Da autoria de Maria João Brito de Sousa, sócia nº 88 da Associação Portuguesa de Poetas, Membro Efectivo da Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores - AVSPE -, Membro da Academia Virtual de Letras (AVL) , autora no Portal CEN, e membro da Associação Desenhando Sonhos, escrito num portátil gentilmente oferecido pelos seus leitores.
...porque os poemas nascem, alimentam-se, crescem, reproduzem-se e (por vezes...) não morrem.
Repararam? A portinhola ficou aberta. São os vestígios daquele enorme intruso que todas as manhãs tenta invadir o meu espaço. Nunca consegue... é demasiado grande e desajeitado, mas continua a tentar, invariavelmente. Passa uns tempos naquela azáfama e acaba por deixar-me alimentos e água fresca como se com isso pudesse comprar a minha identidade... pobre intruso. Não é mau de todo, embora seja absurdamente ingénuo. Por vezes esforço-me por entendê-lo. Que razões o levarão a invejar-me? Sigo-lhe, curioso, cada movimento. Observo-o até que o tédio me force a recolher a cabeça sob uma das asas. Confortável, esqueço-o por momentos e mergulho neste oceano cuja nascente começa algures dentro de mim. Nunca é longo, o descanso... logo o intruso arranja forma de se tornar audível. Não sabe estar sozinho e solicita-me continuadamente. Por vezes - quantas vezes - sem paciência, volto a observá-lo. Cá no fundo, enche-se-me o coração de um dó que extravasa as minhas penas e as grades da gaiola. Imagino-o a reduzir-se em volume e altura, a entrar-me, finalmente no espaço sagrado. Sorriria se soubesse sorrir. No entretanto, faço ouvir os meus trinados, para o consolar. Só para o consolar de ser assim, enorme, desajeitado, incapaz de acomodar a cabeça debaixo de uma asa, na infinda continuidade do ovo que um dia foi.
Não partas ainda. Fica mais um bocadinho. Um bocadinho apenas, antes de te diluíres nas memórias que me não permitirão a carícia sedosa da tua pelagem riscada de amarelos de Nápoles e de outros amarelos, maduros como folhas de Outono. Nem o exacto som do teu chamamento, o calor que de ti emanava e todas essas pequeninas coisas do dia a dia de que tanto me queixei enquanto os dias eram dias antes de partires. Olha-me ainda. Repara no meu sorriso triste… tu não o sabes, mas é um sorriso de saudade adiada. Uma saudade que começou a nascer no momento em que me apercebi da inevitabilidade da tua partida e que, não tarda, se começará a esfumar na linha de horizonte das recordações. Conheço-a como às palmas das minhas mãos, sei que me será absolutamente necessária, mas não a quero neste preciso momento. Agora quero adiar-te um pouco, pintar-te na tela da alma, escrever-te no livro do Tempo com letras de tinta indelével. Fica um pouco mais... o tempo de saborear bem, de avaliar e conhecer, sem o desagrado da surpresa, aquilo que de ti me será permitido recordar. Acreditas que sinto saudades até das tuas piores traquinices? Se um dia vier a reparar o cavalete grande que tu me partiste, se um dia voltar a pintar, pintarei para ti. Porque assim se constrói uma vida. Assim, de afectos, memórias e pequenos grandes momentos. Foi curta, a tua passagem por cá e eu sei lá que desígnios te trouxeram até mim naquela tarde de cafezinho na esplanada... mas amei-te e foi em nome desse mesmo amor que tentei - caramba, como tentei! - encontrar alguém que tivesse a disponibilidade financeira e o espaço suficiente para que pudesses ter uma vida mais livre, mais de acordo com aquilo que é natural na tua espécie. Desencontros, amigo. Tantos desencontros. Mas nós cá nos íamos entendendo... era ou não era? E o que eu aprendi contigo! O que aprendi e o que estou agora mesmo a aprender, enquanto te guardo inteirinho neste cantinho de mim e redescubro os mil e um cambiantes deste curto percurso comum. Repara. Viste? Estou quase, quase a terminar. Podes depois partir. Depois desta última pincelada amarela sobre a incompreendida teia da nossa inesperada construção.
Não, mãe. Não tenho remorsos. Peço imensa desculpa, mas não tenho. Bem... talvez tenha tido daquela vez em que estraguei a mochila velha para que o pai me comprasse aquela linda, linda, que combinava às mil maravilhas com o cheiro das aparas de lápis e a textura do papel Almaço que eu teimava em levar comigo para toda a parte... que idade tinha eu? Quatro, cinco anos?
Lembro-me de ter pegado na tesoura, lembro-me daquele apertozinho no coração - talvez lhe chamasses peso na consciência - que senti quando cortei uma das correias. Não foi fácil. As correias eram resistentes e as minhas mãos eram tão pequeninas... mas o que custou mais foi a mentira.
- Pai, a mochila velha estragou-se...
Vi-o observar serenamente a velha sacola. Ainda hoje não sei se percebeu logo o que se passava, mas penso que sim... agora. Na altura disse-me, calmamente, que iríamos, nessa tarde, comprar uma nova.
Fui desenhar para o quarto de brinquedos, mas não estava feliz. Nada feliz. Era estranhíssimo porque me imaginava a criança mais feliz do mundo no dia em que pudesse abraçar, cheirar, manipular uma mochila novinha em folha... no entanto estava muito, muito longe de estar feliz. Muito pelo contrário. Esvaíra-se-me em coisa nenhuma aquela antecipação do objecto cobiçado e as mãos haviam-se-me tornado tão pesadas que as linhas não fluíam em contornos humanos, como nãs manhãs de todos os dias. Levei algum tempo a consciencializar, mas acabei por perceber tudo. Mais uns minutos com as mãos que me pesavam toneladas pendentes sobre
a folha de papel ainda branca e a decisão foi tomada.
Hoje sinto-me orgulhosa dela. Reconheço que era preciso "tê-los no sítio".
- Pai, não quero a mochila nova. Fui eu que cortei a alça da velha.
O resto vem-me meio embaciado. Devia ter lágrimas nos olhos. Não me recordo de ter ouvido nenhum raspanete. Nada. Só me lembro de continuar a usar a velha mochila, reparada pelas mãos hábeis da avó Alice. Por isso, mãe, te digo que já não tenho remorsos, que isso me não é útil, que também te não é útil a ti e que eu sempre fui uma pessoazinha capaz de aprender com os seus próprios erros. Acredita. É a melhor forma de se aprender, mãe.
Vejo que me não entendes... ou que não concordas. Acho que não concordas porque não entendes. Tudo bem, mãe. Eu esqueci-me de ler esse capítulo no Manual de Instruções.
Não. A maioria das pessoas não entendia – nem podia entender – as verdadeiras consequências de um “apagão” energético. Ele, ali, na UCI do hospital, rodeado por convalescentes temporariamente monitorizados, lembrou-se de se lembrar daquilo… depois deu azo a que o momento se espraiasse por toda a sala e deu-lhe uma continuidade lógica. Este, este e este morreriam, sem sombra de dúvida. Claro que havia o gerador de emergência, mas esse funcionaria durante um curto período, devido à sobrecarga, e acabaria, também por se “apagar”. Contudo era evidente que a esmagadora maioria se rendia à hipótese revivalista de ficarmos sentados à lareira… conversas mais íntimas, mão na mão, jogos de cartas à luz das velas, famílias que haviam deixado de o ser, refeitas de um dia para o outro, num passe de magia… talvez fosse melhor pensar assim. Logo a ele lhe ocorrera prognosticar, naquela noite, o que realmente se passaria com aqueles seus doentes caso a energia se interrompesse assim, sem mais nem ontem!
Três dos pacientes que estariam irremediavelmente condenados eram ainda jovens e tinham um bom prognóstico de recuperação… mas precisariam de utilizar o suporte de vida durante alguns dias. Largos dias, pelo menos um deles… e isto era ali, naquela UCI, daquele determinado serviço do seu muito específico hospital… muitos mais hospitais com muitas mais UCIs se potenciariam em muitíssimos mais doentes condenados, caso o tal “apagão” viesse a dar-se.
Não podia ser pacífico pensar naquilo. Há alguns anos atrás nenhum daqueles acidentados teria sobrevivido. Esse era um daqueles factos que só poderiam ser mudados por um milagre daqueles muito, muito milagrosos e ele aprendera que esses só acontecem de quando em vez… por isso sabia bem que aqueles seus doentes iriam morrer, tal como teriam morrido se tivessem nascido três ou quatro décadas antes e tivessem passado por aquilo que haviam efectivamente passado… e qual seria a diferença? A diferença estaria exactamente na variável tempo. Única e simplesmente na variável “Tempo”. Há quarenta anos atrás, nenhum apagão poderia pôr em risco a vida dos três jovens acidentados… porque eles não teriam sobrevivido. Agora – e ele sabia muito bem que este “agora” pressupunha a passagem de quatro décadas – eles teriam ainda uma vida pela frente… e ele lembrara-se de pensar num eventual “apagão”! Quem o mandava, a ele, ser médico e, ainda por cima, um ser “pensante”?
Atravessou com o sinal vermelho. Tinha adquirido aquele perigoso hábito nos tempos em que, ainda jovem, alguém se lembrara de trocar o polícia sinaleiro por aquele mastro inestético, insensível. Era um tempo em que cada segundo era precioso e picar o ponto antes do ponteiro dos segundos cruzar a linha vertical era bem mais imperativo do que obedecer a um sinal.Fosse de que cor fosse.
Mil vezes o haviam alertado. Mil vezes prometera tentar habituar-se. Primeiro com alguma convicção, depois com o automático: - Sim,sim… , de quem tem pressa em livrar-se de um assunto a que não dá a menor importância.
Naquele dia, em nada diferente dos anteriores, o sinal manteve-se invisível, se não aos seus olhos, pelo menos ao cérebro que tão refractário se mostrava em automatizar uma ordem dada por um poste cor-de-burro-quando-foge que, incomodativo, se erguia na perpendicular do plano da calçada…
Foi exactamente por isso que nesse dia, em coisa nenhuma diferente de todos os outros, quando tentava atravessar a estrada do costume, um carro casual se aproximou vertiginosamente, se deu o inevitável impacto e experimentou a surpresa do voo inesperado.
Ultrapassou na vertical o poste cor-de-burro-quando-foge, traçando no ar um arco de elipse, percepcionou o despontar de uma imensa dor surda, ergueu os braços numa infrutífera tentativa de se auto-proteger, sentiu que se lhe tornava impossível respirar, assustou-se ao perceber que não picaria o ponto nesse dia, vislumbrou o azul do céu, o branco da fachada do edifício em frente, o cinzento do asfalto, o vermelho da blusa da rapariga boquiaberta que atravessara antes de si e, pela primeira e última vez, viu o sinal mudar para a cor verde de uma esperança que não mais voltaria a fazer sentido.
Era uma vez... era uma vez uma mulher que queria escrever uma história para a Fábrica de Histórias e não sabia ficcionar...
Chegara recentemente a essa conclusão e sentira-se um tanto ou quanto diminuída por isso. Era simples, a mulher, mas tinha o seu orgulhozinho e tamanha lacuna parecia-lhe estranhíssima. Tanto mais que ainda se recordava de ter ficcionado uma ou outra historieta para as filhas, em tempos que, há muito, já lá iam.
Caramba! De uma ficçãozita todos somos capazes! - Invectivou-se, como se aquilo lhe puxasse pelos cordelinhos da imaginação e pusesse a emperrada maquineta da memória a funcionar. Nada. Nem uma palavrinha para além do "Era uma vez"... só sentia.
Ah! Sentir, sentia! Sentia, nesse dia, uma particular gratidão por alguém que a ajudara a salvar a vida -ainda débil, ainda "tem-te, não-caias!" - da gatinha que a mãe lhe trouxera para casa há sete anos atrás.
Por isso e porque "sentir" sempre fora a sua especialidade, a mulher decidiu-se por contar
A HISTÓRIA DO CÃOZINHO QUE NASCEU COM AS PATAS BRANCAS
Foi há cerca de ano e meio. Não era, com certeza, Natal, mas era como se fosse. Ou melhor, passou a ser como se fosse...
Eu tinha ido ao veterinário com a Lupa e o Kico. Por essa altura um deles deveria estar meio adoentado. Provavelmente uma das "constipações" do Kico ou uma das "dores de barriga" da Lupa.
Recordo-me de ter ouvido quando, terminada a consulta, me propunha sair, um ganido baixo e fininho, quase sumido.
O veterinário acompanhara-nos à porta e eu desviei instintivamente o olhar do dele, procurando o local de onde me pareciam provir os ganidos.
- É um cachorrinho que trouxe ontem para o consultório. Não sei se o consigo salvar. - explicou-me o veterinário que acompanhara o curso do meu olhar.
Os meus olhos devem ter denunciado alguma surpresa, porque ele rapidamente se propôs mostrar-me o tal cachorrito. Subimos a pequena escada que leva à sala de banhos e tosquias e eu vi aquela coisita acastanhada envolta numa mantinha bordeaux, ligada a um frasco de soro que pendia de um suporte improvisado.
- Tão pequenino!- exclamei - o que tem ele?
- Fome. Estas coisas não se fazem! Era de um criador de boxers e eu trouxe-o ontem para cá...
- Mas... e a mãe?
- A mãe está com o dono, o tal criador. Tem mais sete cachorrinhos e está a alimentá-los...
- E este? Que se passa com este?
- Com este o que se passa é que nasceu com "defeito de fabrico"! Segundo o criador de boxers, claro... tem as pontas das patas brancas...
Olhei e reparei então que aquele castanho levemente manchado por estrias mais escuras terminava, efectivamente, em pequenas "botinhas" brancas que, no meu entender, lhe davam um certo encanto e o tornavam ainda mais patusco.
- Não me diga que já o não querem por causa disso...
- Digo, digo. E digo mais. Separaram-no da mãe e atiraram-no para dentro de um caixote onde o fui encontrar meio morto de fome e já desidratado. Foi por acaso. Fui fazer a revisão do puerpério à mãe e já me ia embora quando, no hall de entrada, vi o caixote com ele lá dentro. Que não servia, disse-me o criador. Que tinha defeito e estava a estragar a raça!
- E trouxe-o consigo?
- Pois trouxe! Ia morrer ali... perguntei se mo davam e tratei de pegar logo nele!
Olhei de novo para o filhote de boxer. O cãozinho que "tinha defeito" estava ali, deitado, quentinho, a soro, com um biberão meio de leite junto a ele. Tinha um nome. O veterinário tratara logo de lhe dar um nome, mas a minha memória já não é o que era e, para mim, ficou sempre a ser "o cãozinho que nasceu com as patas brancas".
E o que tem isto a ver com uma tradição de Natal? - perguntarão vocês. Provavelmente não tem mesmo nada a ver, mas o espírito está lá e eu já não sei ficcionar!... Mas gostaria - e aqui sim, entro no que nos foi pedido na Fábrica de Histórias! - de propor uma nova tradição para o Natal de Todos os Dias;
Que nunca, nunca mais se vote ao abandono, à indiferença, quem - não importa a espécie! - nasça com uma "diferença". Seja ela qual for!