SINESTESIA(S) II - Coroa de Sonetos - Maria João Brito de Sousa e Custódio Montes
SINESTESIA(S) II
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Coroa de Sonetos
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Maria João Brito de Sousa e Custódio Montes
1.
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Vem desvendar-me a cor destes sentidos,
Deslinda-me o compasso em descompasso,
Pressente os dedos hábeis e compridos
Das mais simples palavras que aqui traço...
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Em ti, mesmo que apenas pressentidos,
Terão a dimensão do mesmo abraço
Com que, letra por letra concebidos,
Magicamente, ou não, se abrem num laço...
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Ah, soubesse eu que podes decifrar-me
E que, por cada letra que te estendo,
Te aponto mil razões pra adivinhar-me,
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Ou que pudesses ver, no que desvendo,
A cor dos sons que entendem visitar-me
Na paleta do verbo em que me acendo...
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Maria João Brito de Sousa - Março, 2016
In A Ceia do Poeta - (inédito)
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2.
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“Na paleta do verbo em que me acendo...”
Escrevo a tinta azul como convém
Misturo o vermelho e também
As cores que me chegam e vou vendo
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Depois à claridade vou cedendo
Em tons que vejo e apanho nesse além
Provindo do horizonte e que me vem
Das imagens que chegam e vou lendo
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Palavras que componho em harmonia
Com tudo o que me vai no coração
À paleta dou luz, sinestesia
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Envolta numa troca de oração
Tentando que esta minha poesia
Não me fuja nem entre em contramão
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Custódio Montes
20.42021
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3.
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"Não me fuja nem entre em contramão"
Verso que das entranhas me nasceu,
Tal como das entranhas nasci eu,
De minha mãe, depois da gestação...
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Há sempre um tom escondido na canção
Que a paleta dos versos prometeu
E canta cada cor que se escondeu
Na palma agora aberta desta mão.
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As letras são pequenas criaturas
Que se juntam em grupos coloridos
Para formar orquestras e pinturas
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Que são captadas pelos meus sentidos
E que ao som de invisíveis partituras
Subvertem mil princípios estatuídos.
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Maria João Brito de Sousa - 20.04.2021 - 17.33h
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4.
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“Subvertem mil princípios estatuídos.”
Mas sem essas palavras que seria
Nada mais que um montão, cacofonia
Sem grandes pensamentos construídos
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Agrupadas em tons bem coloridos
As palavras contêm a melodia
Que ouvimos e nos trazem alegria
Mantendo-nos no sonho embevecidos
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As letras são as cores das palavras
Que enfeitam a conversa e a nossa vida
São sementes que crescem entre as lavras
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Pintada a palavra é colorida
Nunca deteriora ou escalavra
O tema (em) que, com cor, fica inserida
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Custódio Montes
20.4.2021
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5.
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"O tema (em) que, com cor, fica inserida"
Transmuta-se em cenário ou em paisagem
E faz, cada palavra, uma viagem
Em direcção à terra prometida
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Que é um soneto quando ganha vida
E, embora formal, vibra selvagem,
Metade som e outra metade imagem
Numa duplicidade garantida...
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Minh` âncora é também isto que faço
E a minha barca, que nasceu comigo,
Faz-se num dia ao mar e noutro ao espaço
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Sem ter destino nem porto de abrigo;
Mil sensações nascendo em cada traço
E esta semi-cegueira - o meu castigo!
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Maria João Brito de Sousa - 20.04.2021 - 18.49h
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6.
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“E esta semi-cegueira - o meu castigo”
Mas eu nessa cegueira vejo luz
E ao ver tudo tão claro isso seduz
E corro sem saber se o consigo
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Mas se falhar, amiga, é cá comigo
Porque esta desgarrada que propus
A novas árias lindas me conduz
E corro indiferente no perigo
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O jogo das palavras traz encanto
Alumia a candeia ao pensamento
E ao vir a ideia então eu me levanto
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Afasto as amarguras e o tormento
E fico tão contente no meu canto
Que sou muito feliz nesse momento
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Custódio Montes
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7.
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"Que sou muito feliz nesse momento"
Em que o verso me nasce e, sem travões,
Bem mais depressa voa que os tufões
Não causando, contudo, sofrimento
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Que o verso é sábio, mago e tem talento;
Por tudo e nada se exalta em paixões
E arrebata os nossos corações
(embora o meu já esteja sonolento...)
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Como é dif`rente escrever devagar
De escrever a galope, à rédea solta...
Amanhã voltarei a galopar!
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Sumiu-se-me a visão. Hoje não volta,
Mas amanhã, assim que eu acordar,
Renascerá, embora em névoa envolta!
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Maria João Brito de Sousa - 20.04.2021 - 21.05h
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8.
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“Renascerá, embora em névoa envolta!”
Às vezes com um olho é-se rei
E mesmo assim governa ele a grei
E anda toda a gente à sua volta
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A palavra é assim e anda à solta
Mas ordenada bem como é de lei
É monumento em si como logrei
Ver na forma tão bela como a escolta
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Queixume muitas vezes é a mais
A névoa não impede o seu valor
A palavra consigo tem ramais
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Que expressam pensamentos com fulgor
Em poemas que são monumentais
Em tudo que lhes dá com tanto amor
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Custódio Montes
20.4.2021
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9.
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"Em tudo que lhes dá com tanto amor",
E em dobro cada verso lhe devolve
Quando em doçura infinda se dissolve
No poema a que empresta o seu sabor.
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Queixume? Não, pois não cedi à dor,
Cedi a uma névoa que me envolve
Quando nem mesmo o esforço me resolve
Esta impotência que já sei de cor...
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Por tempo limitado sei vencê-la
Juntando as letras, em vez de soltá-las,
Mas quando a noite chega, ganha-me ela;
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Só vejo nebulosas, baças, ralas,
Manchas indecifráveis sobre a tela...
Não me deixa, essa névoa, decifrá-las.
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Maria João Brito de Sousa - 21.04.2021 - 11.15h
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10.
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“Não me deixa, essa névoa, decifrá-las”
Mas sempre vê aquilo que pretende
Alcança e é sagaz como um duende
Que salta tudo em frente e até valas
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Princesa que passeia pelas salas
E olha em redor e tudo entende
Navega sobre as ondas, não ofende
E vence sem mostrar festas e galas
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Na cor é um matiz de muito enfeite
Adorna o seu palácio de beleza
Que olhado no seu todo é um deleite
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Eu gosto desse tom de realeza
Nessa cama deixe, amiga, que me deite
A sentir e a olhar essa grandeza
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Custódio Montes
21.4.2021
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11.
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"A sentir e a olhar essa grandeza"
Que, amigo, só no verso é bem real;
Eu sou tão pequenina e tão banal
Quão banal possa ser qualquer burguesa...
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Mas, sim, terá lugar na minha mesa
Desde que a refeição seja ideal;
Sirvo a palavra coberta do sal
Que colho nas salinas da pobreza.
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Se vir beleza nisto que lhe of`reço,
Ficarei tão feliz por convidá-lo,
Que da minha pobreza até me esqueço
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E este repasto irá ser um regalo;
Aguarde-me um minuto enquanto aqueço
O manjar com que irei presenteá-lo.
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Maria João Brito de Sousa - 21.04.2021 - 14.25h
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12.
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“O manjar com que irei presenteá-lo”
Amiga, que prazer em aceitar
Sentados sobre a areia junto ao mar
À tarde, à noite até cantar o galo
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Delícias que já vejo e de que falo
E sem o condimento me escapar
Uma pinga de Dão a terminar
Só desta vez vai ver que é um regalo
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Nas doenças nem pense que a alegria
Compensa-nos queixumes e mazelas
Junto ao mar nós os dois com a magia
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Das ondas a vogar sob as estrelas
Do enlevo do sonho e poesia
Com odes e cantigas das mais belas
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Custódio Montes
21.4.2021
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13.
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"Com odes e cantigas das mais belas"
Iremos celebrar a poesia
E ainda a singular sinestesia,
À luz das ondas e ao som das velas...
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Saber-nos-á, esse manjar, a estrelas,
Crescerá a maré quando vazia
E arredondar-se-á a maresia
Num círculo perfeito, em nossas telas.
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O Dão também será imaginário
E embora imaginado, embriagante;
Não mais que um golo será necessário
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Pra trazer até nós o céu errante
Que este sistema em código binário
Engendrou para unir quem está distante.
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Maria João Brito de Sousa - 21.04.2021 - 19.23h
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14.
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“Engendrou para unir quem está distante.”
E pinta na paleta as suas cores
Num quadro enfeitado com as flores
Mais belas e de aroma inebriante
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Eu pinto as tuas mãos em tom sonante
Em ilha que me leva onde fores
A ilha desvendada dos amores
Sinestesia sim dialogante
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E ouço uma guitarra e uma canção
Que soa suavemente aos meus ouvidos
Em decibéis que vêem e se vão
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E este entrecruzar de sons queridos
Se os não vês a pulsar no coração
“Vem desvendar-me a cor destes sentidos”
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Custódio Montes
21.4.2021
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