Maria João Brito de Sousa
Tela de Pablo Picasso (1881/1973)
ÉS O SOL *
Coroa de Sonetos *
Custódio Montes e Mª João Brito de Sousa *
1. *
És o sol que me aquece dia a dia
Na caverna que arrefece o meu viver
Sem ti o que seria do meu ser
Sem o amor que me dá tanta alegria *
Amar-te até ao fim é uma fatia
Do que mereces tu para te ter
E muito mais farei até morrer
Ao colo do frescor dessa magia *
À volta do teu seio e remanso
Reclino a cabeça e descanso
Estarei sempre alegre ao teu redor *
Que é meu esse ambiente essa frescura
Que me leva ao céu e à loucura
De ter no teu regaço o meu amor *
Custódio Montes
5.8.2022
***
2. *
"De ter no teu regaço o meu amor",
Lembro-me bem de em tempos tê-lo dito,
Mas essa é frase que não mais repito
Porque perdeu há muito o seu fulgor *
E esse meu sol deixou de dar calor,
Tornou-se, para mim, astro proscrito
Que se perdeu, talvez, no infinito
Que é, das grandes lonjuras, a maior... *
Mas pudesse eu no tempo recuar
E porque me conheço vou jurar
Que o mesmo sol de então me atrairia *
Sorrio e nem sequer penso em tentar
Andar pra trás, voltando a orbitar
Um astro que entender-me não sabia. *
Mª João Brito de Sousa
05.08.2022 - 14.50h ***
3. *
“Um astro que entender-me não sabia”
Mas voou pelo estro do meu ser
E me fez prisioneiro e renascer
Dum grande amor que eu já não conhecia *
E a cada hora mais ele se abria
A ponto de por ele me perder
Não pôde o coração se defender
E seguir outro rumo ou outra via *
Agora já nem sei se me conheço
Que tudo o que eu tenho lhe ofereço
O que tenho cá dentro e fora a pele *
Mas vivo tão contente e satisfeito
Que esse amor que lhe tenho tão perfeito
Me confunde: sou eu ou serei ele ? *
Custódio Montes
5.8.2022 ***
4. *
"Me confunde: sou eu ou serei ele?"
E exactamente o mesmo se passou
Comigo, quando o sol me deslumbrou
E me cegou até tornar-me dele... *
Porém, astro não há que não revele
O lado obscuro que antes não mostrou
E até eu fui aquilo que não sou
Enquanto ao sol queimava a minha pele *
Agora, enquanto leio o que me diz,
Lembro-me que dizia ser feliz,
Embora cada vez mais me anulasse *
E lá no fundo, muito lá no fundo,
Uma voz sussurrasse - a voz do mundo? -
Que era pura loucura, aquele impasse. *
Mª João Brito de Sousa
05.08.2022 - 16.00h ***
5. *
“Que era pura loucura, aquele impasse”
Mesmo assim prosseguiu o seu intento
Lançando o coração de asas ao vento
Pensando que ele ao céu fosse e o levasse *
Que a gente quando ama segue a face
Do belo imaginado e o pensamento
Sente tanta alegria a seu contento
Que segue irresistível esse enlace *
E nunca se arrepende o coração
Sem saber o motivo ou a razão
De seguir esse rumo e caminhar *
Nunca sente a tortura que o aflige
E todo o amor que tem ele o dirige
A quem quis para sempre ter e amar *
Custódio Montes
5.8.2022 ***
6. *
"A quem quis para sempre ter e amar"
Tive e amei enquanto foi possível,
Mas quando a tempestade mais temível
Rebentou sobre nós a ribombar *
Nenhum de nós sequer ousou brilhar
Que o espanto, também ele, é perecível
E o sol deixa de ser apetecível
Para quem nel`se acaba de queimar... *
O que passou, passou. Se houve saudade,
Pouco durou que a criatividade
Depressa se lhe veio sobrepor *
E nem sei se valeu, ou não, a pena...
Só sei que a peça já saiu de cena
E que foi escrita não sei por que autor. *
Mª João Brito de Sousa
05.08.2022 - 17.25 h ***
7. *
“E que foi escrita não sei por que autor…”
Que teve assim motivo de romance
Analisando à volta a performance
Do êxito e do auge desse amor *
Em coisas bem pequenas há valor
Que visto só depois e de relance
Dá tema ao autor para que avance
E faça boa obra ao seu redor *
Nem tudo o que se passa é problema
Mas de repente temos um dilema
Que não se pode mais ultrapassar *
No romance haverá uma maneira
De abrir então os olhos à cegueira
Terminando o casal feliz a amar *
Custódio Montes
5.8.2022 *
8. *
"Terminando o casal feliz a amar"
Ou em separação, se não houver
Melhor forma de tudo resolver
Até a tempestade se acalmar *
Que é, por vezes, melhor tudo acabar
Do que tentar fazer prevalecer
Amor que esteja à beira de morrer
E já sem esp`rança de ressuscitar... *
- Já tive um sol, mas todo o sol se esconde
Na linha de horizonte, ou sei lá onde
Queira um sol refazer o seu caminho... *
Possa este meu caminho solitário
Ser, por opção, o sol do meu solário
No ôco aconchegante do meu ninho! *
Mª João Brito de Sousa
05.08.2022 - 21.00h
***
9. *
“No ôco aconchegante do meu ninho”
Existe a esperança a reentrar
Com os netos e filhos a alegrar
A minha casa antiga, um meu cantinho *
A casa agora cheia de carinho
Com todos a correr e a nadar
A jogarem à bola e a saltar
E termos mesmo ao lado um bom vizinho *
O sol que nos aquece e acalenta
Clareia tudo à volta e a gente inventa
A forma de o gozar e resistir *
A sua intensidade e o seu calor
Deixamos-lo na sua hora pior
Para melhor em casa nos sentir *
Custódio Montes
5.8.2022 ***
10. *
"Para melhor em casa nos/me sentir"
Depois dessoutro sol ter ido embora,
Voltei a ser aquela que antes fora
E comecei, enfim, a produzir *
Todas as coisas que ousara trair
Sem que soubesse estar a ser traidora:
Acorda a Musa que comigo mora
Depois de estar vinte anos a dormir *
E volto a ser quem fui em tempos idos,
Dona e senhora destes meus sentidos,
Operária de versos e de telas *
Os outros que respondam, se o souberem,
Pelo que já fizeram - ou fizerem... -,
Que eu só sei compor versos, não novelas. *
Mª João Brito de Sousa
05.08.2022 - 23.00h *** 11. *
“Que eu só sei compor versos, não novelas”
Que estas apenas têm sentimento
Que é de aparato, ou menos, no momento
Em que forem passando pelas telas *
Não temos qualquer dor depois de vê-las
Nem nos causam tristeza ou lamento.
Num verso quando eivado de tormento
As dores ficam lá ao escrevê-las *
Escrita uma paixão que a gente teve
Ao tornar a lembrá-la não é leve
E nunca mais nos deixa e vai embora *
Deve-se, antes, pensar, sendo capaz,
Na alegria que chega e vem de trás
E não nessa paixão, de novo, agora.
Custódio Montes
6.8.2022 ***
12. *
"E não nessa paixão, de novo, agora"
Porque, nisso, eu e Musa de igual forma
Não sabemos mentir... Fugindo à norma,
Lançamos a verdade, verso afora... *
Nenhuma de nós duas "fingidora",
Nenhuma de nós chora ou se conforma
Com a mentira que tão bem contorna
O que a verdade grita a toda a hora... *
Mas deu-me o sol momentos de beleza
E a alguns recordo ainda com clareza,
Por isso em coro disse: És o meu sol! *
Deveria, talvez, ter-me calado,
Mas esta Musa, de ouvido apurado,
Tentou-me até morder isco e anzol... *
Mª João Brito de Sousa
06.08.2022 - 10.30h *** 13. *
“Tentou-me até morder isco e anzol….”
Mas valeu-me eu estar desconfiado
Senão ela ter-me-ia enganado
No seu canto orquestrado em dó bemol *
Fechou-me tudo à volta com lençol
Para que eu a não visse. Apaixonado
Resisti e depois de a ter deixado
Voltei para cantar à rouxinol *
E a minha amada então ficou contente
Passou de novo a ser meu sol nascente
E ser o meu destino, o meu desejo *
Ao vê-la logo aceno e digo adeus
Apresso-me a fazer seus olhos meus
E ficamos um só ao dar um beijo *
Custódio Montes
6.8.2022 ***
14. *
"E ficamos um só ao dar um beijo"...
Faça-se o seu presente o meu passado
Remoto, é certo, mas vivenciado
E belo como as águas do meu Tejo *
Pois sendo hoje mais amplo o que cotejo,
Parece o resto ter-se aligeirado,
Tomando a dimensão de um velho fado
No qual não cabe já qualquer desejo *
Também sou um produto do vivido,
Nisso me espelho e não há desmentido
Que me faça negar que houve alegria *
E uma absurda ilusão de ser feliz
Quando dizia, tal como aqui diz:
"És o sol que me aquece dia a dia"! *
Mª João Brito de Sousa
06.08.2022 - 12.30h ***
publicado às 13:21
Maria João Brito de Sousa
"O SONO DA RAZÃO PRODUZ MONSTROS"
Francisco de Goya
***
RAZÃO - Coroa de Sonetos
* Mª João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues *
1. * Chegaste escondida nas asas do tempo:
És ré sem sentença nem culpa formada
E germe da força que (in)gere o talento
Duma humanidade confusa e cansada *
Encontro-te sempre. Não te oiço um lamento
Que a raiva - até ela! - se quer registada
Num ficheiro próprio e num só documento
Conquanto te nasça por tudo e por nada... *
Chegaste e provaste de todos os frutos:
Exultaste os partos, choraste os teus lutos,
Sonhaste os teus sonhos, lavraste o teu chão... *
Hoje destronada, Razão que aqui canto,
Quem ousa remir-te envergando o teu manto
Que sempre foi pródigo e fértil, Razão? *
Mª João Brito de Sousa
16.07.2022 - 12.40h ***
Gravura de Francisco de Goya ***
2. *
"Que sempre foi pródigo e fértil, Razão?"
um manto de luz pejado de estrelas
ou apenas triste, magra escuridão
que nem tua Musa se oferece p'ra vê-las. *
Porquê tanto encómio na mente/razão
se ela funciona, em nós, como trelas
prendendo o sentido da nossa emoção
que ela se nega demais por contê-las? *
Razão, ó razão, que és "razão pura"
não estragues dos versos a linda figura:
deixa extravasar o medo de Ser! *
Porque, sendo mente, és pura estrutura
pejada da história que vem da cultura
e vai perseguir-te, depois de nascer. *
Laurinda Rodrigues ***
3. *
"E vai perseguir-(me) depois de nascer",
Sem medos, que medo não sinto... que queres?
Seduzem-me os monstros que deito a perder
No poço sem fundo dos fracos prazeres... *
À Razão não perco e pretendo-a manter
Dialéctica eterna dos meus afazeres...
Não a quero pura nem estática ver,
Porque ela só pára se a não entenderes *
E viva se espelha nas mãos proletárias,
De maneiras tantas, de formas tão várias,
Que os seus belos frutos sempre irão brotar *
Ao longo de ramas reais, necessárias
Às almas obreiras e extraordinárias
Que entendem ser justo a Razão resgatar.
*
Mª João Brito de Sousa
18.07.2022 - 13.08h ***
4. *
"Que entendem ser justo a Razão resgatar"
e dar-lhe o estatuto de criatividade
mesmo que, depois, a mente larvar
só produza ideias da posteridade. *
Ó ervas daninhas, crescidas no ar,
da vossa presença não tenho saudade.
Quero enlouquecer e me apaixonar
sem ter normativos de terceira idade. *
E, como uma onda, cobrir os sentidos
de torpes palavras e agudos gemidos
deixando na terra o gosto das águas... *
Talvez sejam gestos, há muito esquecidos
em sono acordado de sonhos dormidos,
de uma alma insana nascida de mágoas. *
Laurinda Rodrigues
*** 5. *
"De uma alma insana nascida de mágoas"
Nasceram dif`rentes posturas de classe:
Conspira o burguês, cria montros e fráguas
Que amansem "proletas", vencendo esse impasse *
Cruzam-se os seus barcos. Vão mansas as águas...
Tão só de aparência pois quem as olhasse
Sondando o que cresce para além das tábuas,
Veria o que eu vejo... e talvez não gostasse... *
Mas para que o saibas, aqui te confesso
No Pós-Modernismo ter visto progresso...
Cresci seduzida por ele. E contudo, *
Amadurecida, só vi retrocesso...
Ser escriba ou poeta é todo um processo
De talento - é certo! - mas também de estudo. *
Mª João Brito de Sousa
18.07.2022 - 16.50h
***
6. *
"De talento - é certo! - mas também de estudo"
criaste teu espírito de Razão letrada.
Eu só partilhei o cinema mudo
onde todo o gesto é gesto de fada. *
Percebo, no entanto, um pouco de tudo,
um tudo de tudo, um tudo de nada...
e, sempre sonhando, eu nunca me iludo
nem às frustrações eu fico fixada. *
Se o mundo se arroga o Ser da Razão
deixando que morra o amor e a paixão
que sempre fecunda a terra e o mar, *
Sempre gritarei ao outros meu "não"
por quererem impor essa reclusão
que a Razão impõe, em vez de sonhar. *
Laurinda Rodrigues *
7. *
"Que a Razão impõe, em vez de sonhar"?
És tu quem o diz, que eu nunca o diria,
Já que é pelo sonho que me hei-de guiar
De dia e de noite, de noite e de dia *
E à Razão, coitada, querem-na enterrar
Com sonhos e tudo, junto à mais-valia
Da mão que trabalha pra pouco ganhar
Que o grosso do lucro alimenta a avaria... *
Em boa verdade te digo e repito
Estar ela em extinção neste mundo em conflito
Por ser dela o sonho que se concretiza *
E tudo isto é fruto de um esquema, de um mito,
Que a quer difamada para que o aflito
Não saiba nem sonhe quanto idealiza! *
Mª João Brito de Sousa
18.07.2022 - 20.30h
***
8. *
"Não saiba nem sonhe quanto idealiza"
é imperativo do Código que indica
as razões do jogo, que o jogo precisa
p'ra salvar o Ego, de que nunca abdica. *
É tal sua força, que julgo exterioriza
que tem de enfrentar o medo, que fica
quando, à noite, só e triste, precisa
dessa mão e colo que o dulcifica. *
Somos todos sábios e néscios na vida
a querer desvendar sentido à partida
p'ra morte que chega, nunca com razão... *
E usamos a história, que foi muito lida,
contando o segredo e a mágoa da ferida
por termos matado nosso coração. *
Laurinda Rodrigues ***
9. *
"Por termos matado nosso coração",
Dirão alguns néscios e sábios em coro
Não compreendendo que foi a Razão
Que foi despojada da c`roa de louro *
E logo enterrada em três palmos de chão
Pela burguesia sedenta do ouro,
Senhora da guerra que actua à traição
E nos manipula sem qualquer decoro *
Não vês que anda o mundo cego e tresloucado,
Que tudo confunde, virtude e pecado,
E que andam os pobres cada vez mais pobres, *
Que embora pulsando num peito estouvado,
Nem um coração foi detido e julgado
Em nome de causas que se afirmam nobres?! *
Mª João Brito de Sousa
19.07.2022 - 09.10h ***
10. *
"Em nome de causas que se afirmam nobres",
a Razão declara submissão e paz,
com promessas vãs que sempre descobres
estar pr'além daquilo de que se é capaz. *
Assim divididos um e outro, encobres
que a sua verdade é mentira e jaz
entre a multidão de ricos e pobres
que acabam iguais, quando a morte apraz. *
Em nome da honra e do compromisso
brincas à Razão e invocas feitiço,
destino cruél que vem do Além. *
Mas - ai! - já não escapas e acreditas nisso
pois é com palavras que a maldade atiço
em forma de medo, de raiva ou desdém. *
Laurinda Rodrigues
***
11. *
"Em forma de medo, de raiva ou desdém"
Respondes àquilo que serena exponho...
Qual de nós conhece tudo o que convém
Ao homem que cresce dentro do seu sonho? *
Desdenha, enraivece... nada nos detém,
Nem sequer o monstro mais cru, mais medonho
Que afronte e desminta um homem de bem,
Redimido agora, jamais enfadonho *
Desconheces, creio, que o capitalista
Destrói a Razão pra que ela desista
De ser ferramenta dos trabalhadores *
Eu, que em mim a trago, tenho-a por benquista
Irmã do explorado, Musa do artista
E um alvo a abater, para os seus censores. *
Mª João Brito de Sousa
19.07.2022 - 11.26h *** 12. *
"E um alvo a abater, para os seus censores"
descobres na pele, nos nervos, Razão?
É Razão porquê, se são delatores
e, sem caridade, não estendem a mão? *
Estarás a ser alvo de estranhos temores
de um planeta exangue, com fome de pão,
sem qualquer resposta de dias melhores
mergulhado apenas na destruição? *
Nas minhas entranhas, é certo que sei
que todo o presente é fruto da lei
que já vigorou em tempos passados... *
Não falo, nem escrevo, sobre aquilo que dei,
o que recebi, aquilo que esperei...
Apenas desejo novos seres alados. *
Laurinda Rodrigues ***
13. *
"Apenas desejo novos seres alados",
Ícaros - quem sabe? - com asas de cera,
Mais tarde ou mais cedo sendo castigados
Plos deuses irados do topo da esfera *
Tal qual a Razão foi, por seus jurados
Sem escudo lançada na jaula da fera
De compridas garras, dentes afiados
E a ferocidade sem fim da quimera *
Tu e eu, burguesas privilegiadas,
Temos perspectivas bem distanciadas:
"Nem guerra entre os povos, nem paz entre as classes!" *
Sim, são bem bonitas essas tuas fadas,
Mas que sabem elas de bocas esfaimadas,
Dos povos sem terra e dos grandes rapaces? *
Mª João Brito de Sousa
19.07.2022 - 15.00h ***
14. *
"Dos povos sem terra e dos grandes rapaces"
sei mais do que pensam ou julgam pensar...
Nasci de outra vida em tempos fugaces
onde não havia Razão para cantar. *
No entanto cantei, sem temer as classes,
brincando ao poder que quer dominar...
E, sendo mulher de poucos enlaces,
troquei-lhes as voltas e soube singrar. *
De burguesa tenho poesia editada
que posso exibir, quando estou tentada
a jogar, com os outros, esse passatempo... *
E, um dia, a Razão há-de estar parada,
abrindo-te as portas quando, p'la calada,
"chegaste(,) escondida nas asas do tempo". *
Laurinda Rodrigues ***
publicado às 12:20
Maria João Brito de Sousa
"Promenade" - Marc Chagall
ANJO - Custódio Montes e Mª João Brito de Sousa *
Coroa de Sonetos
1. *
Um anjo bem gostava eu de ser
Voava até Oeiras junto ao mar
Para ver outro anjo a poetar
Olhar e escutar o acontecer *
Como era bom aí eu escrever
Ouvia o outro anjo e ao escutar
Melhor me poderia inspirar
E vinha e ia lá para aprender *
Que os anjos têm asas e alto voam
E cânticos poéticos entoam
Agora, dia e noite e todo o ano *
De longe vem um canto de alegria
Que entoa uma musa com mestria
Ia ouvir se fosse anjo, um anjo humano *
Custódio Montes
15.3.2022 *** 2. *
"Ia ouvir se fosse anjo, um anjo humano"
Que pudesse ir além do que aqui escrevo,
Um canto a despontar do doce enlevo
Do seu altivo berço de serrano *
Onde crescem as torgas mano a mano
Com a carqueja e com o verde trevo...
Anjo não sou, porém, e se me elevo,
Caio a seguir e só provoco é dano... *
Só a palavra voa quando a solto
E fica a orbitar o chão revolto
Da minha linda terra-quase-mar *
É a palavra a minha ferramenta;
Nasce ainda que eu esteja sonolenta
E há-de sobreviver ao que eu calar... *
Mª João Brito de Sousa
15.03.2022 - 18.00h *** 3. *
“E há-de sobreviver ao que eu calar…”
Porque fica a palavra como um hino
Ou como numa torre ao longe um sino
Que se ouve a cada hora badalar *
O escrito por cá fica a perdurar
Com brilho intenso, brilho cristalino
Com graça, sempre novo, tal menino
Alegre que não deixa de brincar *
E quem o escrito lê, seja onde for,
Logo se vai lembrar do seu autor
Ao qual dará as loas que merece *
Se morre ele ou o anjo, o escrito não
Que traz a luz e apaga a escuridão
Ao ir-se o autor, no verso permanece *
Custodio Montes
16.3.2022 ***
4. *
"Ao ir-se o autor, no verso permanece"
E assim se vai mudando a morte em vida,
Porque muito depois da despedida
Se ouve o seu canto como se vivesse *
Quem já partiu... E sem que ele o soubesse
Enquanto a mão escrevia decidida
A deixar uma estrofe bem tecida,
Já o olhar de alguém de novo a tece *
E se o que leu acaso o cativou,
Se algum encanto aquele olhar lhe achou,
Passa o poema a ser de mais alguém *
Talvez um outro olhar venha depois
E esses encantados já são dois,
Ainda que o não leia mais ninguém... *
Mª João Brito de Sousa
16.03.2022 - 11.10h ***
5. *
“Ainda que o não leia mais ninguém”
E se alguém ler o verso é o bastante
Para quem o escreveu ir por diante
Que fica da leitura o que contém *
Não morre e permanência ele tem
Mesmo que a pena esteja já distante
A memória deixada vai avante
Ainda que o autor vai para o além *
A vida continua no universo
Da mente que o criou e no seu verso
Em marco que lhe traz memória plena *
Estando ele escrito, o verso fica
E mantém o autor que deifica
No verso que escreveu e no poema *
Custodio Montes
16.3.2022 *** 6. *
"No verso que escreveu e no poema"
Talvez habite um anjo, um anjo alado
Que ao voar vá espalhando o seu recado
E o faça dia a dia, por sistema... *
Talvez esse anjo enfrente algum dilema,
Talvez um dia hesite e com cuidado
Mantenha um verso ou outro bem guardado,
Não venha ele causar algum problema *
Mas muito raramente isso acontece
Porque um verso respeito lhe merece
E o seu destino nem um anjo o sabe *
Ainda que lhe tema pela sorte,
Nenhum anjo duvida de que a morte
Não cabe nunca onde um poema cabe... *
Mª João Brito de Sousa
16.03.2022 - 12.40 h
*** 7. *
“Não cabe nunca onde um poema cabe”
Por isso, a vida angélica não quero
Digo-o frontalmente, sou sincero
Só a vida terrena é que me sabe *
Pensarmos no além é um entrave
É ter junto de nós animal fero
Que amedronta e nos leva ao desespero
Por isso, o rejeito e em mim não cabe *
Mesmo tendo um só dedo a escrever
Prefiro apenas tê-lo e ao meu ser
Que ficar no poema após a morte *
Enquanto por aqui a gente andar
Podem fazer-se versos de encantar
Porque enquanto por cá se almeja um norte *
Custodio Montes
16.3.2022 ***
8. *
"Porque enquanto por cá se almeja um norte",
Por lá, um anjo alado e incorpóreo
Terá o peso do corpo marmóreo
Que em tempos lhe tiver cabido em sorte *
E ainda que belo em seu recorte,
Terá a dimensão de um acessório,
Nada fará de bom, de meritório,
Para além de exibir seu nobre porte *
Enquanto os outros, os que ao nosso lado
Enfrentam este mundo atormentado,
Com a coragem própria dos humanos *
Que mais ou menos belos - pouco importa! -,
Trazem sempre a palavra que conforta
Um irmão que sucumbe aos desenganos. *
Mª João Brito de Sousa
16.03.2022 - 14.30h *** 9. *
“Um irmão que sucumbe aos desenganos”
Cheio de sofrimento e de tristeza
Ao ver ao seu redor tanta vileza
E actos asquerosos e insanos *
Em cada hora e dia, pelos anos
Desviando fortunas à pobreza
E exibindo gestos de grandeza
Com cheiros bafientos pelos canos *
O anjo bem os vê mas não faz nada
Deixando andar no mundo a canalhada
Que é muito pior que um animal *
Há guerras destrutivas sem quartel
Em confusão de torre de Babel
De anjos não dos nossos mas do mal *
Custodio Montes
16.3.2022 *** 10. *
"De anjos não dos nossos mas do mal",
Humanos todos, que noutros não creio,
Esteve este nosso mundo sempre cheio
E para muitos é coisa banal *
Uma guerra sangrenta e tão brutal
Que avança, que parece não ter freio
Porquanto tudo leva de escanteio
Pra descambar num ódio irracional... *
Anjos do mal ou peões dos int`resses
Da indústria da guerra e das benesses
De que muitos irão tirar proveito? *
Sou contra as guerras! Frias, mornas, quentes
Ou mesmo as que, subtis, dominam mentes...
Às guerras entre povos, nunca aceito! *
Mª João Brito de Sousa
16.03.2022 - 16.30h ***
11. *
“Às guerras entre povos, nunca aceito”
Nem eu as quero ver à minha porta
Nem na terra de quem as não exorta
Nem mesmo nas de quem as usa a eito *
Ao escolher o povo o seu eleito
Pensa que ele ao mandar bem se comporta
Mas depois de o escolher Inês é morta
E só então lhe vê esse defeito *
Destrói povos irmãos mesmo ao lado
Por títeres o exército mandado
Causam destruição, barbaridade *
E quem os elegeu se está repeso
Não pode abrir a boca que vai preso
E manda o ditador sem piedade *
Custodio Montes
16.3.2022 *** 12. *
"E manda o ditador sem piedade",
Como é comum a todo o ditador,
Que a guerra se erga em todo o seu "esplendor"
Em cada rua ou praça da cidade *
Não de é anjo, decerto, essa vontade
De ser o poderoso vingador
Dos mártires do Donbass na sua dor;
É de quem julga ter impunidade *
Mas se de anjos falamos - não de demos -
Melhor será que assim continuemos,
Que embora o Sahara voe sobre nós *
E esteja o céu repleto de poeira,
É preferível não cair na asneira
De dissertar sobre esta guerra atroz *
Mª João Brito de Sousa
16.03.2022 - 18.00h
*** 13. *
“De dissertar sobre esta guerra atroz”
Eu só a referir mas de passagem
Para aludir àquela vilanagem
Que quer passar por anjo e é feroz *
Mas nos versos trocados entre nós
Eu só falo dum anjo de coragem
Que me traz harmonia e vantagem
Bem junto ao rio Tejo e à sua foz *
A esse gosto bem de o ver voar
A dar a dar às asas junto ao mar
E com poemas lindos que eu almejo *
Queria que a saúde lhe voltasse
E que o seu lindo estro não parasse
Seria esse o meu maior desejo *
Custodio Montes
17.3.2022 ***
14. *
"Seria esse o meu maior desejo"
E eu tanto assim sei bem não merecer,
Não sei sequer como hei-de agradecer,
Se de lhe agradecer tiver ensejo... *
Anjo não sou, que a tanto não almejo,
Apenas sou poeta e sou mulher
Velha demais pra pensar em crescer
Ou pra esquecer os versos que cortejo *
Por isso escrevo tanto e tão depressa:
Um verso acabo e um outro já começa
A bailar-me na mente, a qu`rer nascer *
E por isso, também, logo entendi
O que, no que transcrevo, acima li:
"Um anjo bem gostava eu de ser"! *
Mª João Brito de Sousa
16.03.2022 - 19.10h
***
publicado às 08:31
Maria João Brito de Sousa
SONETO À "CHEF" *
(Sem jaleca, nem estrelinhas) *
Coroa de Sonetos *
Mª João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues *
1. *
Sim, já usei palas, uma em cada olho,
Mas uma jaleca com direito a estrela,
Nunca usei nenhuma, nunca pude tê-la
Por não saber como... bringir um repolho! *
Não tendo jaleca, estrelinhas não colho
Nem mesmo as que observo da minha janela;
Sou tão só poeta, escrevo à luz da vela,
Mal vou distinguindo espargos de restolho... *
Quem me faz um prato com este soneto
Sem peixe, sem carne, nem sabor concreto?
E acabo eu de ouvir que de um bom cozinhado *
Um "Chef" estrelado faria um poema...*
Que o faça, que eu provo! Salgou-lhe um fonema?
Faltou-lhe a mestria de um vate inspirado! *
Mª João Brito de Sousa
27.02.2022 - 12.00h
* Chef Óscar Geadas na finalíssima do programa MasterChef Portugal *** 2. *
"Falta-lhe a mestria de um vate inspirado"
que tenha no corpo a grande lição
que o cheiro e o gosto, depois de provado
não gosta de expor sua rendição. *
O "chefe" ou a "chefe" das coisas visíveis
esconde para nós a ponta do véu:
somos atraídos por ecos plausíveis
que brotam perfumes que a terra nos deu. *
Mas nada é verdade. Verdade que importa?
Todos pretendemos não ser "cepa torta"
traduzindo o eco de gritos potentes... *
Talvez esteja longe! Mas cá, entre nós,
espero que haja gente que, ao usar a voz,
traduza razões que sejam diferentes. *
Laurinda Rodrigues
27.02.2022 ***
3. *
"Traduza razões que sejam diferentes"
Bringidas, seladas ou talvez cozidas
Já que pouco entendo de águas "reduzidas"
E algas polvilhadas de ocres reluzentes... *
Mas que são bonitas e muito atraentes
As tais obras-primas por lá concebidas,
Disso não duvido porque as vi servidas
Quer estivessem frias, quer estivessem quentes! *
Eu que mal cozinho, vou fazê-lo agora,
Mas "Chefa" não sou, sou só "comedora"
E um arroz me basta se uma costeleta *
Bem ou mal passada puder pôr no prato,
Que a barriga sinto roída por rato,
No que toca a pratos, pouco ou nada esteta... *
Mª João Brito de Sousa
27.02.2022 - 14.00h
*** 4. *
"No que toca a pratos, pouco ou nada esteta"
mas será artista na decoração
da mesa e da louça que são sua meta
trazida do tempo de infância e paixão. *
Lembranças colhidas de sabores eternos
sentados à volta, com cheiro a lareira.
Não existem guerras nem esses infernos
de quem não tem pão, nem eira nem beira. *
Histórias mal contadas. Doces reprimendas
que, agora, esquecidas, sabem a merendas
de doces com gestos apaziguadores... *
Nem sequer importa quem foi cozinheira
porque, na alegria, tu foste a primeira
devorando, ansiosa, todos os odores. *
Laurinda Rodrigues *** 5. *
"Devorando, ansiosa, todos os odores"
Vêm-me à memória belas rabanadas,
Açordinhas d`alho, filhós, encharcadas...
E a essas memórias juntam-se os sabores *
De antigas compotas, de velhos licores,
Das mil iguarias bem confeccionadas
Pela avó Maria ou pelas empregadas
Das casas maternas, meus grandes amores... *
Três foram as casas em que fui crescendo;
Todas me prenderam, todas fui prendendo
E sou hoje um bairro de três casas só *
Porque a quarta casa é a que hoje abriga
O corpo que envergo e o da minha amiga,
A Musa incansável, coberta de pó... *
Mª João Brito de Sousa
27.02.2022 - 19.40h
***
6. *
"A musa incansável, coberta de pó"
não tem a mania das arrumações
e a cama onde deita para fazer "óó"
é feita de sonhos, crenças, ilusões. *
Não pede que a dona faça concessões
p'ra que chegue urgente sentada em trenó
como o Pai Natal ou como Papões
que na noite gemem como o som da mó. *
Ah que sinfonia de gostos infindos
quebrados, esgotados, mas ainda lindos
que, atrás de uma porta, poetas aguardam... *
E, sempre com medo das reais maldades,
compõem os versos que trazem saudades
de um tempo vivido que mágoas não guardam. *
Laurinda Rodrigues ***
7. *
"De um tempo vivido que mágoas não guardam"
Apuram-se as sopas de espinafre ou grão;
Para essas guardo a vara de condão
Cujos bons efeitos decerto não tardam... *
Sobre o leite creme sempre convém que ardam,
Que flamejem chamas como se um dragão
Lançasse o seu sopro com mais devoção
Do que os mais que o comem, do que os mais que enfardam *
E, agora, as memórias voltam prá panela
Com açúcar, leite e um pau de canela
A que junto lima para obter frescura *
As gemas batidas e homogeneizadas
Serão, na mistura, bem incorporadas
Mal este soneto levante fervura... *
Mª João Brito de Sousa
27.02.2022 - 21.30h ***
8. *
"Mal este soneto levante fervura"
entornando o caldo tão açucarado
vais lamber a espuma, curando a secura
da espera de um beijo que saiba a pecado. *
Não é cozinhado que o desejo cura
por muito que seja bem condimentado:
a fome de amor, que a ânsia tortura,
em nada se mata se não for saciado. *
Transmuta-se a carne. O instinto sobra.
Comendo a maçã que te deu a cobra
ficarás p'ra sempre envolta em pecado. *
E mesmo que escrevas ao tal cozinheiro
os teus belos versos num estilo certeiro
não vai ser a ele que entregas teu fado. *
Laurinda Rodrigues ***
9. * " Não vai ser a ele que entregas teu fado"
E eu logo respondo que tudo o que entrego
É esta amizade que sinto e não nego
Por negar saber o que é o tal... "pecado" *
E a menos que esteja muito perturbado
Ou surdo dos olhos, ou de ouvido cego,
A ti te o devolvo e em ti o delego;
Errou na morada, chegou atrasado! *
Julgas que eu poeto para um cozinheiro
Só porque um soneto me nasceu matreiro
De uma frase ouvida? Devo-te dizer *
Que estás enganada, nada disso eu quis,
Por pura ironia fiz o que aqui fiz;
Escrevo até pra cactos, se tal me aprouver... *
Mª João Brito de Sousa
27.02.2022- 23.13h
*
10. *
"Escrevo até para cactos, se tal me aprouver!"
Mas toma cuidado porque catos picam
e sendo, como és, a Grande Mulher
não gosto de ver que dores te salpicam. *
Assim, é melhor os versos escrever
ao tal cozinheiro (que os petiscos bicam!)
e esperar que ele os venha comer
com sal e pimenta, que tão belos ficam! *
Mas fico espantada que sejas capaz
de compor sonetos que nos tragam paz
depois de teres sido vítima da gula... *
Presumo que a Musa já dorme contigo
debaixo da cama, sentada ao postigo,
enquanto teus versos sua boca oscula. *
Laurinda Rodrigues *** 11. *
"Enquanto teus versos sua boca oscula"
Ou beija os tais cactos que nunca a picaram;
Ambos têm espinhos que picam, mas saram,
Que a mãe natureza tudo isso regula *
Enquanto o planeta circula e circula,
Meus olhos há horas que se descerraram
E o Sol já vai alto nos céus que azularam
Sem seguirem ordens, nem lerem a bula *
Na paz dos meus versos dormi, com efeito;
Vestido o pijama fiquei a preceito
Pra mais uma noite de sono profundo *
Não fosse o alarme tocar tantas vezes,
Teria dormido talvez uns bons meses
Alheia às desgraças que grassam no mundo... *
Mª João Brito de Sousa
28.02.2022 - 10.20h
***
12. *
"Alheia às desgraças que grassam no mundo"
mas nunca indiferente no fundo do Ser
que só a aparência de um medo profundo
rasgou as entranhas p'ra nunca morrer. *
Se tocam os sinos p'la paz neste mundo
que estranha soada vai acontecer?
Talvez seja o grito desse ódio imundo
perdido no espaço... Iremos viver? *
Entre cozinhados, com Chefes ou não
Poetas temperados com sonho a carvão
chegamos à meta, quase esmorecidas... *
Tu cantas vitória e eu não canto, não!
porque esta memória cravou-me no chão
das várias memórias já acontecidas. *
Laurinda Rodrigues ***
13. *
" Das várias memórias já acontecidas"
Quem te diz que eu rio e que canto vitória,
Se nunca me esqueço das chagas que a História
Nos mostra - se a lermos - que são cometidas? *
Minha Luta é outra! Estas, fratricidas,
Funestas, horrendas, trazem-me à memória
Prenúncios de morte; nem honra, nem glória,
Que essas são "fachadas", que essas são fingidas! *
Deixo os cozinhados de requinte extremo
E evoco o Nautilus do Capitão Nemo
Transmutado, agora, num` arma nuclear... *
Perco o apetite só de imaginá-lo!
Não cozo as batas, nem grelho o robalo,
Tenho é de esforçar-me pra não vomitar! *
Mª João Brito de Sousa
28.02.2022 - 11.55h *** 14. *
"Tenho é de esforçar-me para não vomitar"
quando olho e ouço notícias atrozes
onde o inconsciente está a governar
fazendo verter impulsos ferozes. *
Já não acredito que apenas são vozes
a espalhar o medo sem o praticar...
Começamos bem com Chefes e nozes
que isto de comer prefiro a matar. *
Afinal sabias que a poesia serve
para divertir, mas que também ferve
p´ra temperar a vida como fosse molho... *
E armadas em Chefe, jaleca despida,
perguntas se um dia já fui corrompida:
"Sim, já usei palas, uma em cada olho." *
Laurinda Rodrigues ***
publicado às 08:31
Maria João Brito de Sousa
MOVER MONTANHAS * Coroa de Sonetos *
Mª João Brito de Sousa e Ró Mar * I *
Não te procurarei até que venhas
E que tragas contigo o que levaste
De mim, que te dei mais do que sonhaste,
De mim, que hoje abandonas e desdenhas *
Como se as tuas glosas fossem estranhas
Aos versos que comigo partilhaste...
Voa, então, até onde te encantaste
Ainda que voando me detenhas *
Mas se em verdade, Musa, me olvidaste,
Enquanto noutras vozes te entretenhas
Ache eu a voz da voz que em mim calaste *
E ainda que me perca se me ganhas,
É no poema que hoje me negaste
Que encontro a força pra mover montanhas. *
Mª João Brito de Sousa
19.01.2022 - 13.45h
*** II *
"Que encontro a força pra mover montanhas" E destrono a Musa feiticeira, Que de repente em manhas e artimanhas Dá volta ao miolo e traz canseira! *
Ah, como me apraz saber-me capaz De improvisar sem ter fada madrinha P'ra o toque final, tão bem que isso faz! Não sendo ingrata, também sou estrelinha! *
Venha o pôr do Sol, que eu desfilo ao lado! Haja mar altaneiro e mais natureza Para me consolar no poema amado! *
Se tiveres de novo a delicadeza De sobrevoar o meu céu estrelado Serás o luar dos meus dias de tristeza. *
© Ró Mar | 20/01/ 2022
***
III *
"Serás o luar dos meus dias de tristeza"
E o sol das minhas noites de alegria,
Mas fada não serás onde a magia
Seja maior que o pão que levo à mesa... *
Se sou plebeia, serás tu princesa
De um reino que nem sei se principia
Ou finda assim que cessa a melodia
A que vou estando noite e dia presa? *
Existirás pr`além da teoria
E serás, realmente, a chama acesa
Duma candeia que só me alumia *
Quando a palavra voa e me não pesa?
Musa, não sei que chama ardente ou fria
Soube acender em mim tanta incerteza... *
Mª João Brito de Sousa
19.01.2022 - 23.30h ***
IV * "Soube acender em mim tanta incerteza..." Por minha culpa, entreguei o coração Num dia núveo p'ra sentir firmeza Na minh' alma ao compor uma canção; *
Mas, dias não são dias, hoje sei bem O quanto tu me amaste na surdina; Se me foges é porque queres-me bem E eu sempre preciso da lamparina... *
Ah, quantas as noites o Morfeu não vem! E, o que me têm acesa noite adentro És mesmo tu: ó Musa de todos sem... *
Querubina da colina, epicentro Da retina, qual o horizonte advém Liberto, peculiar do circuncentro! *
© Ró Mar | 20/01/ 2022
***
V * "Liberto, peculiar do circuncentro(!)",
Polígono imperfeito, deus de barro,
Espiral de fumo ou cinza de cigarro
E tudo o mais que exista cá por dentro *
Quando de ti me afasto e desconcentro
E nunca sei se agarro e quando agarro...
Desse abraço improvável e bizarro
Há-de nascer a luz de um céu cruento *
Montanhas trazes dentro do teu tarro
E algumas são de ferro e de cimento
Ainda fresco ou já mostrando o sarro *
Do tempo em imparável movimento
Como se o ir e vir de um autocarro
Que não tem um motor nem traz assento *
Mª João Brito de Sousa
20.01.2021 - 11.00h ***
VI * "Que não tem um motor nem traz assento" E este carcomido, desamparado, Onde a poeira aninha no argumento Ressaltando o tempo pré-encerrado! *
Por mais que abra janelas p'ra arejar A maleita está aqui de tal forma, Que não resta dúvida a despistar Nem exclamações, tornando-se norma. *
O vai-e-vem de engrimância na escalada Ressalta, saltam os carretos, teia Premiando a permuta prá 'pousada'. *
Imagético, contudo recheia De esperança o olhar da voz calada E os dedos tremulando a ideia! *
© Ró Mar | 20/01/ 2022 ***
VII *
"E os dedos tremulando a ideia",
Movem montanhas, plantam mil florestas
E, solidários, limam as arestas
Das estrelas-do-mar na maré cheia *
Ninguém os pára, ninguém os refreia;
Nem os arqueiros com as suas bestas
Podem abrir mais que pequenas frestas
No muro de vontade que os rodeia *
E se cansados fazem suas sestas
No sal do mar, em castelos de areia,
Jamais as horas lhes serão funestas *
Que à noite hão-de ter astros para a ceia
Degustados ao som de mil orquestras
Conduzidas por uma só sereia. *
Mª João Brito de Sousa
20.01.2022 - 15.40h ***
VIII * "Conduzidas por uma só sereia" É mote de génio, que iça esta barca Cambaleante entre o mar e a candeia Na mística e aventurada matriarca; *
Protetora das ninfas Oceânides Criadora de floreado marítimo, Que ascende às excelsas efemérides, Ah, Tétis, Musa do vento Oceânico! *
Move-se a Terra e ascende-se aos Céus Neste belo pedaço mitológico Onde se faz viagens pelos ilhéus; *
Metáforas de mérito cronológico Filiadas na Lumena dos coruchéus Onde nasce o poder morfológico. *
© Ró Mar | 20/01/2022 ***
IX *
"Onde nasce o poder morfológico"
E a lógica se despe de sentido,
Surge um ardor imenso e desmedido
Como se o surrealmente fisiológico *
Nascesse, por acaso, num zoológico
E fosse um estranho sem nunca o ter sido...
Ah, quem o não teria enaltecido
Se fosse belo e sábio ou antológico? *
Vogasse a Barca num mar já rendido
Ao vírus mais letal, mais patológico
E fosse o tripulante dissolvido *
Num punhado de plâncton ideológico...
Seja este poema aceite ou proibido,
Nada do que foi escrito é escatológico! *
Mª João Brito de Sousa
20.01.2022 - 17.20h ***
X * "Nada do que foi escrito é escatológico" São meros laivos de raízes profundas Ao vocábulo impugnando o lógico Da maré, que se adivinha nas fundas! *
Assim, esvaziado o pote mágico Calcorreado vai o pensamento Ao leme dum desnorte nostálgico Implorando pelo sentimento. *
Desvanece o modo de frasear Porque escasseia a leda inspiração, Que só dotados sabem desenrolar. *
Cabe-me mover montanhas p'ra achar O dom que outrora abria o coração Num leque emotivo de fascinar! *
Ró Mar | 20/01/2022 ***
XI *
"Num leque emotivo de fascinar(!)"
Lançou ao vento um punho de sementes;
De pé ficou, cerrados os seus dentes
Que mais não tinham para mastigar *
Já que as sementes rodavam no ar
Todas seguindo rotas bem diferentes...
Que faria sem ter ingredientes
Pra pôr na mesa o pão do seu jantar? *
Por que razão tivera tais repentes
E perdera as sementes sem pensar?
O vento não devolve em pratos quentes *
Palavras acabadas de idear,
Mas pode um poema ser manjar de gentes,
Tentear-lhes a fome... e até sobrar? *
Mª João Brito de Sousa
20.01.2022 - 19.15h ***
XII * "Tentear-lhes a fome... e até sobrar" Para procriar fiapos noutra sequência Expetante que venha a melhorar O cardápio com dose de paciência. *
E, por este labirinto sequiosa Duma boa prosa escarafuncho Até aos confins, nada receosa, Embora se denote o caruncho. *
Tenha eu ainda alguns dentes molares Até ao dia de partir... hei-de sorrir, Dar dentadas nas côdeas e acenares *
Ao universo o uno verso de devir Num cear coerente de afagares Saciar famintos de estro... coexistir... *
© Ró Mar | 20/01/2022 ***
XIII *
"Saciar famintos de estro... coexistir..."
Ser verbo e carne e nervo e até ser pão
Que desse verbo nasce humano e são
Enquanto a mão da Musa o permitir *
E com dentes, ou não, saber sorrir,
Explorar a vida até à exaustão,
Escrever com toda a força da paixão,
Ser-se um vulcão que aprende a não explodir... *
Movemos a montanha, mão com mão,
E abrimos as janelas do devir
Como quem abre uma outra dimensão *
E se essa dimensão nos não servir,
Depressa mais janelas se abrirão
Sobre as montanhas que houver que subir! *
Mª João Brito de Sousa
20.01.2022 - 22.05h ***
XIV *
"Sobre as montanhas que houver que subir"
Se o fôlego falhar, basta a vontade
Que ela é quem nos traz a felicidade
E este pequeno orgulho de existir *
Que vai nascendo em quem não desistir
De ir dando quanto pode em qualidade,
Pois só assim se alcança a igualdade
E a alegria imensa de a fruir... *
Não desistas agora! Mais um passo
E um outro ainda. Nunca te detenhas
Que o teu maior troféu é o cansaço; *
Se lhe resistes, moverás montanhas...
Mas nunca esperes pelo meu abraço,
"Não te procurarei até que venhas"! *
Mª João Brito de Sousa
20.01.2022 - 22.45h ***
publicado às 10:28
Maria João Brito de Sousa
COISAS
QUE NÃO SEI
SE OS OUTROS SABEM
* Coroa de Sonetos *
Mª João Brito de Sousa e Custódio Montes *
1. *
Com pedras, pedra a pedra (re)construo
O que à pedrada fora destroçado
E mantenho um passeio calcetado
Que posso utilizar, de que usufruo *
Quando falta uma pedra, então recuo
E preencho o vazio que foi deixado
Ou dou pelo buraco e passo ao lado;
Se não reponho, também não destruo... *
De pedras aqui falo... ou talvez não,
Que como as pedras muitas coisas são
Capazes de caber onde elas cabem *
Porque se em vez de pedra usar ideias
Mais lacunas preencho... e ficam cheias
De coisas que eu não sei se os outros sabem. *
Mª João Brito de Sousa
14.11.2021 - 08.40h ***
2. *
“De coisas que eu não sei se os outros sabem”
Que a ideia passeia sem se ver
Quem a tem vê então onde a meter
Em espaço onde outras também cabem *
Ideias que prosseguem sem que acabem
E sem alguém ao lado perceber
Aquilo que a mente anda a tecer
E sempre a prosseguir sem que a travem *
Por fim pode surgir um resultado
Ou se se não quiser ser ocultado
Enquanto o fim da obra se planeia *
Um compasso de espera, um novo lance
Para que o edifício avance
Enquanto o construtor molda a ideia *
Custódio Montes
15.11.2021 ***
3. *
"Enquanto o construtor molda a ideia"
Pode uma Musa ser inoculada
E ficar tão dorida, tão magoada
Que não acerte nem uma colcheia... *
Assim está minha Musa; febril, feia,
A tiritar de frio, toda engelhada,
Com os braços inchados da picada
E surda da batida que a norteia... *
São coisas que bem sei que não sabia
E a pobre Musa nunca o glosaria
Se eu não teimasse tanto ou mais do que ela *
Só lhe peço que vá bem devagar,
De forma a que eu consiga acompanhar
Os passos que deviam ser só dela... *
Mª João Brito de Sousa
15.11.2021 - 11.15h ***
4. *
“Os passos que deviam ser só dela”
Mas a musa não anda assim sozinha
Abre a janela e acena à vizinha
E depois fala e entende-se com ela *
Puxa uma palavra e outra mais bela
Então abre o poema que acarinha
E uma e outra seguem a mesma linha
E pintam em conjunto a mesma tela *
Beleza não tem pressa, devagar
Devagar e sem pressa de chegar
Desde o nascer do sol ao sol poente *
Com sombras e paisagens deslumbrantes
A musa reconforta os dois amantes
E ao vate dá fulgor mesmo doente *
Custódio Montes
15.11.2021 *
5. *
"E ao vate dá fulgor mesmo doente"
A menos que ao senti-lo menos bem,
Se farte das doenças que ele tem
E se retire, irada e prepotente... *
Tenho uma Musa louca, incoerente,
Que só faz o que a ela lhe convém,
Que num momento vai, no outro vem,
E tudo cala quando o não consente... *
Por vezes, de candeias às avessas,
Andamos nós as duas quanto às pressas
Em que ambas nos lançamos, quando eu posso *
Ma se me encontra um pouco enferrujada,
Vai-se de mim, não quer fazer mais nada;
Talvez queira que eu seja algum colosso... *
Mª João Brito de Sousa
15.11.2021 - 13.50h *** 6. *
“Talvez queira que eu seja algum colosso….”
Não, o que ela quer é brincar consigo
É nisso que se vê um bom amigo
Que quer e diz à gente: eu já não posso *
E cada vez nos pede mais esforço
Para ver uma flor por entre o trigo
E só nos dá vantagem, não castigo
E o nosso poetar ganha reforço *
Consigo ela é maravilhosa
Cada poema seu é como a rosa
Que enfeita o seu jardim com poesia *
Não diga mal da musa que é tão bela
Que o poderio seu junto ao dela
Só nos trará vantagem e alegria ! *
Custódio Montes
15.11.2021 ***
7. *
"Só nos trará vantagem e alegria"
E eu bem o sei que ainda refile
Estou sempre à espera do que ela me instile
De inspiração e até de rebeldia :) *
Somos inseparáveis. Noite e dia,
Partilhamos, num corpo, um só perfil;
Amparo-a sempre que caia ou vacile,
E ela afugenta a minha cobardia... *
Mas discutimos muito e não é raro
Que ela censure um verso menos claro,
Ou me mude uma rima menos boa. *
Fico possessa, mas revendo tudo,
Vejo que tem razão e eu própria os mudo;
Xô, verso "caro", vai-te ó rima à toa! *
Mª João Brito de Sousa
15.11.2021 - 15.40h ***
8. *
“Xô, verso “caro”, vai-te ó rima à toa”
Mas bem lhe vai, amiga, bem lhe vai
Que dessa forma em erro nunca cai
Que tem consigo a musa e alto voa *
E cantos bem sublimes nos entoa
Com a egrégia voz que nunca a trai
Na linda melopeia que lhe sai
E que aos nossos ouvidos tão bem soa ! *
Deixe a musa falar, não seja má
Que pelos vistos é tu cá tu lá
E ela também tem as suas luas *
Ouça-a bem e escute-a por favor
Que eu bem sei que lhe tem um grande amor
E luas cada um lá tem as suas *
Custódio Montes
15.11.2021 ***
9. *
"E luas cada um tem lá as suas",
E tem toda a razão, poeta amigo,
Embora a Musa se zangue comigo
E às vezes me insulte e lance puas *
Porque num corpo só cabemos duas...
Posso zangar-me, mas nunca a castigo
E ela chega a pôr-me o corpo em p`rigo
Quando enfrenta mostrengos de mãos nuas... *
Eu, que sempre a escutei atentamente,
Já não sei qual é Musa e qual é gente,
Nem consigo aceitar que ela me ralhe *
Se me falham os olhos, se no peito
Meu pobre coração não pulsa ao jeito
Que "sua alteza" ordena que não falhe... *
Mª João Brito de Sousa
15.11.2021 - 17.30h
***
10. *
“Que “sua alteza” ordena que não falhe”
Mas diga-lhe “oh musa tem juízo”
Porque desse conselho não preciso
E não gosto também de quem me ralhe *
E se insistir impante nela malhe
Dizendo que lhe causa prejuízo
E faça-lhe mais um ou outro aviso
Para que ela não a atrapalhe *
Já sei vai desculpá-la, gosta dela
Está à sua beira sempre à vela
E não a quer por certo magoar *
Faça orelhas moucas, vá em frente
E seja mais um pouco paciente
Este conselho dou: deixe-a falar
* Custódio Montes
15.11.2021 ***
11. *
"Este conselho dou: deixe-a falar",
E é isso exactamente o que farei;
Se longe dela, pouco ou nada sei,
E ela longe de mim não pode estar, *
Por isso, assim que a Musa refilar
Porquanto em qualquer coisa lhe falhei,
Em vez de me calar, como calei,
Serei eu quem a manda, então, calar *
Reconheço, contudo, o seu valor,
Sei que ela me vai dando o seu melhor,
Tal como o meu melhor sempre lhe dou... *
Um pouco de paciência, Musa minha;
Esta "embalagem" pode estar velhinha,
Mas nunca, em caso algum, te abandonou. *
Mª João Brito de Sousa
15.11.2021 - 21.00h ***
12. *
“Mas nunca, em caso algum, te abandonou”
E sou junto de ti a grande amiga
Que depressa nos passa qualquer briga
Que por nós algum dia se passou *
Nunca estive zangada nem estou
Sorri lá para mim, oh rapariga
Senão jamais ó musa alguém me liga
E dizem que o poema em mim parou *
Convença-a de maneira que ela entenda
E que aos seus argumentos se lhe renda
Porque sem musa o vate passa mal *
Falta-lhe o jeito, falta a inspiração
E também não lhe afoita o coração
Para se ser poeta especial *
Custódio Montes
15.11.2021 ***
13. *
"Para se ser poeta especial"
É necessário um pouco de loucura,
Alguma irreverência e, de ternura,
Uma imensa montanha. Essencial! *
Fazer do verso o prato principal,
Não nos trará riquezas, nem fartura,
Tão só nos traz a consciência pura,
Do que em nós é profundo e visceral... *
Das coisas que não sei, mas que procuro,
Ergo agora uma ponte em vez de um muro
Com pedras que sobraram da calçada... *
Vamos cruzando a ponte. Mais uns passos
E os seus versos terminam dando abraços
Aos meus, que vão na sua peugada. *
Mª João Brito de Sousa
15.11.2021 - 22.40h ***
14. *
“Aos meus, que vão na sua peugada”
Andando com cuidado devagar
Pelo caminho em frente e a pensar
Na forma de tecer sua meada *
Pela rua a pensar na minha amada
Que passo a passo dei para a amar
E lembro cada pedra, ao andar
Que de amor afaguei nessa jornada *
Pedras aqui são rosas ao redor
Da rua onde andei com meu amor
Que agora ao passar vejo e recuo *
Na muralha do tempo que revi
Lembro cada degrau que construí
“Com pedras, pedra a pedra (re)construo” *
Custódio Montes
16.11.2021
publicado às 08:05
Maria João Brito de Sousa
Imagem retirada daqui
DE VIGIA * Coroa de Sonetos * Custódio Montes e Mª João Brito de Sousa ***
1. *
Naquele fim de tarde olhei teu rosto
As mãos nas tuas mãos o peito a arfar
Pulava o coração e teu olhar
Brilhava como brilha o sol de agosto *
Enorme o nosso amor, origem mosto
De uvas que pisadas no lagar
Deitavam uma seiva que ao brotar
Que bem sabia ! Lembro ainda o gosto *
Ao longe vai o barco que te leva
E para que essa seiva ainda beba
Eu tento apanhá-lo onda a onda *
E vai-se pondo o sol e acaba o dia
Que venha a noite, fico de vigia
Enquanto ali à volta o barco ronda *
Custódio Montes 10.11.2021
*** 2. *
"Enquanto ali à volta o barco ronda"
A ilusão de um rasto de sereia,
Sobe o gajeiro ao mastro e avista areia
Por trás da branca espuma além da onda *
Grita então: Terra à vista!, enquanto sonda
O ansiado horizonte de uma ideia,
Porque areia não há, nem terra alheia,
Tão só vira a sereia em sua monda *
Colhendo o vivo visco dos sargaços
Que sorrindo aconchega nos seus braços
Como se filhos dela e do seu mar... *
E na gávea, de pé, fica o gajeiro,
Hora após hora, o dia todo inteiro,
Vigiando o que julga vislumbrar... *
Mª João Brito de Sousa
11.11.2021
***
3. *
“Vigiando o que julga vislumbrar”
Sem olhar para a praia onde estou
Meu grito de amor alto soou
E ele distraído sem olhar *
Eu vou fazer sinal para avisar
Da minha ansiedade. Espera vou
Por aqui esperar….ah já olhou
E vê-me claramente a acenar *
Mas não sabe o motivo, a razão
Da mágoa que me invade o coração
E vai e torna a vir sempre ao redor *
Gajeiro, olha ao longe, olha outra vez
Sou eu, apaixonado, não me vês ?
Atraca o barco e traz-me o meu amor *
Custódio Montes
11.11.2021
***
4. *
"Atraca o barco e traz-me o meu amor",
Pede a sereia com voz sedutora
E logo o bom gajeiro se enamora
Duma canção que o mar lhe quis compor *
Desce da gávea e ao leme se vai pôr
Pra, depois, dar aos remos que a demora
Muda cada segundo numa hora,
E a cada hora cresce o tal clamor *
Vindo do grande atol onde a sereia,
Serena e branca à luz da lua cheia,
Canta para o sargaço adormecido... *
Vai, humano gajeiro, ter com ela,
Mas tem muito cuidado, que ela é bela,
Mas se te lança às ondas `stás perdido! *
Mª João Brito de Sousa
11.11.2021 - 16.25h
***
5. *
“Mas se te lança às ondas `stás perdido”
Que importa se eu andar nos braços dela
Apenas um segundo …é tão bela
Que sinto logo o amor correspondido *
E eu não sou gajeiro já vencido
E sei bem manobrar a caravela
Afago a sereia e junto a ela
Navego rumo à praia dirigido *
Então bem vejo ao longe aquela ânsia
Do pobre apaixonado que à distância
Anseia por rever sua paixão *
Em frente caravela a navegar
Sereia não me venhas afundar
Para salvar aquele coração! *
Custódio Montes
10.11.2021 ***
6. *
"Para salvar aquele coração"
Que me importa arriscar a própria vida?
- Naufragarás!, responde decidida
A voz que antes cantava uma canção. *
Mas o gajeiro, surdo de paixão,
Não escuta essa ameaça mal contida
E ouve ainda a canção que fora ouvida
Antes de ser lançada a maldição... *
Já se aproxima a barca do atol,
Já o dia rompeu, já brilha o sol
Sobre o vulto da ninfa dos sargaços *
E o pobre do gajeiro enfeitiçado
Saltando borda fora faz a nado
Os metros que o separam dos seus braços. *
Mª João Brito de Sousa
10.11.2021 - 20.00h ***
7. *
“Os metros que o separam dos seus braços”
Gajeiro não vás, pára, volta atrás
Tu podes, anda lá, tu és capaz
Se fores vais passar por embaraços *
E também vais quebrar os fortes laços
Que me interligam já desde rapaz
Ao grande amor que o barco dentro traz
E para o ter passei grandes cansaços *
Não deixes esse barco à deriva
Deixa lá a sereia apelativa
E foge dela foge ao seu enredo *
E regressa ao comando do navio
Vira-te para trás em rodopio
Protege o meu amor tão belo e ledo *
Custódio Montes
10.11.2021
* 8. *
"Protege o meu amor tão belo e ledo"
Da Barca lhe suplica a sua amada
Que chora e se debruça da amurada
Por seu gajeiro perdida de medo... *
Ouve-a o gajeiro e trepa a um rochedo
Para vê-la melhor, mas não vê nada;
Ao longe, a voz da ninfa ecoa irada
Que o pobre é para ela outro brinquedo *
E não o quer perder para a mortal
Que assim derrama um sal que é do seu sal
E tanto implora a volta do gajeiro... *
Vem ter comigo - diz- serás um rei!
- Que sei eu, bela ninfa? Eu nada sei
Se não que amo a mulher que amei primeiro! *
Mª João Brito de Sousa
10.11.2021 - 22.00h
*** 9. *
“Se não que amo a mulher que amei primeiro” Tu que queres de mim, algum traidor ? Que vai abandonar o seu amor Para deixar de ser um timoneiro? *
Conduzo a barca, levo-a ao roteiro Fui eu o escolhido, o condutor Por ter tanto empenho no labor E queres tu que eu seja traiçoeiro? *
Não deixo a minha barca noite e dia Sou o seu timoneiro, o seu guia E tenho que a levar direita ao cais *
Vai dentro dela a prenda, a rosa, a flor Que tem à sua espera um grande amor E eu conduzo a barca sou arrais *
Custódio Montes
11.11.2021 ***
10. *
"E eu conduzo a barca sou arrais",
Verás que te resisto, ó feiticeira,
E volto para a minha companheira;
Depois de ouvi-la, não me tentas mais! *
Que seja a minha Barca eterno cais
E seja a minha amada eterna obreira
De um cais que me preencha a vida inteira
Não de beijos fictícios, mas reais... *
Portanto, bela ninfa dos sargaços,
Renegarei teus beijos, teus abraços
E até o teu castigo ignorarei! *
Volto prá minha humilde e velha Barca,
Prà minha amada de amor`s nada parca;
Teu brinquedo, sereia, não serei! *
Mª João Brito de Sousa
11.11.2021 - 10.00h ***
11. *
“Teu brinquedo, sereia, não serei”
Que o que queres, bem sei, é enganar
Simulas um amor de muito amar
Que quem tu és, sereia, bem eu sei *
Por este mar já muito naveguei
E tenho visto coisas de pasmar
É gente nos teus braços a gritar
Que todos sabem disso, toda a grei *
Por isso vai ao largo, onde cantas
Que vou seguir viagem, não me encantas
Bem sei o que me queres vai embora *
Bem vejo junto à praia quem espera
Por este amor há muito e desespera
Adeus que vou levar-lho mesmo agora *
Custódio Montes
11.11.2021 ***
12. *
"Adeus que vou levar-lho mesmo agora",
Te juro que jamais me impedirás
De renegar-te e de voltar pra trás,
Prós braços da mortal que por mim chora! *
Amor assim fruído, hora após hora,
É um amor que já ninguém desfaz...
De resistir-te julgas-me incapaz,
Mas sei que nunca amaste, ó impostora! *
Podes tentar-me tanto quanto entendas,
Podes cobrir-te de jóias e rendas
E prometer-me impérios que não quero! *
Prá Barca em que me aguarda a minha amada,
Vou nadando, braçada após braçada,
Que um Amor verdadeiro é quanto espero! *
Mª João Brito de Sousa
11.11.2021 - 13.35h
***
13. *
“Um verdadeiro amor é quanto espero”
E vou já refrescar na fresca aragem
Ao leme que oriento na viagem
Sou eu que escolho o rumo que bem quero *
Não sigo já, vou ser muito sincero,
Ainda vou levar ali à margem
O doce amor que espera aquele pagem
Que acena com vigor e desespero *
Está sempre a olhar e de vigia
De noite, sem dormir dia após dia
À chuva, ao vento, ao frio, ao calor *
O barco já lá vem em direcção
À praia e traz lá dentro o coração,
Que tive e volto a ter, do meu amor *
Custódio Montes
11.11.2021 ***
14. *
"Que tive e volto a ter, do meu amor"
Carinhos tantos e tão verdadeiros
Que nunca esses teus olhos feiticeiros
Poderão igualar em seu fulgor *
Rói-te de inveja, engasga-te em furor,
Invoca os teus trovões e aguaceiros,
Recorre aos grandes deuses, teus parceiros,
Que, de mim, não terás qualquer favor! *
Adeus, ó criadora de ilusões
Que de vigia ao mar das aflições
Tão poderosa és nesse alto posto, *
Não ficarei jamais sob o comando
Da beleza ilusória que vi quando
"Naquele fim de tarde olhei teu rosto"! *
Mª João Brito de Sousa
11.11.2021 - 16.45h
***
publicado às 09:17
Maria João Brito de Sousa
INTERSTÍCIO *
Coroa de Sonetos *
Custódio Montes e Maria João Brito de Sousa *
1. *
Vejo ao longe uma nesga de terreno
A cor lilás aguça-me a visão
Depois mais curioso vejo então,
Com gosto, uma andorinha em voo ameno *
Da frincha vê-se o mundo mais pequeno
Ao abrir a janela, a vastidão
Alarga-nos o campo em extensão
Ficando-se melhor e bem mais pleno *
Às vezes o que vemos não é nada
Olhado com a vista encerrada
E temos que ir à busca do bulício *
A vida vem de fora que fechada
A nossa condição é limitada
À pouca luz que dá o interstício *
Custódio Montes
21.6.2021 ***
2. *
"À pouca luz que dá o insterstício"
Posso somar a luz de quanto escrevo...
A essa luz do interstício o devo
Bem como ao que alguns julgam desperdício *
Mas neste longo dia de solstício
Durante o qual inteira me sublevo
Qual vermelha papoila ou verde trevo,
Lanço mãos ao poema; o meu ofício! *
De dentro para fora, uma insurgência
Teima em poder bem mais que esta impotência
E o verso rasga a névoa que o prendia. *
Pode o que faço chamar-se imprudência,
Mas eu tenho a perfeita consciência
De que ele há-de chegar aonde qu`ria. *
Maria João Brito de Sousa - 21-06.2021 - 18.06h ***
3. *
“De que ele há-de chegar aonde qu’ria”
E eu cheguei aqui vindo de fora
E mal abri a porta, nessa hora
Vi que uma poetisa respondia *
E o que eu vi ao longe pelo dia
Depois de ter saído e ir embora
Não é melhor nem tão consoladora
Como a resposta à minha poesia *
Interstício sim mas de beleza
Fechados, mas abertos à grandeza
Que o nome deu lugar a este tema *
Inteiro, generoso, emalhetado
Bem composto, florido, enramalhado
Com abertura à luz e ao poema *
Custódio Montes
21.6.2021 ***
4. * "Com abertura à luz e ao poema"
Estaremos ambos... e constamente!
Mal um começa, o outro segue em frente,
Qualquer que seja o metro, o mote, o tema... *
Interstícios, pra nós, não são problema
E embora a minha mão esteja dormente,
Escrevendo letra a letra, lentamente,
Facilmente resolvo esse dilema. *
Meu único senão vem deste sono
Que vem colar-se a mim qual cão sem dono
E me embriaga dos pés à cabeça... *
Amanhã voltarei fresca e desperta
Pra sondar o poema, à descoberta
Do verso em que ele acaba e recomeça. *
Maria João Brito de Sousa - 21.06.2021- 23.10h ***
5. *
“Do verso em que ele acaba e recomeça”
E ri e chora e acaba em festa rija
Até que novo verso aqui alija
E vai enchendo a taça peça a peça *
E antes que descanse e se despeça
E para fora vá e se dirija
Sem nada que o force ou lho exija
Retoma o tema sempre mais depressa *
Em luta até ao fim sem armistício
De noite e dia à luz do interstício
Bem lindo e enrendilhado como a flor *
Trabalho imaginado em solidão
Que prende a nossa alma e coração
E mostra à luz do dia esse labor *
Custódio Montes
22.6.2021 *** 6. *
"E mostra à luz do dia esse labor"
A ponto-cruz bordado sobre linho
Com a ternura de quem faz um ninho,
Com a entrega de quem faz amor... *
Muda-se o ponto em ponto pé-de-flor
E prossegue o trabalho o seu caminho;
Cresce o bordado e sente-se o carinho
Que traz nas suas mãos o bordador. *
Vem, ora, a bordadeira pra rendê-lo
E ao ver como o bordado cresceu belo,
Hesita em dar o seu primeiro passo, *
Mas recomeça. É este o seu ofício!
Tacteia, cuidadosa, o orifício
Da imaginária agulha de um abraço... *
Maria João Brito de Sousa - 22.06.2021 - 09.58h ***
7. *
“Da imaginária agulha de um abraço…”
Que ao longe o interstício deixa ver
Imaginado ao pé está-se em crer
Que muito diminui o largo espaço *
E esta perspectiva que aqui traço
Demonstra que a palavra ao escrever
Um conteúdo amigo há-de ter
E é por isso mesmo que eu o faço *
Cumprimentar de abraço apertado
É bom, mesmo que seja imaginado
Andando o corpo ao longe em levidade *
A alma engrandece e ao sentir
O terno abraço a dar e ao surgir
Encontra nele o laço da amizade
Custódio Montes
22.6.2021 *** 8. *
"Encontra nele o laço da amizade"
Que laçada a laçada se constrói;
Quando a distância é tanta que nos dói,
Assim se reinventa a saciedade *
E é o verso uma pomba que se evade
De uma dura prisão que só o foi
Enquanto este "bichinho" que nos rói
Não descobriu que estava em liberdade... *
Julgou nunca alcançar esse interstício,
Temeu, talvez, cair num precipício
Se ousasse ultrapassar a estreita fresta, *
Mas depressa aprendeu que sem tentar
Não saberia, nunca, o que é voar
Nas asas de um poema todo em festa... *
Maria João Brito de Sousa - 22.06.2021 - 12.21h *** 9. *
“Nas asas de um poema todo em festa...”
Rodeado das flores dum jardim
São pétalas a abrir até ao fim
De rosas, cravos rubros, de giesta *
Um lindo panorama que nos presta
Para sentir o cheiro do jasmim
Ouvir às vezes contos de Aladim
Seguindo por caminhos na floresta *
Poema não é pobre tem riqueza
Faz homens, traz-nos sonhos, natureza
Com roupas e com trajes de ilusão *
Fazendo-nos também imaginar
Que a vida tem beleza e faz amar
E isso tonifica o coração *
Custódio Montes
22.6.2021 *** 10. *
" E isso tonifica o coração"
Dando sentido à vida que vivemos
Porque a partilha daquilo que temos
Faz-se com alegria e com paixão. *
Quisera que a vindoura geração
Pudesse ver tão bem quanto nós vemos
Através de interstícios tão pequenos
Abertos sobre estoutra imensidão... *
São, os versos, potentes telescópios
E, às vezes, são também caleidoscópios
Da nossa muito humana natureza *
E nós, poetas e eternos meninos,
Não cremos ser os donos dos destinos,
Mas tudo vamos vendo em profundeza... *
Maria João Brito de Sousa - 22.06.2021 - 13.56h ***
11. *
“Mas tudo vamos vendo em profundeza”
Às vezes só as coisas ao redor
Mas quanto mais ao funda a gente for
Muito mais se conhece a redondeza *
Descreve-se o que vemos e a beleza
Compõe o dia a dia bem melhor
Voamos como as asas dum condor
E nem se sente a dor nessa leveza *
Apuram-se os sentidos, o gostar,
Os cheiros, os desejos, o olhar
E tudo à nossa volta é linda imagem *
Canteiros a florir à nossa frente
Ouvimos coisas belas e a gente
Fica mais forte e cheia de coragem *
Custódio Montes
22.6.2021. ***
12. *
"Fica mais forte e cheia de coragem"
A gente que assim ama a poesia
Onde se juntam Ciência e Fantasia,
Que tudo aqui se cria à nossa imagem! *
Cada poema é mais uma viagem
Até ao universo da harmonia;
A partir de um acorde, a sintonia
Dos afinados versos que interagem *
Até que ao pôr-do-sol o sono chegue
E o verso disperse e se me negue
Num desleal conluio com Morfeu... *
Tonta de sono, por mais que o persiga,
El` corre à minha frente e nem me liga
Quando suplico: - Volta, verso meu! *
Maria João Brito de Sousa - 22.06.2021- 15.32h
***
13. *
“Quando suplico: - volta, verso meu ! “
Não deixes vir a noite que não vejo
E vai-se-me a vontade e o desejo
Só penso nesse escuro como breu *
Vem vindo a noite, não escureceu
Ainda. Eu de noite não versejo
E queria fazê-lo, tenho o ensejo
De pôr ainda mais um verso meu *
Via pelo interstício o bastante
Era pouco mas era interessante
Eu não exijo jóias nem rubis *
Basta-me o que descubro no além
Por essa fenda aberta que nos vem
Do verso que nos chega e faz feliz *
Custódio Montes
22.6.2021 ***
14. *
"Do verso que nos chega e faz feliz"
Qualquer poeta, quando se aproxima
E traz atrás de si verso que rima
E outro ainda encontra que condiz *
Com a sonoridade de raiz
Em que o poema, inteiro, se sublima
E cresce... é quase vida, o que o anima,
E a força que em si traz, quase motriz... *
Sobre este inusitado crescimento
O Sol percorre inverso movimento
Descendo aos poucos sobre o mar sereno *
Por trás da rua prenha de edifícios;
Com meus olhos - dois meros interstícios -
"Vejo ao longe uma nesga de terreno." *
Maria João Brito de Sousa - 22.06.2021 - 19.03h ***
(Reservados os direitos de autor)
publicado às 09:17
Maria João Brito de Sousa
SEM ÁGUA * Coroa de Sonetos * Custódio Montes e Maria João Brito de Sousa ***
1. * Sem água não há vida não há nada
Água pura de rio a correr
De fonte cristalina a nascer
Da serra altaneira iluminada *
Freáticos lençóis de água filtrada
Reserva de nascentes e do ser
Que dessenta quem nelas vai beber
Irriga o campo e a horta cultivada *
Ri-se a flor com as chuvas a cair
A papoila regada e a florir
No jardim anda a abelha divertida *
Os rapazes no lago a brincar
A gente na cozinha a cozinhar
Água pura ….sem ela não há vida *
Custódio Montes
15.6.2021 ***
2. *
"Água pura... sem ela não há vida"
Sobre o planeta azul em que nascemos;
Barcos tristes sem velas e sem remos,
Nem porto de chegada ou de partida, *
São tão inúteis quanto a despedida
De algo que nunca vimos nem tivemos...
Nós que existimos, dessa água viemos,
Sopa primordial, berço e guarida *
Daquilo que antes fomos, sem sabê-lo;
Qualquer pocinha d`água era um castelo
Prós nossos diminutos ancestrais *
E aí fomos crescendo, evoluindo,
Multiplicando enquanto dividindo
Esse líquido, informe e velho cais. *
Maria João Brito de Sousa - 15.06.2021 - 14.36h ***
3. *
“Esse líquido, informe e velho cais”
Que bom querida amiga em responder
Assim podemos nós desenvolver
O tema e falarmos muito mais *
A água não faz mal aos animais
Que, mesmo impura, podem-na beber
O homem não que para o fazer
Só pura sem resíduos fecais *
Mas esta nossa gente do governo
Vai buscar argumentos ao inferno
Para poluir a água que nós temos *
Em nome de negócios de milhões
Prejudicando a gente e regiões
E sem água nós não sobrevivemos *
Custódio Montes
15.6.2021 ***
4. *
"E sem água nós não sobrevivemos"
Por mais que um dia ou dois, é bem sabido,
Mas o imperialismo empedernido
Pouco se importa desde que paguemos *
Cada gotinha de água que bebemos
Antes de sede termos nós morrido...
Mas isto não fará qualquer sentido
Para quem não veja aquilo que nós vemos *
Nem vislumbre o fascismo a renascer
Gritando por justiça pra esconder
A crueza que move os seus sequazes *
E há lobos que de ovelhas mascarados
Juram vir defender os desgraçados
Que esmagarão depois como a torcases. *
Maria João Brito de Sousa - 15.06.2021 - 20.42h
***
5. *
“Que esmagarão depois como a torcazes.”
E dizem defender a nossa terra
Mas só produzem mal e causam guerra
Ocultos através de capatazes *
Fazem-no lentamente só por fases
Mentindo no valor que o chão encerra
Esventram-nos as águas e a serra
Com loa mentirosa e lindas frases *
Na minha terra há água nas barragens
Freáticos lencóis lindas paisagens
Campos verdes giestas a florir *
Em vez de primavera é o inverno
Que augura para aqui este governo
Com lamas para a água poluir *
Custódio Montes *
15.6.2021 *
6. * "Com lamas para a água poluir"
E as eternas prebendas à mistura,
Em vez de termos água fresca e pura,
Vemos marés de espuma a confluir *
Num rio que ninguém pode garantir
Ser benesse presente... nem futura!
Ah, pobre rio coberto da loucura
De quem nunca hesitou em destruir *
O que ao povo pertence por direito
E, desprezando as águas do teu leito,
Te enlameia, conspurca e abandona *
Como se foras coisa descartável...
E tu que todo foste água potável
Trazes agora espuma e lodo à tona. *
Maria João Brito de Sousa - 16.06.2921 - 09.05h *** 7. *
“Trazes agora espuma e lodo à tona”
E os caciques em grupo a conversar
Com esses maiorais a escavar
As fontes e à volta dessa zona *
Sem juízo sem tino e sem mona
Só pensam no seu bolso acumular
Aquilo que é do povo e a tirar
O que é da natureza, sua dona *
Há já guerras por água disputadas
Não se bebem as águas salgadas
Evaporam-se e vão para a natura *
Cai no solo e depura-se ao chover
E ninguém deve andar a desfazer
Este modo de termos água pura *
Custódio Montes
16.6.2021 ***
8. *
"Este modo de termos água pura"
Cuja viab`lidade é garantida,
Deve ser respeitado para a vida
Porque é vida, afinal, o que assegura, *
Mas quando a própria chuva se satura
De enxofres e de azotos, poluída,
Decerto há que encontrar uma saída
Ou essa mesma vida pouco dura... *
Sem água não há vida, é ponto assente,
E o que é essencial a toda a gente
Tem de, por todos, ser salvaguardado. *
Poupá-la é importante, mas não basta
E sendo um bem que toda gente gasta,
Justo é que a todos seja assegurado. *
Maria João Brito de Sousa - 16.06.2021 - 18.20h ***
9. *
“Justo é que a todos seja assegurado”
Não se deve ceder à economia
A pureza da água na sangria
De ver o monte inteiro esburacado *
Com tiros e veneno infiltrado
E não termos a água dia a dia
A correr como a gente dantes via
Com o cheiro e sabor purificado *
O homem deve ser um zelador
Do bem comum, do ar exterior
Da água e dos bens que se consomem *
Nós somos passageiros nesta vida
Nossos actos que dêem guarida
Ao futuro do bem de todo o homem *
Custódio Montes
16.6.2021 ***
10. *
"Ao futuro do bem de todo o homem"
Deve esse mesmo Homem estar atento
E deve garantir quanto é sustento
Da pureza da água que consomem *
Antes que outros int`resses a transformem
Num bem que em vez de puro é virulento
E acabe o pobre por morrer sedento
Das águas que eram suas mas se somem *
Nas mãos da meia dúzia que as controlam;
Neste mundo há cobiças que desolam
E contra as quais teremos de lutar. *
Quem poderá ficar indiferente
A esta distorção do meio ambiente
Sem mesmo erguer um dedo pró salvar? *
Maria João Brito de Sousa - 17.06.2021 - 09.30h ***
11. *
“Sem mesmo erguer um dedo pró salvar”
Ministros há que não deviam ser
Eles sem mais ninguém a escolher
O que em cada local ir minerar *
Deviam os peritos consultar
O modo, as pessoas, o viver
E o maior cuidado também ter
Com a água e não a conspurcar *
Potável pouca existe pelos canos
E a salgada vem dos oceanos
Com tantos barcos lá a ir e vir *
Ora a pouca que temos que é potável
Devia resguardá-la o responsável
E não a conspurcar e poluir *
Custódio Montes
17.6.2021 ***
12. *
"E não a conspurcar e poluir",
Nem deixá-la à mercê dos insensatos
Peritos nos maiores dos desacatos
Que já vieram e que estão por vir... *
Da responsab`lidade, não fugir
Tal como dos naufrágios fogem ratos,
Ter a coragem de enfrentar os factos
E a capacidade de assumir *
A gestão desse bem essencial
Que a todos cabe e deve, por igual,
Por cada um de nós ser partilhada. *
Sim, há que defender a natureza
Dessa insensata predação burguesa
Que a tenta reduzir a... tudo e nada! *
Maria João Brito de Sousa - 17.06.2021 - 11.37h ***
13. *
“Que a tenta reduzir a tudo e nada”
E, claro, aproveitar-se do minério
Por modo esquisito e não sério
Com gente pelos media enganada *
Com o monte a a serra profanada
A céu aberto la vai o desidério
Por culpa do governo e ministério
Com a água, que é vida, conspurcada *
Lutemos com a força que pudermos
Por forma a impedir que nestes termos
Se poluam as fontes e os ribeiros *
A água deve andar no coração
Assim de geração em geração
Porque é nossa e também é dos herdeiros *
Custódio Montes
17.6.2021 ***
14. *
"Porque é nossa e também é dos herdeiros"
Daquilo que nós fomos construindo,
Deve essa água ser recurso infindo
Que se renova em ciclos de aguaceiros. *
Se os prepotentes, como arruaceiros,
Tentarem subverter o que é tão lindo,
Saibamos nós mostrar não ser bem-vindo
O disfarce que envergam, de "aguadeiros", *
Para esconder a pura realidade
Que os torna geradores de insanidade
E predadores furtivos na caçada *
Que roubam, que conspurcam, que nos mentem...
Mas por mais falsidades que eles inventem,
"Sem água não há vida não há nada"! *
Maria João Brito de Sousa - 17.06.2021 - 13.25h ***
*
RESERVADOS OS DIREITOS DE AUTOR
publicado às 13:52
Maria João Brito de Sousa
TELA * Coroa de Sonetos *
Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues ***
1. *
"Chama que a cada gesto espelha a alma"
Ou mesmo alma que em chamas se acendeu,
Assim seremos nós, pintor e eu,
Que em tal labor ninguém nos leva a palma *
Numa exacerbação que nos acalma
Porquanto ao paradoxo se rendeu,
Nada se perde quando se aprendeu
A tudo ver, mesmo sem ver vivalma... *
Pintei ideias que de mim nasciam
E é dessa mesma forma que hoje escrevo;
Não sei se via além do que outros viam, *
Nem sei se digo mais do que o que devo...
Não vendo o que os meus olhos prometiam,
A pouco, ou nada mais, hoje me atrevo. *
Maria João Brito de Sousa - 01.06.2021 - 15.40h
*
Soneto criado a partir do verso final do soneto PALETA de Gil Saraiva.
***
2. * "A pouco, ou nada mais, hoje me atrevo"
não sabendo se existe um amanhã...
Mas é aqui e agora que me enlevo
jogando ao claro-escuro com afã. *
Pinturas ou palavras, as que levo
em vibrações da minha mente sã,
são as pétalas de uma flor de trevo
que desflorei numa atitude vã... *
Procurava a resposta: "muito ou pouco"
que faz da minha vida um mundo louco
que nem eu sei porque caminho assim... *
Badaladas de sinos, som já oco
que repõe a música do ronco
que a minha voz ecoa sem ter fim. *
Laurinda Rodrigues ***
3. *
"Que a minha voz ecoa sem ter fim"
Por vales e montanhas sem começo
E sendo exactamente o que pareço,
Sou quem regula a chama acesa em mim, *
Grata, talvez, por ter nascido assim,
Mas menos grata quando pago o preço
De cada queimadura que não peço
Aos deuses que expulsei do meu jardim. *
Do muito, passo ao pouco... ao quase nada...
De quase nada, muito e pouco faço;
Se me desgraço, torno-me engraçada *
E se amorosamente aqui te abraço,
Podes sentir-te, ou não, tão enredada
Quanto as fiadas em que me embaraço... *
Maria João Brito de Sousa - 03.06.2021 - 17.14h ***
4. *
"Quanto as fiadas em que me embaraço"
eu quero partilhar os fios desse novelo
e seja só em verso que há o abraço
sinto o deslumbramento de tecê-lo. *
E pondo mais enredo nesse elo
que é apenas da história mais um passo
vai soneto mutar romance e, ao lê-lo,
percebe-se que é tudo tempo e espaço. *
Sofridas - não doridas - mas libertas
de escolher estar fechadas ou abertas
num mundo que nos lê ou nos ignora, *
Glorifico as paisagens, já desertas
de medos e lamentos, como alertas
de quem caminha em frente enquanto chora. *
Laurinda Rodrigues ***
5. *
"De quem caminha em frente enquanto chora"
Deixando atrás de si um mar de sal,
Vejo, longínquo, o vulto no final
Da estrada em que o seu choro se demora. *
Olhando um mar que é céu naquela hora,
Esboço num breve impulso gestual
O voejar modesto de um pardal
E o de uma exuberante ave canora. *
Junto a uma paleta, a minha a tela
Jaz, por falta de espaço, à beira tempo
E já não vivo eu no mundo dela *
Que é outro o universo em que me invento;
Mudou-se-me esta casa em caravela
E em leme esta cadeira em que me sento. *
Maria João Brito de Sousa - 04.06.2021 - 10.04h ***
6. *
"E em leme esta cadeira em que me sento"
onde flutua a minha inspiração
navegando naquele rio que invento
para, de vez, curar meu coração. *
Gritar bem alto como grita o vento
os temas da alegria e da paixão...
Sendo mais uma a sofrer tormento
acabando os tormentos sem razão. *
Se estou febril, a febre é o sinal
de que todo o meu Ser percorre o mal
de uma humanidade em insanidade... *
Somos a fruta da estação estival
que pode apodrecer sendo real
o sabor de uma luta pela verdade. *
Laurinda Rodrigues ***
7. *
"O sabor de uma luta pela verdade"
É doce como o mel mas de repente
A ssume uma acidez quase adstringente
Que surpreende pela intensidade *
Mas mais nos alimenta essa vontade
De encontrar a verdade em quem nos mente...
Amadurece o fruto inda recente
Da nossa muito humana identidade, *
Veste-se a tela nua à nossa frente
De quanto houver de criatividade
- porque essa nunca morre, é ponto assente - *
E, enfim, se entende a transitoriedade
Daquilo que se pensa e que se sente,
Quando se sente e pensa em liberdade. *
Maria João Brito de Sousa - 04.06.2021 - 12.21h
***
8.
"Quando se sente e pensa em liberdade"
cresce o deslumbramento de existir
de ter nascido Gente de verdade
e não ter de lutar para fugir. *
Porque ter de fugir cria ansiedade
que destrói aquele sonho de partir
p'lo prazer de encontrar noutra cidade
apenas um lugar para divertir. *
Fomos tão nacionais pela raiz
reconhecendo em nós essa matriz
de descobrir, sem ser um navegante... *
E olhamos este mar que apenas diz:
já nada corresponde aquilo que quis!
Estou presa de mim mesma a cada instante. *
Laurinda Rodrigues *** 9. *
"Estou presa de mim mesma a cada instante"
Em que tentar deixar de ser quem sou,
Que a liberdade só me conquistou
Por ser rebelde, utópica e distante... *
De mim, serei eterna navegante
Porque o tempo das fugas já passou;
Mal esta minha tela naufragou
Passei a navegar no verso errante. *
No verso sempre encontro o que procuro
E mais que o que procuro encontrarei
Assim que colha um fruto mais maduro *
Dentre os que ainda agora semeei;
Onde cada colheita for futuro,
Há-de haver espaço para o que eu criei. *
Maria João Brito de Sousa - 05.06.2021 - 20.37h
***
10. *
"Há-de haver espaço para o que eu criei"
pois espaço é relação de mim com alguém...
O tempo não existe: eu o sonhei
sempre presente, agora, aqui e além. *
Vivo comigo, sabendo aquilo que sei.
Quem me visita só virá por bem
alertando para um mundo que deixei
ficar lá fora, a rodar num trem, *
Onde já não viajo há muitos anos
porque viajam nele os muito insanos
que usam os milhões por vestimenta, *
escondendo, no porão, os muitos danos
que são esquecidos, depois de muitos anos
sem ninguém lhes ter dado reprimenda. *
Laurinda Rodrigues ***
11. * "Sem ninguém lhes ter dado reprimenda"
Vivem os amos/servos da riqueza
Vestindo a "caridade" e a "nobreza"
Que num vídeo viral põem à venda *
E assim prosseguem nessa sua senda
De conquistar as graças da pobreza;
Mentiras são anzóis cuja agudeza
Escapa a quem de vileza pouco entenda... *
Assim tornei concreta a tela abstracta;
Mais pincelada, menos pincelada,
Nesta estância da tela se delata *
A grande, a gigantesca mascarada
Em que o capitalismo se retrata;
Todos o servem e nem dão por nada! *
Maria João Brito de Sousa - 06.06.2021 - 11.21h
***
12.
"Todos o servem e não dão por nada"
porque, no seu inconsciente cultural,
resguardam o segredo da montada
num cavalo feito em pérolas e cristal *
Expõem-se então à fúria da nortada
que os submete ao medo de animal
simbolizando o grande camarada
que veio salvá-los da desgraça e mal. *
Esqueceram que são a trilogia
que podem alcançar no dia-a-dia
sem ter de denegar a sua crença... *
Será esse o motivo da poesia
quando deixa de lado a alegoria
que não é sua a voz que a si pertença. *
Laurinda Rodrigues ***
13. *
"Que não é sua a voz que a si pertença"...
Mas agora é só minha a decisão;
Camaradas não são o "grande irmão"
E a minha ideologia não é crença *
Que me assegure privilégio ou tença...
Trago-a na mente e diz-me o coração
Que ao nascer filha da revolução
Me compete cantá-la até que vença *
E, vez por outra, a minha branca tela
Pode encher-se dos traços realistas
De quem morreu lutando, não por ela, *
Mas pelos objectivos humanistas
Cuja memória, morta numa cela,
Ainda me sussurra; "Não desistas!" *
Maria João Brito de Sousa - 07.06.2021 - 12.04h ***
14. *
"Ainda me sussurra: "Não desistas"
porque tudo na vida é transição
e mesmo o mais fatal nos mostra pistas
p'ro reencontro com o nosso coração. *
Ouço falar em histórias de revistas
cheias de sentimentos e emoção...
São, afinal, desfiles em que vistas
o melhor para mostrar à multidão. *
Somos trapos caídos a um canto
onde não chega o riso, nem o pranto,
que dê o privilégio de ter calma? *
Aos chutos, pontapés do desencanto
acendemos o fogo como um manto,
"chama que, a cada gesto, espelha a alma". *
Laurinda Rodrigues ***
(Reservados os direitos autorais)
publicado às 10:20
Maria João Brito de Sousa
ESTA VELHA MENINA
*
(Desgaste) *
Coroa de Sonetos *
Maria João Brito de Sousa e Jay Wallace Mota
*
1. *
Esta menina, velha quanto baste,
Exibe uma grisalha cabeleira
E muito embora brinque, inda faceira,
Já dos anos acusa um bom desgaste. *
Sorriu quando menina lhe chamaste,
Mas já percorre a rampa derradeira
Que a reconduz à última fronteira
E se aproxima, por mais que ela a afaste. *
Menina que o não é mas já o foi
E que já deve um tempo à sepultura,
Sabe bem quanto custa e quanto dói *
Contrariar um mal que não tem cura
E a chaga que desgasta e que corrói
O fio/pavio da chama que a segura. *
Maria João Brito de Sousa - 12.04.2021 - 16.24h *
Ao Gil
*** 2. *
O fio/pavio da chama que a segura Já desafia a própria medicina! E a morte, que já torce pela cura, Parou pra ouvir os versos da menina! * E vê-se que a trevosa criatura Se curva mais e mais a cada rima, Mas logo então corrige tal postura, Num gesto de respeito a uma obra prima! * E de repente tomba de joelhos, Abre seus olhos frios e sem celhos, Voltando o negro rosto para cima! * E num murmúrio, rouco e gutural, A morte, numa prece surreal, Suplica pela vida da menina! *
Belém, 13 de abril de 2021. Jay Wallace Mota. ***
3. *
"Suplica pela vida da menina(!)"
Aquela a quem cabia terminá-la
Pois, vendo que a menina se não cala,
Quer aprender as coisas que ela ensina. *
A Morte que, sem culpa, é assassina,
Ao lado da menina então se instala
E, sendo surda e muda, agora fala
Na voz de cada verso que germina! *
Mal se sinta, a menina, mais cansada,
Coberta de mazelas e dorida,
Logo virá a Morte transmutada *
Em curandeira, prolongar-lhe a vida;
"Vá, escreve um pouco mais! Como me agrada
Saber-te por mim mesma protegida!" *
Maria João Brito de Sousa - 13.04.2021 - 15.36h ***
4. *
“Saber-te por mim mesma protegida!”
Exclama a própria Morte seu dilema!
Assim, entre matar ou dar a vida,
Lisonjeada, optou por um poema! *
Sabendo que abrir mão da própria lida
Encerra sua escolha mais extrema,
Porém estava mesmo convencida
Que a tal postergação valia a pena! *
Assim, ora enfermeira, ora aprendiz,
A Morte, a cada verso, mais feliz,
Concede, por mais tempo, um novo aval, *
E assim, fazendo versos à cada hora,
A poetisa dribla a Morte agora
E a poesia ganha uma imortal! *
Jay Wallace Mota.
Belém, 13/04/2021, às 15:12h. ***
5. *
"E a poesia ganha uma imortal"
Que apenas o será enquanto viva...
Mas, sim, parece a Morte estar cativa
Dos sonetos que eu escreva, bem ou mal, *
E, agora, não a tenho por rival
Que se tornou, a Morte, criativa;
Viu-se, talvez, sob uma perspectiva
Que lhe não era nada habitual... *
Eu, como Xerazade, vou criando,
Soneto após soneto, sem parar,
E, por cada soneto, conquistando *
Direito a mais um dia sem expirar;
Não posso é garantir-vos até quando
Vou conseguir a Morte fascinar... *
Maria João Brito de Sousa - 13.04.2021 - 20.0 ***
6. *
“Vou conseguir a Morte fascinar!”
Arguis, com a modéstia costumeira,
Pois ante o teu talento singular,
Subestimas o gosto da parceira! *
Que já mostrou saber apreciar
Os teus poemas, duma tal maneira,
A ponto de por eles adiar
Tua morte, fazendo-se videira! *
Mas se acaso o cansaço te vencer,
Antes que a Morte possa perceber,
E pense, finalmente, em te ceifar, *
Propõe, com um dos teus fechos perfeitos,
Fazer uma coroa de sonetos
E a Morte nunca mais vai te matar!
Jay Wallace Mota.
Belém, 13 de abril de 2021, às 17:55h. ***
7. * "E a Morte nunca mais te vai matar(!)",
Dizes-me tu que estás bem longe dela,
Mas eu, que a sei de cor, que estou com ela
Plasmada nalgum céu por inventar, *
Não sei que mais fazer para a acalmar...
Sou a pálida chama de uma vela
E nem o brilho imenso de uma estrela
Conseguiria a Morte iluminar! *
Não desisto, porém! Se sou poeta
Aquilo que me move é muito forte
E mendigar-lhe tempo é coisa infecta! *
Muito diversa é esta minha sorte
Que em espanto e rebeldia se completa;
Escrevo prá Vida, desafio a Morte! *
Maria João Brito de Sousa - 14.04.2021 - 11.00h
8. *
“Escrevo pra Vida, desafio a Morte!” Se o desafio vão te agrada, insiste! Tens munição pra luta de tal porte... Quando de alguma briga desististe?
*
Mas quando te faltar algum suporte, Só peço não te deixes ficar triste; Não há o que temer por tua sorte! Pois, afinal, a Morte nem existe!
*
E mesmo conhecendo tuas infensas A tudo que pra ti pareçam crenças, Existe uma verdade definida,
*
Que reina independente do que pensas E ainda que dela nunca te convenças, Poeta, existe vida além da vida! *
Jay Wallace Mota.
Mosqueiro, 14 de abril de 2021, às 15:40h. *
9. *
"Poeta, existe vida além da vida(!)"
E, de feliz por ti, vou-te dizer
Que é essa a vida que estou a viver
Enquanto a morte aguarda, distraída, *
Que eu vá abrir-lhe a porta de saída;
Falta-me tempo para a receber
E tenho tantos versos pra escrever
Antes da hora incerta da partida... *
A vida além da vida é uma só
E é por isso que tento prolongá-la
Enquanto me não vou desfeita em pó *
Juntar-me a essa morte que me cala;
A morte é neutra e nunca terá dó
De quem, com versos, tente enfeitiçá-la... *
Maria João Brito de Sousa - 15.04.2021 - 10.30h
***
10. *
“De quem, com versos, tente enfeitiçá-la,” No intento de enganar quem te intimida! Mas acho um desperdício fazer sala A uma figura tão controvertida... *
Melhor fazer teus versos sem dar pala, De maneira a passar despercebida, Mostrando que a megera não te abala, Ainda que vivas mesmo uma só vida! *
Justo porque crês nisso, realmente, E eu tendo este soneto tão somente, Não posso me perder em teoria... *
Pra mim, já és eterna, entre outras divas, Entretanto, é preciso que tu vivas, Pois viva dás mais vida à poesia! *
Jay Wallace Mota.
Mosqueiro, 15/04/2021, às 15:30h. ***
11. *
"Pois viva dás mais vida à poesia(!)"
E respondo, a sorrir, que bem o sei,
Que faço por viver e viverei
Até sentir-me de versos vazia *
Assim me faça a Vida a cortesia
De conceder-me os versos que sonhei
E toda em versos me transformarei
Até um dia, amigo, até um dia... *
Ah, sim, respiro ainda, ainda sonho
Com um mundo mais justo e mais fraterno,
Mais verde, mais sereno e mais risonho *
Porque este que hoje encaro é puro inferno;
Desigual, violento e tão bisonho
Que mais parece um monstro em desgoverno. *
Maria João Brito de Sousa - 15.04.2021 - 20.21h ***
12. *
“Que mais parece um monstro em desgoverno.”
Com o homem e o ambiente em agonia,
Há muito que o planeta sofre, enfermo,
Vítima da mais burra vilania! *
Porquanto, é preciso por um termo
A tudo que nos traz desarmonia,
Antes que o mundo vire um lugar ermo,
Levando a Morte, enfim, a epifania...
*
E contra forças tão coercitivas,
Mais uma vez importa que tu vivas!
Pois, do pouco que resta de ilusões, *
Se não dá pra contar com governantes,
Quem sabe são teus versos instigantes
Que vão mobilizar os corações! *
Jay Wallace Mota
Belém, 15/04/2021, às 21:35 h.
***
13. *
"Que vão mobilizar os corações"...
E talvez isso venha a acontecer,
Pois também eu passei a vida a ler
Para consolidar-me em convicções *
Enquanto equilibrava as frustrações
Pra melhor conjugar o verbo ser...
Bem sei que um dia terei de morrer,
Mas vivo ainda... e versos são paixões! *
Que venha a morte quando o entender;
Estou pronta a recebê-la com canções
Que talvez a consigam convencer *
A ponderar as suas decisões;
É isso mesmo o que eu irei fazer
Pois, pra viver, sobejam-me razões! *
Maria João Brito de Sousa - 16.04.2021 - 10.37h ***
14. *
“Pois, pra viver, sobejam-me razões!
O que sobressai claro em teus poemas;
Mesmo quando tu fazes alusões
A dores, a mazelas ou problemas! *
Nasceste pra grafar inspirações,
Teus versos dão mais vida a quaisquer cenas
E tocam as mais frias atenções,
Mesmo quando alma e Morte são pequenas *
Para ti o verbo ser tem só presente E como uma menina irreverente Vais entreter a Morte, com tal arte, *
Que pra a ela, por teu gosto de viver, Nada mais restará, senão fazer, Esta menina, velha quanto baste! *
Jay Wallace Mota.
Belém, 16/04/2021, às 12:52h. ***
publicado às 09:12
Maria João Brito de Sousa
DESOLAÇÃO *
Coroa de Sonetos *
Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues ***
1. *
Choro quem parte e temo por quem fica;
Se a vida tem remédio, a morte não
E o mundo vai caindo em depressão,
Sem que se saiba tudo o que isso implica *
Já que ao que tudo ou quase tudo indica,
Pouco nos deixa, esta devastação
Pr`além do rasto de desolação
Que diante de nós se multiplica *
Como vírus que, entrando em mutação,
Corrói um mundo do qual não abdica
Ao devorar-lhe a carne feita pão. *
Lá longe, ouve-se um sino que repica
E uma voz que suplica a salvação
Na ilusão do que isso significa... *
Maria João Brito de Sousa - 03.03.2021 - 11.07h ***
2. *
"Na ilusão do que isso significa"
percorro os calabouços da memória
tentando perceber de toda a história
o que substancialmente significa. *
Recordo aquela força compulsória
que a nossa vida, ao nascer, fabrica
em rejeições que em toda a alma fica
perpetuando a submissão de escória. *
Não! Não temos perdão em aceitar
que tais e tantos bichos tão fatais
tomem conta da perfeição da gente! *
Será que já esquecemos os arrais
que apontam aos humanos qual o cais
aonde aportará espécie diferente? *
Laurinda Rodrigues *
3. *
"Aonde aportará espécie diferente (?)",
Humana, sempre, e mais evoluída,
Mais justa para toda e qualquer vida
Que a não destrua quando lhe faz frente? *
No futuro, mas nunca de repente,
Que a pressa é inimiga da subida
E pode confundir-se se a saída
Estiver ainda longe do presente *
E meta por saída que o não era...
Por mim, confio na tenacidade
Com que renasce cada Primavera *
Tão segura na sua leviandade;
Quem ama a vida é da vida que espera
O doce fruto da maturidade. *
Maria João Brito de Sousa - 03.03.2021 - 17.03h *
4. *
"O doce fruto da maturidade"
tem o sabor da antiga profecia:
quanto mais velho mais sabedoria
se caminhaste na senda da verdade. *
Ela está dentro de ti e, com a idade,
podes rever, em consciência, a via
que te liberta da tensão vazia
para te preencher de felicidade. *
A felicidade é um sentir sereno
onde flui tua alma em tempo ameno
ou mesmo se a tormenta te atacou... *
Podes sentir-te docemente pleno
como sentiu Jesus, o Nazareno,
que, mesmo incompreendido, perdoou. *
Laurinda Rodrigues ***
5. *
"Que, mesmo incompreendido, perdoou",
(creio que excptuando os vendilhões)
Aos homens em geral, ódio, traições
E até a quem à morte o condenou. *
Tão perfeita não fui - inda o não sou... -,
Nem tão boa e tão pródiga em perdões,
Mas cá me vou guiando por padrões
Que essa maturidade me doou *
E embora ande no fio de uma navalha,
Conheço muito bem a f`licidade;
Come e bebe comigo e nunca falha *
Quando lhe peço força de vontade,
Um poema mais belo, quando calha,
E a lucidez dos velhos-sem-idade. *
Maria João Brito de Sousa - 03.03.2021- 19.23h ***
6.
"E a lucidez dos velhos-sem-idade"
não me venham dizer que é lucidez!
Talvez seja pedaços de saudade
daquele imenso génio português, *
Feito de sonho e força de vontade,
que fez frente ao vazio e à aridez,
buscando, em consciência, a placidez
de descobrir a luz, que o mar invade. *
Vamos perdendo aquilo, já conquistado,
que é sangue desse sangue, semeado
na genética de muitos invasores *
E, depois, numa síntese transformado
em ser diferente e sempre emancipado
de tantas turbulências e horrores. *
Laurinda Rodrigues *
***
7. *
"De tantas turbulências e horrores"
Se vai cobrindo esta desolação,
Que alguns perdem o norte ao coração
E a razão já viu dias melhores... *
A lucidez, porém, resiste às dores
E a todo o tipo de devastação;
Só mesmo a morte a verga se, à traição,
Lhe crava o letal ferro, entre estertores, *
E, às vezes, a demência também vence
A lucidez profunda conseguida
Por esse ou essa a quem ela pertence, *
Que a lucidez é graça garantida
A quem muito vivendo, muito pense
Sobre Si, sobre o Outro e sobre a Vida... *
Maria João Brito de Sousa - 04.03.2021 - 10.57h ***
8. *
"Sobre Si, sobre o Outro e sobre a Vida..."
é pensamento que devora os dias,
coberto de temores e de agonias,
para que a morte não seja consentida. *
O corpo é uma história muito lida
nos sinais onde as horas são os guias
mas, nessas caminhadas tão vazias,
esquecemos que é a alma que convida
*
a descobrir a Si, ao Outro, Todos
sem nunca desistir com os engodos
que aparecem na sombra do caminho... *
E, sempre navegando pelos lodos,
com paciência e com suaves modos,
não ficarás nem triste nem sozinho. *
Laurinda Rodrigues ***
9. *
"Não ficarás nem triste nem sozinho"
Quando souberes que tudo o que viveste
Faz parte do que, em ti, reconheceste
Como vestido teu tecido em linho *
Por vezes com ternura e com carinho
E, outras, um bocadinho mais agreste,
Pois nem sempre o tecido que teceste
Teve a textura suave do teu ninho, *
Não, não concebo um` alma independente
Deste corpo de carne e sangue e ossos
E só me sei tecer enquanto gente. *
Ainda que me cubram de destroços,
É desse todo que me emerge, urgente,
A rebeldia que há nos velhos-moços. *
Maria João Brito de Sousa - 04.03.2021 - 13.36h
***
10. *
"A rebeldia que há nos velhos-moços"
não se confunde com pura teimosia
que a falta de razão às vezes cria
para fugir à prisão dos calabouços. *
Mesmo com cordas presas aos pescoços
onde a voz, já cansada, desafia
quem inda possa ouvi-la muito fria
no momento final que a prende aos ossos, *
Façamos esse gesto de clemência
de dizer versos perante uma audiência
que, entretanto, fugiu de tão cansada *
E imploremos a Deus, numa deferência,
que nunca mais tenhamos consciência
de sermos, uns para os outros, quase nada. *
Laurinda Rodrigues
***
11. *
"De sermos, uns para os outros, quase nada"
E, simultaneamente, tanto mais
Quanto mais nos sintamos desiguais
Na sintonia mal sincronizada *
Desta desolação quase assombrada
Das casas já sem portas nem umbrais
Porquanto pela porta já não sais
Se não depois de morta ou condenada. *
Exagero, bem sei... e no entanto,
É mesmo assim que o sente a maioria
Que vive aprisionada no seu canto *
Sem ter a bênção que é a poesia,
Sem estas asas de paixão e espanto,
Murchando à míngua de uma companhia. *
Maria João Brito de Sousa - 04.03.2021- 17.30h ***
12. *
"Murchando à míngua de uma companhia"
estamos todos agora em reclusão
sem sentirmos do Outro mão-na-mão
que nos inspira os temas da poesia. *
Mas falar por falar, no dia a dia,
apenas por rotina ou compaixão
agrava esse sentir da solidão
que, já antes de agora, acontecia. *
Exorto cada um à dança e ao canto.
Exorto ao grito de prazer e espanto
porque a voz com expressão tem de se ouvir... *
E dentro de uma casa, num recanto,
deitem fora o papel que enxuga o pranto
e todos, todos juntos, vamos RIR. *
Laurinda Rodrigues ***
13. *
"E todos, todos juntos, vamos RIR"
Pra construir algo mais belo e são
Sobre os destroços da desolação
Que como tudo o mais irá ruir *
Então, a solidão irá sumir,
A flor escondida vai brotar do chão,
Nas ruas vai dançar a multidão
E nessa noite ninguém vai dormir... *
Mas muito tempo ainda vai passar
Antes desta batalha estar vencida
E muito, muito ainda há que lutar *
Para podermos ter de novo a vida
Com a qual estamos todos a sonhar
No fim de uma batalha tão sofrida. *
Maria João Brito de Sousa - 04.03.2021 - 18.48h ***
14. *
"No fim de uma batalha tão sofrida
nem vamos perceber o que acontece
aquilo que foi vivido não se esquece
mas pode ser um ponto de partida *
Para dar ao pesadelo a despedida
e paz ao coração, que bem merece,
no conforto do amor que o engrandece
sem ter de se afogar numa bebida. *
E, mesmo sem negar o que passou,
a tragédia que a tantos alcançou
numa dor que só a cruz explica, *
Aceito humildemente o que ficou
e, na prece que essa cruz honrou,
"choro quem parte e temo por quem fica" *
Laurinda Rodrigues ***
publicado às 10:07