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POEMA/PÃO
*
Escrevo pra ti que vens de olhos pasmados
Matar nestes meus versos fome e sede:
Possam teus sonhos ser alimentados
Por quanto pão meu espanto te concede
*
Se te não são, nem foram dedicados,
Servi-los-ei à fome que mos pede
Mal a pressinta aqui, de olhos poisados:
Que lhe faça proveito o que me excede!
*
E mais razão nenhuma me mantendo,
Não reconheço justa outra razão
Senão a que talvez me vá perdendo
*
Mas à qual nunca irei dizer que não:
Pra que o que sinta fome os vá comendo,
Cozinho versos como quem faz pão.
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Mª João Brito de Sousa
In A CEIA DO POETA
Inédito
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A Fortuna de Olhos Vendados - Tadeusz Kuntze, 1754
(Wikipédia)
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A SORTE
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A sorte, amigos meus, quando bafeja
Alguém que não desdenhe a própria vida,
Pode vir como gota que goteja,
Ou irromper de um jorro, decidida
*
E seja ela aquilo que ela seja,
Não faz caso da porta que a convida,
Não quer saber da mesa que a festeja
E vai-se assim que encontra uma saída
*
A sorte não tem cor mas tem poder,
Nunca cuida de qu`rer a quem a quer
E muito raramente é justiceira
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Pois nada enxerga e não sabe escolher
Quem dela necessite por não ter
Como sobreviver de outra maneira.
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Mª João Brito de Sousa
In A CEIA DO POETA
Inédito
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DESENCONTROS
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Dormias nos meus braços fatigados
E, hoje, não me vês, não me conheces,
Não juntas os meus fios aos fios que teces,
Nem há lugar pra mim nos teus cuidados
*
É tarde, eu sei, pra redimir pecados
Ou pra saber se tens quanto mereces
E o que me dirias se pudesses
Relevar preconceitos recalcados
*
Mas se te move o mesmo que me move,
Segue em frente, não esperes que te prove
Que me sinto por fim realizada
*
Pois também para mim o tempo é pouco
E o mundo, minha filha, anda tão louco
Que tudo diz saber sem saber nada.
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Mª João Brito de Sousa
In A CEIA DO POETA
Inédito
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Pormenor de mural de Diego Rivera
FOME(S) II
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Se tens fome do pão que ao rico sobra,
A força da razão está do teu lado
Quando acusas traído o resultado
De tudo o que é produto de mão de obra
*
E se, do que criaste, outrem te cobra
O fruto inteiro ou o maior bocado
E a ti te deixa pobre e esfomeado
Certo de que te cala e que te dobra
*
Mal sabe que te entrega a força toda,
Que essa força em ti cresce e se denoda
Para acender-se em chama renovada
*
Porquanto se agiganta, alastra em roda,
Incendeia-se toda e mais te açoda
Quando do que estuou lhe sobra um nada.
*
Mª João Brito de Sousa
In A CEIA DO POETA
Inédito
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SUSPENSÃO
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Negaram-me as razões pra ter razão
Sem qualquer atenção ao que não vendo
Não posso deduzir de uma equação
Que me não diz se a tenho, ou se a vou tendo...
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E tendo mil razões para a tensão
Que essa equação gerar, sempre em crescendo,
Garanto não saber se há solução
Pra tudo quanto tento ir resolvendo...
*
Mas eis que surge um verso em suspensão
Na revolta que engulo e vou retendo
Pra dela desviar toda a atenção
*
E logo desse verso me suspendo
Suspendendo também a frustração,
Já que a um só compasso então me prendo.
*
Mª João Brito de Sousa
In A CEIA DO POETA
Inédito
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FUSÃO
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Nas águas do meu rio, no ponto exacto
Em que o mar num abraço o recebeu
Me espelho e nesse amplexo me retrato
E sou muito mais rio do que sou eu
*
Mas sou também pinheiro, erva do mato,
Rochedo, alga marinha, azul do céu,
Vento que rodopia em desacato,
Molécula de ar puro, haste que ardeu...
*
Na terra em que nasci, se me relato
No que em mim nasce e no que em mim morreu
Ou no mais que de meu guarde em recato
*
Qual mastro vertical ou qual troféu,
É nessa (con)fusão que emulo o gato
Que morre a defender um chão que é seu.
*
Mª João Brito de Sousa
In A Ceia do Poeta
Inédito
(Soneto em decassílabo heróico)
Eu tenho tanta pena de ter pena
Do tanto que vou vendo destruído,
Que chego a deduzir que ser serena,
Se despiu de razões, perdeu sentido,
Pois mais sentido faz razão pequena
Que nem sequer conceba haver perdido
Razões que são da pena a razão plena
De nunca as ter sonhado, ou concebido,
Mas... pena de mim mesma? Coisa obscena!
Que fútil, ou que inútil terei sido
Durante esta jornada, nunca amena,
Pr`a tê-la de mil penas preenchido?
Pergunto, olhando o Nada que hoje acena
A Tudo o que me coube ao ter nascido...
Maria João Brito de Sousa - Março, 2016
In A CEIA DO POETA - (inédito)
(Soneto em decassílabo heróico)
Na tenaz destas coxas que te prendem
Conduzo-te, poema imaginário,
Por ondas e marés, doce corsário,
Ao cais onde estas vagas se me rendem...
Rotas hábeis que engendro e que te entendem,
Levar-te-ão, poema solitário,
Ao cais urgente, ao porto necessário
À nau que vara as ondas que a suspendem...
Afundo-te, poema, verso a verso,
Firmando o leme assim que tu, disperso,
Te desvias da rota e, já perdido,
Recusando, talvez, morrer submerso
Na doce embriaguês deste universo,
Te negas ao naufrágio prometido...
Maria João Brito de Sousa - Fevereiro, 2016
In A CEIA DO POETA (inédito)
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