Maria João Brito de Sousa
RENÚNCIA
A minha mocidade há muito pus No tranquilo convento da tristeza; Lá passa dias, noites, sempre presa, Olhos fechados, magras mãos em cruz... Lá fora, a Noite, Satanás, seduz! Desdobra-se em requintes de Beleza... E como um beijo ardente a Natureza... A minha cela é como um rio de luz... Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada! Empalidece mais! E, resignada, Prende os teus braços a uma cruz maior! Gela ainda a mortalha que te encerra! Enche a boca de cinzas e de terra Ó minha mocidade toda em flor! Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"
AFIRMAÇÃO
“A minha mocidade há muito pus”
No cantinho das coisas já passadas
Que guardo, dia a dia acumuladas,
Porque só a memória as reproduz...
“Lá fora, a noite, Satanás seduz!”
Mas eu que, renegando almas penadas,
Observo as gentes tristes e cansadas,
Deduzo cada medo que as traduz;
“Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada!”
- Só fecho os olhos quando, atordoada,
Possa o sono nublar-me a lucidez!
“Gela ainda a mortalha que te encerra!”
- E eu quero lá saber de quem me enterra,
Se morro por chegar a minha vez?!
Maria João Brito de Sousa – 12.07.2017 - 16.26h
publicado às 16:48
Maria João Brito de Sousa
A MINHA TRAGÉDIA
*
Tenho ódio à luz e raiva à claridade
Do sol, alegre, quente, na subida
Parece que a minh`alma é perseguida
Por um carrasco cheio de maldade!
*
Ó minha vã, inútil mocidade,
Trazes-me embriagada, entontecida!...
Duns beijos que me deste noutra vida,
Trago em meus lábios roxos a saudade!...
*
Eu não gosto do sol eu tenho medo
Que me leiam nos olhos o segredo
De não amar ninguém, de ser assim!
*
Gosto da Noite imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!...
*
Florbela Espanca
In "Livro de Mágoas"
UM POUCO DE MIM
*
Eu, em compensação, gosto dos dias,
Do Sol, do brando afago de uma brisa,
Do meu passo a deixar no chão que pisa
Um rasto de pequenas utopias.
*
Gosto das mil serenas melodias
Duma planta que cresce e se enraíza
E, tanto quanto sei, não sou juíza,
Nem de homens, nem de humanas bizarrias.
*
Nunca odiei ninguém, mas... raivas, tenho!
Há, com efeito, coisas que desdenho
Sempre que me pareçam ser nocivas;
*
Crenças humanas contra as quais me empenho
Quando pr` analisá-las me detenho
E as sinto injustas, fúteis, destrutivas.
*
Maria João Brito de Sousa - 24.04.2017 - 13.49h
publicado às 19:45
Maria João Brito de Sousa
Patrono: Florbela Espanca
Académica: Maria João Brito de Sousa
Cadeira: 06
ALMA PERDIDA
*
Toda esta noite o rouxinol cantou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma de gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!
*
Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente,
D`alguém que quis amar e nunca amou!
*
Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque ao ouvir-te adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!
*
Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh`alma
Que chorasse perdida em tua voz!...
*
Florbela Espanca
In "Livro de Mágoas"
***********
A VITÓRIA DO ROUXINOL
*
"Toda esta noite o rouxinol chorou",
Ou fui quem lhe não soube interpretar
Um canto, que eu pensava soluçar
E era à vitória, quando a conquistou...
*
"Tu és, talvez, um sonho que passou",
Um eco do que um dia ousei sonhar
Sobre a alegria de poder cantar,
Que, chore, ou ria , nunca soçobrou...
*
"Toda a noite choraste... e eu chorei",
Porque amargura, apenas, vislumbrei
Nessa longa e nocturna melodia...
*
"Contaste tanta coisa à noite calma"
Que eu rendida chorei; levas-me a palma
Nas subtilezas d` alma da Harmonia!
*
Maria João Brito de Sousa - 27.02.2017 - 12.07h
publicado às 15:12
Maria João Brito de Sousa
DEIXAI ENTRAR A MORTE Deixai entrar a morte, a iluminada, A que vem para mim, pra me levar, Abri todas as portas par em par Como asas a bater em revoada. Que sou eu neste mundo? A deserdada, A que prendeu nas mãos todo o luar, A vida inteira, o sonho, a terra, o mar, E que, ao abri-las não encontrou nada! Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste? Entre agonias e em dores tamanhas Pra que foi, dize lá, que me trouxeste Dentro de ti?...pra que eu tivesse sido Somente o fruto das entranhas Dum lírio que em má hora foi nascido!...
Florbela Espanca
In, "Charneca em Flor"
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ORDEM DE PRORROGAÇÃO DE SENTENÇA
Desvia essa gadanha, ó velha Parca,
Que por mais alguns anos ta dispenso,
Pois, se ontem te venci, melhor te venço
Enquanto em vida deixo a minha marca
E enquanto for levando a minha barca
Por entre um nevoeiro espesso, denso,
Prossigo nesta rota do bom-senso
Assim que a bujarrona se me encharca
Do sal marinho, quando o vento o traz
À minha barca que demanda a paz
No mar de um Sonho que em tempos me coube
E a todas as barreiras liquefaz;
Aos sonhos que me ficam para trás,
Não há, pr`a já, gadanha que mos roube!
Maria João Brito de Sousa - 14.02.2017 - 10.37h
publicado às 10:45
Maria João Brito de Sousa
HOMENAGEM DE APOIO À MARIA JOÃO
O Albertino Galvão tomou a iniciativa, propôs-me e eu concordei, de mandar fazer uma edição de 50 livros, pagos por nós dois, em nome da nossa amiga poetisa e participante do HP, Maria João Brito de Sousa.
Essa atitude teve dois propósitos: - homenagear a que é, sem dúvida, uma das maiores poetisas portuguesas de todos os tempos - proporcionar-lhe algum conforto, entregando-lhe em mãos a receita TOTAL da venda dos livros, sabendo como é a sua v ida, a que nada ajuda uma grande falta de saúde, que se vem agravando ano após ano. (Aliás, somos da opinião que já deveria ter sido ajudada por alguma entidade oficial, mas, já que isso não aconteceu, vamos ser nós - os que puderem - a prestar-lhe algum apoio.) O livro tem por título ALMAS GÉMEAS (vamos colocar a capa no item FOTOS no HP), e é composto por duas partes: - Dialogando com Florbela (dois sonetos da Florbela/dois da Maria João) - Glosando Florbela (30 sonetos da Florbela/30 sonetos da Maria João, glosando aqueles) - tem 74 páginas - podia ser algo mais barato, mas atendendo à finalidade exposta acima, o preço será de 8 euros (+1 euro de portes para Portugal e + 2 euros de portes para outros países) O dinheiro da venda será centralizado na minha conta, de IBAN PT50 0033 0000 500 884 32 328 05 e será entregue na TOTALIDADE, (como já disse acima) à Maria João, quando já houver um número de livros vendidos que o justifique.
Nota: mandaremos fazer outra edição, se a venda desta tiver o êxito que esperamos e se virmos que há pedidos que a justifiquem. O que esperamos que aconteça. Vamos dar alguma alegria à nossa Maria João! Ontem mandei-lhe um exemplar e ela, obviamente, não sabia nada do que estava a passar-se.
Mantive-me em contacto com ela esta manhã através do chat do HP, dizendo-lhe que espreitasse a caixa de correio, pois iria ter lá uma surpresa. Telefonei-lhe cerca das 11,20h e desceu pela 5ª vez ao rés do chão, onde finalmente já estava o livrinho.
Ficou sem palavras, pela emoção que teve. Abraços para todos.
Joaquim Sustelo (Albertino Galvão )
NOTA - A obra entrou na terceira edição.
publicado às 09:15
Maria João Brito de Sousa
O MEU MAL
Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,
Eu sei o nome ao meu estranho mal:
Eu sei que fui a renda de um vitral,
Que fui cipreste e caravela e dor!
Fui tudo que no mundo há de maior;
Fui cisne e lírio e águia e catedral!
E fui, talvez, um verso de Nerval,
Ou um cínico riso de Chamfort...
Fui a heráldica flor de agrestes cardos,
Deram as minhas mãos aroma aos nardos...
Deu cor ao eloendro a minha boca...
Ah! De Boabdil fui lágrima na Espanha!
E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha!
Mágoa de não sei quê! Saudade louca!
Florbela Espanca, in "Livro de Soror Saudade"
MEU BEM, MEU MAL...
"Eu tenho lido em mim, sei-me de cor"
E a cada verso mais me vou sabendo,
Como se sabe a flor do aloendro
Que desconhece ter-se aberto em flor.
"Fui tudo o que no mundo há de maior;"
Um átomo do espaço a que me prendo,
Cada espasmo do orgasmo a que me rendo
E o sofrimento em que me deixa a dor.
"Fui heráldica flor de agrestes cardos",
Fiz minha a devoção de antigos bardos
Mordendo a própria boca amordaçada.
"(Ah!) De Boabdil fui lágrima na Espanha!"
Se o gesto desfalece e se me entranha
A decepção de nem ter escrito dito nada.
Maria João Brito de Sousa - 11.12.2016 - 14.05h
publicado às 10:05
Maria João Brito de Sousa
PANTEÍSMO
Ao Botto de Carvalho Tarde de brasa a arder, sol de verão Cingindo, voluptuoso, o horizonte... Sinto-me luz e cor, ritmo e clarão Dum verso triunfal de Anacreonte! Vejo-me asa no ar, erva no chão, Oiço-me gota de água a rir, na fonte, E a curva altiva e dura do Marão É o meu corpo transformado em monte! E de bruços na terra penso e cismo Que, neste meu ardente panteísmo Nos meus sentidos postos e absortos Nas coisas luminosas deste mundo, A minha alma é o túmulo profundo Onde dormem, sorrindo, os deuses mortos! Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"
TROPISMO(S)
"Tarde de brasa a arder, sol de Verão"
Sobre um estuário estático e brilhante
Que me parece vir da dimensão
De um mundo imaginado e já distante ...
"Vejo-me asa no ar, erva no chão",
Cauda de peixe, nau de navegante,
Sargaço, limo, lapa ou mexilhão
Nas desnudadas rochas da vazante...
"E de bruços na terra penso e cismo";
Que louco este infindável mimetismo,
Que estranha a minha eterna devoção
"(Às) coisas luminosas deste mundo",
À minha velha casa do Dafundo,
À mais-do-que-fecunda introspecção...
Maria João Brito de Sousa - 10.02.2016 - 18.40h
publicado às 12:30
Maria João Brito de Sousa
A VIDA
É vão o amor, o ódio, ou o desdém; Inútil o desejo e o sentimento... Lançar um grande amor aos pés d'alguém O mesmo é que lançar flores ao vento! Todos somos no mundo "Pedro Sem", Uma alegria é feita dum tormento, Um riso é sempre o eco dum lamento, Sabe-se lá um beijo donde vem! A mais nobre ilusão morre... desfaz-se... Uma saudade morta em nós renasce Que no mesmo momento é já perdida... Amar-te a vida inteira eu não podia... A gente esquece sempre o bem dum dia. Que queres, ó meu Amor, se é isto a Vida!...
Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"
... E A MINHA...
"É vão o amor, o ódio, ou o desdém"
E esvaem-se as paixões mais exaltantes
Na própria combustão do que as mantém
Acesas como chamas rutilantes...
"Todos somos no mundo ´Pedro Sem`"
Que exalta as suas naus já vacilantes
Pr`a logo descobrir que, sem vintém,
Tudo voltava a ser como era dantes...
"A mais nobre ilusão morre... desfaz-se..."
E a realidade, essa, compraz-se
Lembrando o quanto pôde ser fatal...
"Amar-te a vida inteira eu não podia";
Traída a dimensão da poesia,
Foi a mim que eu deixei de ser leal...
Maria João Brito de Sousa - 06.02.2016 - 14.31h
publicado às 10:10
Maria João Brito de Sousa
DESEJOS VÃOS
Eu qu’ria ser o Mar d’altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu qu’ria ser a pedra que não pensa,
A Pedra do caminho, rude e forte!
Eu qu’ria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu qu’ria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!
Mas o Mar também chora de tristeza...
As Árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!
E o Sol altivo e forte, ao fim dum dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!..
Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"
REFLEXÕES...
"Eu queria ser o Mar d`altivo porte",
Sentir-me a flutuar na vaga imensa
Que se ergue prepotente, irada, tensa,
Pr`a desfazer-se em espuma, num desnorte...
"Eu queria ser o Sol, a luz intensa",
O brilho luminoso, o raio forte
Que, aceso, nos aquece e recompensa,
Mas nos foge a seguir, tal como a sorte...
"Mas o Mar também chora de tristeza",
Desfaz-se a vaga em espuma e, sem surpresa,
Rende-se à noite escura o astro ardente
"E o Sol altivo e forte, ao fim dum dia",
Vai concedendo à Lua a primazia
De um brilhozinho suave e transparente...
Maria João Brito de Sousa - 09.02.2016 - 14.27h
publicado às 15:55
Maria João Brito de Sousa
HORAS RUBRAS
Horas profundas, lentas e caladas Feitas de beijos rubros e ardentes, De noites de volúpia, noites quentes Onde há risos de virgens desmaiadas... Oiço olaias em flor às gargalhadas... Tombam astros em fogo, astros dementes, E do luar os beijos languescentes São pedaços de prata p'las estradas... Os meus lábios são brancos como lagos... Os meus braços são leves como afagos, Vestiu-os o luar de sedas puras... Sou chama e neve e branca e mist'riosa... E sou, talvez, na noite voluptuosa, Ó meu Poeta, o beijo que procuras! Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"
HORAS RUBRAS
"Horas profundas, lentas e caladas",
Feitas de espanto e reflexões prementes
Que se vão desvendando, transparentes,
Porque sempre se insurgem, revoltadas...
"Oiço olaias em flor às gargalhadas"
E só vejo, afinal, rangendo os dentes,
Pessoas que contemplam, impotentes,
As próprias mãos vazias e cansadas...
"Os meus lábios são brancos como lagos"
Emitindo uns protestos neutros, vagos,
Contra outra mão, burguesa e esmagadora;
"Sou chama e neve e branca e mist'riosa",
Mas mesmo sendo eu fraca, é vigorosa
A rubra força que em mim cresce agora!
Maria João Brito de Sousa - 04.02.2016 - 12.35h
publicado às 10:37
Maria João Brito de Sousa
OUTONAL
Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!
– Brumas longínquas do País do Vago...
Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento... A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...
Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
– Vestes a terra inteira de esplendor!
Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que eu soluço a delirar de amor...
Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"
OUTONAL E URBANO
"Caem as folhas mortas sobre o lago;"
Ao céu que empalidece mais e mais
Fazendo voar folhas de jornais,
Vem um ventinho frio dar-lhe um afago...
"Veludos a ondear... Mistério mago..."
O Inverno faz sentir os seus sinais
E lavra, a chuva, líquidos canais
Que aumentam de caudal causando estrago...
"Outono dos crepúsculos dourados",
Dos homens e mulheres bem abafados
Por casacões pesados e sem cor,
"Outono das tardinhas silenciosas",
Das noites frias, longas, pesarosas
Por terem já perdido o seu calor...
Maria João Brito de Sousa - 04.02.2016 - 09.49h
publicado às 16:46
Maria João Brito de Sousa
CARAVELAS...
Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.
Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!
Se eu sempre fui assim este Mar Morto:
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram!
Caravelas doiradas a bailar...
Ai quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...
Florbela Espanca, in "Livro de Soror Saudade"
CARAVELAS...
"Chego a meio da vida já cansada",
O sopro humano gasto, a vela panda...
E a tempestade que não mais abranda
Não pára de galgar minha amurada...
"Tanto tenho aprendido e não sei nada"...
Nunca acaba esta busca, esta demanda,
Nem se cala esta voz que ma comanda,
Ainda que por vagas açoitada...
"Se eu sempre fui assim, este Mar Morto",
Que, à beira do naufrágio, fica absorto
Nesta contemplação do mar em mim,
"Caravelas doiradas a bailar",
Tão minhas quanto o devem ser do mar,
São quanto de mim sobra, até ao fim...
Maria João Brito de Sousa - 03.02.2016 - 13.04h
publicado às 13:39