brito de Sousa . *
5. *
"E porque, enfim, assumo; sou solar"
presa na rota do ciclo de estações,
mesmo, sem canto, encanto à luz lunar,
esquecendo que há, na lua, mutações. *
Cresce a lua no céu, depois de prenhe
que o sol, na fase "nova", engravidou,
para correr o "quarto" e se despenhe
na "cheia" exibição que a culminou. *
Podemos ser solares enquanto humanos
mas é como lunares que cultivamos
o caminho perfeito da união... *
Nada no cosmo existe sem sentido
e é o olhar do poeta, destemido,
que faz, da lua e sol, inspiração. *
Laurinda Rodrigues * 6 *
"Que faz, da lua e sol, inspiração"
E que com Arte e Manha lhes dá voz
Porque Arte quer dizer rebelião
E Manha há sempre um pouco em todos nós. *
Rebeldes, inventamos a paixão,
Manhosos, transformamos algo atroz
Num enredo ideal cuja ilusão
Nasce purpúrea da explosão de uns pós...
*
Triangulamos Terra, Sol e Lua,
Num passe de magia. A Arte, nua,
Por um momento veste os nossos mantos *
Para, logo a seguir, mostrar-se crua;
Despindo os astros, muda-se em falua
E faz-se ao Mar, explorando outros encantos. *
Maria João Brito de Sousa - 10.11.2020 - 12.54h
* 7 *
"E faz-se ao Mar, explorando outros encantos"
porque, se a Arte é arte, é a expressão
seja em poesia, dança, sons ou cantos
do tempo, que traduz a mutação. *
E a mutação prevê-se nas estrelas
no para além deste planeta terra,
mesmo que tentem colocar-nos trelas
na desculpa de que Isto é uma guerra. *
Seremos sábios, mas sábios disfarçados
de humildes servidores desnaturados,
que aceitaram nascer para mendigar... *
E, enquanto os Reis solares clamam razão,
os pobres servidores vão dando a mão
prosseguindo a arte e manha de os calar. *
Laurinda Rodrigues *
8 *
"Prosseguindo a arte e manha de os calar"
Sempre que as ordens se tornam brutais,
Semeamos a flor que há-de brotar
Nos prados, nos canteiros, nos quintais *
Da Terra inteira, do céu ou do mar
No qual nadam os peixes e os corais
Proliferam, ainda, sem parar;
Nada, pra si, será longe demais *
Porque a Arte não cuida de barreiras
E há-de passar por todas as fronteiras
Mais forte a cada palmo que conquista. *
Escapar-se-á por fendas e soleiras
Mimetizando as coisas costumeiras;
Ninguém pode impedir que ela subsista! *
Maria João Brito de Sousa - 11.11.2020 - 19.24h *
9 *
"Ninguém pode impedir que ela subsista"
mesmo vendo que a arte é maltratada
e não é com protestos que resista
a tanta confusão já instalada. *
Na solidão imposta, versejamos
criando a ilusão que vale a pena...
Mas se, por mero acaso, fraquejamos
as imagens cruéis voltam à cena. *
Atados ao visor dos aparelhos
que são agora os nossos novos espelhos
retratando o olhar da rendição, *
talvez ainda sobreviva o sonho
de que este pesadelo tão medonho
se transforme num sonho de paixão. *
Laurinda Rodrigues *
10 *
"Se transforme num sonho de paixão"
O que hoje nos parece uma utopia
E a mais que condenada aspiração
De algum idealista em distonia *
E surdo, face a esta distorção,
Ou cego, face a esta pandemia...
É o sonho, contudo, evolução
E a essa nenhum vírus contraria. *
Com Arte e Manha enfim se concretiza
O sonho que ninguém desenraíza
Do ser humano que em si próprio o traz *
E que de quase nada se improvisa
Quando sobre si mesmo profetisa
E acerta, pois de tudo ele é capaz! *
Maria João Brito de Sousa - 11.11.2020 - 22.53h
*
11 *
"E acerta, pois de tudo ele é capaz":
salta barreiras com a mente adormecida
porque, na noite, o sonho dorme em paz
diferente da vigília consentida. *
Das trevas do profundo inconsciente
compõe lembranças do aqui e agora
e, às vezes, quando o corpo está doente
a alma criadora ri e chora. *
A confusão, que alastra, não entrava
que faças com teu sonho a tua lavra
numa terra de fértil energia... *
Não fiques agarrada à voz macabra!
talvez seja o silêncio que nos abra
os sonhos mais proféticos da poesia. *
Laurinda Rodrigues *
12 *
"Os sonhos mais proféticos da poesia"
Nascem-me assim que acordo e fico alerta;
A Manha é pouca, mas a Arte cria
A partir de uma mente bem desperta *
Que a toda a voz macabra repudia,
Nem a ouvindo que outra é descoberta
Nos tons cantantes de uma melodia
Que sobre mundo e vida se concerta. *
É dum sossego desassossegado,
Talvez silêncio de pronto quebrado,
Que o verso nasce e depois se compõe. *
Mas só em força nasce se acordado;
Se dorme, nasce tão desafinado
Que nem percebe ao certo o que propõe. *
Maria João Brito de Sousa - 12.11.2020 - 11.35h
*
13.
"Que nem percebe ao certo o que propõe"
seguindo em linha a voz dos ditadores
que a todos nós a submissão impõe
para, depois, nos tratar como traidores. *
Antigamente três "fs" suportavam
a perda, raiva, medo e frustração;
mas, agora, nem "fs" aguentavam
os espaços vazios da solidão. *
Todos falam. Ninguém percebe nada.
Fazem-se regras apenas para fachada.
Mais tarde se verá quem vai mandar. *
Pobre consolação em grande estilo!
Cantam melhor o galo, o melro, o grilo
que a gente entende, mesmo sem escutar. *
Laurinda Rodrigues *
14 *
"Que a gente entende, mesmo sem escutar"
Porque esses sabem sempre como e quando
E até entendem que comunicar
É bem mais que dar ordens de comando *
Pois também será forma de exaltar
A própria vida que lhes vai pulsando
Nos pequeninos corpos, a vibrar,
Enquanto a Terra inteira vai girando *
E eu, aqui sentada, vou glosando,
Apesar de uma mão me estar sangrando,
Os versos que me deste pra glosar. *
Enquanto alguns de nós vão acordando,
Outros, sem Arte e Manha, vão tombando;
"O Mal faz-se sempre anunciar". *
Maria João Brito de Sousa - 12.11.2020- 15.26h
publicado às 11:55