SERVIDO AO POSTIGO- Mª João Brito de Sousa e Jay Wallace Mota - Reedição
Imagem cedida por Jay Wallace Mota
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SERVIDO AO POSTIGO
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Coroa de Sonetos
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Maria João Brito de Sousa (Oeiras, Portugal) e Jay Wallace Mota (Belém, Brasil)
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1
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Trago um soneto servido ao postigo;
Vá prá fila senhor concidadão
Tal qual como se fosse comprar pão
Ou tomar um café... sem um amigo.
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Adquira um verso ou qualquer outro artigo
Pois passa o meu postigo a ser balcão
De um boteco de esquina sem patrão,
Sem tecto, sem cadeiras, nem abrigo...
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Vou servir-lho no copo descartável
De um protesto que sei incoerente,
Mas que se vai tornando inevitável
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Pois já não sei se sei s`inda sou gente
Se apenas sou mais uma variável
De uma curva ascendente ou descendente...
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Maria João Brito de Sousa - 12.03.2021 - 11.21h
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(em co-autoria com a minha irreverentíssima Musa)
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2.
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De uma curva ascendente ou descendente,
Depende o mundo todo, a cada dia,
Pra ver a evolução da pandemia
E decidir os passos para frente.
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Mostrados em escala contundente,
Os gráficos revelam uma fria
Maneira de medir essa agonia
Porque só mostram números, não gente!
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Mas o que posso ver pelo postigo
Pelo qual te proteges num abrigo,
Em um modo de agir tão consciente,
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Que mesmo eficaz, frente a bruma turva,
Pouco importa a tendência da tal curva,
Tu serás variável dependente!
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Belém, 14 de março de 2020.
Jay Wallace Mota
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3.
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"Tu serás variável dependente"
De uma resiliência natural
Hoje bem burilada por um mal
Que caiu sobre ti e toda a gente
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E hás-de conseguir ser paciente
Pois verás que o convívio virtual
Embora bem mais pobre que o real,
É também fuga ao medo deprimente.
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Se ao postigo me serves os teus versos
Nestes tempos tão duros, tão adversos,
Espero que, um dia, mos sirvas em mão...
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Terá de haver um fim para a clausura
Ou morreremos todos desta cura
Porque também nos mata a solidão.
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Maria João Brito de Sousa - 15.03.2021 - 11.32h
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4.
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Porque também nos mata a solidão,
Ao nos trancar qual fôssemos cativos
Que, a falta de melhor definição,
Nos torna verdadeiros mortos-vivos!
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Não que me contraponha à solução,
Que nos impõe limites restritivos,
Os quais aceito, até sem coerção,
Pois vejo os resultados positivos.
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Porém, o que de fato já me assusta
É perceber a forma, sempre injusta,
Que não distingue os fortes dos mais fracos;
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Quando se impõe iguais obrigações
Aos poucos que se isolam em mansões
E a tantos que se juntam em barracos!
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Belém, 15 de março de 2021.
Jay Wallace Mota.
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5.
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"E a tantos que se juntam em barracos"
Insalubres, tão pobres que um só pão
Se divide por cinco, à refeição
Que foi servida em louça feita em cacos.
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Dormem no chão embrulhados em sacos,
Que muitos del`s não têm nem colchão
E, por mais que procurem solução,
Não conseguem tapar tantos buracos.
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Do outro lado, em casas luxuosas,
Parece essa clausura um mar de rosas
Entre edredões de penas e o regalo
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Das refeições servidas em bandejas;
Lagosta, caviar e, enfim, cerejas
Pr` acompanhar um Porto*, dos "de estalo"!**
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Maria João Brito de Sousa - 15.03.2021 - 17.31h
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* Vinho do Porto
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6.
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“P’ra acompanhar um Porto, dos de estalo”,
Para valorizar a refeição,
Que come sem sequer dar atenção
Aos números que assiste sem abalo!
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Ignora que chegou-se ao gargalo
De um sistema em completa lotação,
Gerido por um louco fanfarrão,
Com quem ele costuma ir no embalo;
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Bradando sempre contra o isolamento,
Pois só pensa em seu próprio rendimento;
Crítica os exageros sem motivos!
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E enquanto toma um vinho envelhecido,
Vê seu trabalhador, todo espremido,
Exposto nos transportes coletivos!
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Belém, 15 de março de 2021.
Jay Wallace Mota.
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7.
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"Exposto nos transportes colectivos"
Como se fosse carne pra canhão,
Não gente com família e coração
E que é suporte dos que inda estão vivos.
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Esses que afinal são os mais activos
Dos alicerces vivos da nação,
Vão sendo destratados sem razão
E sem medicação nem lenitivos
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Vão tombando às dezenas, aos milhares,
Nas valas que os civis e militares
Vão abrindo e fechando sem parar.
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Será que são deveras descartáveis
As vidas desses pobres miseráveis
Que sufocam assim, sem pinga de ar?
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Maria João Brito de Sousa - 15.03.2021- 20.03h
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8.
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“Que sufocam assim, sem pinga de ar”
E passam a sentir dentro do peito
O tempo que se torna mais estreito
Que o tempo que dispõe pra procurar
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Sem nada e sem ninguém com quem contar
Procuram encontrar de qualquer jeito
Nos hospitais lotados algum leito
Até morrer nas filas sem achar!
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E justo quando já se tem vacina
O moribundo chora, se lastima
E luta pra ficar firme na raia...
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Mas sem quem possa ouvir seu choro rouco,
Ele vai se entregando pouco a pouco,
C’a sensação de quem morre na praia!
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Belém, 15 de março de 2021.(18:37h).
Jay Wallace Mota.
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9.
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"C`a sensação de quem morre na praia"
Junto com a revolta que brotava
Do peito imóvel que antes ofegava
Como potro selvagem preso à baia.
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Na contra-mão da vida, a morte ensaia
Uma dança letal que ninguém trava;
Já não respira alguém que respirava
E a espécie humana torna-se a cobaia
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Da procura imp`riosa duma cura
Que ninguém sabe se será segura,
Ou se pode trazer um novo p`rigo
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E enquanto o "jogo" assim se desenrola,
Eu, que não passo de uma velha tola,
Componho uns versos pra venda ao postigo...
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Maria João Brito de Sousa - 15.03.2021 - 22.39h
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10.
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“Componho uns versos pra venda ao postigo...”
É sempre o que me dizes quando assunto,
Ou se indiscretamente te pergunto
Por que te isolas dentro deste abrigo!
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Parece até que vives de castigo!
Ou será que não queres ninguém junto?
Que possa intrometer-se no conjunto;
Aquele que a tal musa faz contigo!
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Não penso mexer nessa sintonia,
Mas quando terminar a pandemia,
E todos nos livrarmos desse medo,
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Prometo, e vou cumprir tudo que digo,
Depois de escancarar esse postigo,
Vou ver, além da porta, o teu segredo!
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Belém, 15 de março de 2021.
Jay Wallace Mota.
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11.
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"Vou ver, além da porta, o teu segredo"
Que não é mais do que uma minudência
Pr`aliviar o Estado de Emergência
Que fechara o comércio. E, que degredo!,
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Só ao postigo é que, de manhã cedo,
Algumas lojas servem, com prudência,
Aquilo que esta nossa impaciência
Exigia normal, esquecendo o medo...
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Esta medida, muito discutida,
Foi depois pelos "media" difundida...
Julguei que se soubesse, por aí,
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Que os postigos, aqui em Portugal,
São os reis deste novo não-normal...
(sirvo, ao postigo, aquilo que escrevi)
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Maria João Brito de Sousa - 16.03.2021 - 10.59h
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12.
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“(sirvo, ao postigo, aquilo que escrevi)”
O que parece ser o não normal
Neste momento triste em Portugal,
Eu te asseguro ser normal aqui!
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Não só pelas razões que tens aí,
Em decorrência desse tal lockdown!
Além deste, há por cá um outro mal
Que, de banal, eu quase me esqueci!
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Aqui, nossos receios, sobressaltos
Decorrem da frequência dos assaltos
Seja à porta de casa ou da oficina!
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O que vai nos minando a resistência
Porque quando a doença é violência,
Nem se tem a esperança da vacina!
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Mosqueiro, 16 de março de 2021, (14:38h).
Jay Wallace Mota
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13.
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"Nem se tem a esperança da vacina"
Na qual não tenho assim tanta confiança;
Este vírus sofreu tanta mudança
Que ressurgiu mais forte em cada esquina
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Porém, antes ter esperança pequenina
Do que, de todo em todo, não ter esp`rança
Que eu bem me lembro da cruel matança
Da Pneumónica, a trágica assassina...
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No caso da violência, Portugal,
É bem mais moderado. Essoutro mal
Não nos aflige tanto quanto a vós.
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Neste "jardim à beira-mar plantado"
Toda a gente prefere ouvir um fado
A cometer um qualquer crime atroz.*
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Maria João Brito de Sousa - 16.03.2021 - 18.30h
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14.
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“A cometer um qualquer crime atroz”
E assim levar alguém à fria cova,
Prefiro reviver a Bossa Nova,
Ouvindo João Gilberto a baixa voz!
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C’alguém com quem pudesse estar a sós!
E viver meu momento Casanova,
Cantando meu amor; loas em trova!
Sem me importar com contras e nem prós!
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Porém, devido à louca pandemia,
Não posso ter nenhuma companhia,
Quer seja como amante ou como amigo!
Porquanto, sem querer ser insensato,
Privado de estreitar qualquer contato,
“Trago um soneto servido ao postigo.”
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Belém, 16 de março de 2021.
Jay Wallace Mota.
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