NAQUELE RETRATO
Acordou mais cansada do que o habitual. Era uma sensação de peso que não conseguia entender e muito menos definir. O simples levantar, revelou-se-lhe uma manobra complexa e algo dolorosa. Estranhou e, incapaz de o entender, registou e prosseguiu em direcção à cozinha.
Sentia. Sentia de uma forma que não a de todos os dias. Sentia-se, acima de tudo.
Já no corredor, olhou casualmente para o lado e parou tão abruptamente que o corpo acabou por lhe embater ruidosamente contra a mesinha de apoio sob o espelho com que acabava de encarar. A dor foi prontamente abafada pela surpresa. Não se reconheceu na mulher idosa e assustada que via na superfície polida.
…E morriam-lhe as mãos pelas curvas do rosto
Na surpresa nascida de quem se conhece
E descobre o sol-posto
Do então que amanhece...
Sorriu a custo, meneou a cabeça e levou as mãos aos cabelos brancos e já ralos que, poucas horas atrás, haviam sido a farta cabeleira negra que apanhara numa trança antes de se deitar. Como era possível? Esforçou a memória numa derradeira tentativa de não acreditar no que os olhos viam, mas os olhos continuavam a ver uma face feminina gasta e enrugada, moldada por décadas que haviam passado numa única noite de sono. Parecia-lhe ainda sentir no corpo as mãos do marido que na véspera a amara, rebolando os dois de gozo e juvenil alegria, na mesmíssima cama de que
acabava de se levantar envelhecida e fraca.
… E morriam-lhe as mãos pelos anos passados
Na certeza que nasce de quem já não sabe
Os caminhos errados
Do céu que lhe cabe...
Envelhecida e fraca, repetiu. Ela que ainda há pouco desabrochara nos braços do homem que amava e que saíra, com um breve adeus e um longo sorriso de plena satisfação, para o turno nocturno do hospital em que trabalhava.
E o cão? Porque não ladrava o cão? Porque não viera lamber-lhe as mãos na efusiva manifestação de carinho das manhãs de todos os dias. E as flores que no dia anterior amorosamente colocara na jarra, sobre a mesa de apoio, e que agora lhe apareciam reduzidas a um punhado de hastes negras e secas como varetas de guarda-chuvas. E ela. Ela e as ausências. Ela e as rugas, o peso, os olhos pequeninos afundados nas órbitas, o cabelo branco que rareava, a memória aparentemente incoerente, as flores negras. E as ausências.
… E morriam-lhe as mãos em ausentes afagos
De corpos passados, de ternas memórias,
De sonhos velados,
Contados em histórias...
Rumou, lenta e pesada, em direcção ao quarto, descansou por segundos contra o guarda-fatos que se erguia como um ombro amigo, mas sempre demasiado alto, e deitou a mão à gaveta da cómoda coberta de um pó espesso, cinzento, inútil. Abriu a gaveta onde guardara, como recordação algumas peças de roupa da recém-falecida avó - seria? - e retirou um velho lenço que colocou sobre a cabeça. Dirigiu-se à janela, abriu-a com dificuldade, encostou-se ao peitoril, colocou uma mão sob o queixo e deixou que os olhos se lhe perdessem no ponto onde, diariamente, o marido dobrava a esquina e lhe aparecia ao longe, no campo de visão.
… E nasceu-lhe das mãos, em minutos, segundos,
Uma página em branco, uma noite, um momento,
Uma vida em dois mundos
Alheios ao tempo...
Ali se lhe apagou a memória de ser e mergulhou no sorriso enigmático de quem sabe ter pregado uma partida ao Tempo. Ela e o Tempo. Ali, naquele retrato.
Maria João Brito de Sousa - 31.01.2009
Ficcionado :) para http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/