NOITE - Custódio Montes e Mª João Brito de Sousa
Tela de Paul Cézzane
NOITE
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Coroa de Sonetos
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Custódio Montes e Mª João Brito de Sousa
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1.
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A noite tem mistérios e encantos
Encontram-se os amigos e as amigas
Dança-se a par e ouvem-se cantigas
Encobrem-se os amores nos seus mantos
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Escondem-se na sombra muitos prantos
Indómitos valentes sem fadigas
Tecem-se muitos contos e intrigas
Há demónios que fingem ser uns santos
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De dia vê-se ao longe a claridade
De noite vê-se bem mas só ao perto
Encobre-se a fraqueza e a idade
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Embala-nos o sonho que, desperto,
Enfeita tudo à volta. A mocidade
Anda durante a noite a céu aberto
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Custódio Montes
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30.11.2022
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2.
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"Anda durante a noite a céu aberto"
Um velho e anquilosado sem abrigo
Tão gasto quanto um móvel muito antigo
Pla pátina do tempo hoje coberto
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Pra esse a noite é um local deserto
P`rigoso para quem não sente o p`rigo,
Mas suave se encontrar um velho amigo
Que caminhe ao acaso ali por perto
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E caminhando juntos, juntos olham
O céu cheios de estrelas. Que os não tolham
Os muitos anos que ambos já viveram
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Que ao menos as memórias sejam belas
Já que, hoje, nada têm senão estrelas
E os sonhos que tiveram já morreram.
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Mª João Brito de Sousa
30.11.2022 - 14.00h
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3.
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“E os sonhos que tiveram já morreram”
Mas mesmo assim à noite a conversar
Recordaram momentos e ao lembrar
Outras enormes gestas prometeram
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Cantaram e dançaram, não temeram
As vagas já passadas do azar
Que foram e não mais iam voltar
E em novos afazeres se entenderam
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Prometeram plantar cravos e rosas
Bem-me-queres floridos e jasmins
Tudo à volta as flores mais formosas
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Vestirem-se de roupas com cetins
Andarem com sorrisos glamorosos
Em festas ao ar livre e em jardins
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Custódio Montes
30.11.2022
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4.
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"Em festas ao ar livre e em jardins"
Ressuscitaram os seus sonhos mortos:
Se no asfalto plantaram seus hortos,
No céu soltaram bandos de chapins
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E esculpiram, nos becos, querubins
- que importa se perfeitos ou se tortos
eram os traços seus se tão absortos
estavam os dois em alcançar seus fins? -
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E nessa noite aqui reinventada,
Foram jovens os dois. Talvez crianças
Fazendo traquinices na calçada,
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Coreografando juntos novas danças,
Criando o que quiseram desse nada
Que nada deve ao banco ou às finanças.
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Mª João Brito de Sousa
30.11.2022 - 16.35h
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5.
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“Que nada deve ao banco ou às finanças”
Nem pedir emprestado, tudo a pronto
Que misérias de empréstimos nem conto
Com juros usurários nas cobranças
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Que quem se for meter nessas andanças
Vive sem paz e em guerra nesse ponto
A ganhar para o banco e em confronto
Sem ter no seu futuro esperanças
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Para se viver bem, para sonhar
Devemos entre nós ter por cultura
Não andar a pedir nem a roubar
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Encher os nossos bolsos com usura
De quem anda na vida a trabalhar
Com toda a honestidade, com lisura
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Custódio Montes
30.11.2022
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6.
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"Com toda a honestidade, com lisura",
Partilharam a noite até ser dia
E de manhã nenhum dos dois sabia
Distinguir sanidade de loucura
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Ambos haviam feito a mesma jura
De não perder o sonho e a alegria,
Como se por milagre ou por magia
Uma tristeza não tivesse cura...
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De novo a noite escura vai tombando
Sobre esses dois mendigos. No veludo
Do céu imenso, estrelas vão brilhando...
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Nem um nem outro têm espada ou escudo
Mas como cavaleiros batalhando
Combatem fome e frio, vencendo tudo.
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Mª João Brito de Sousa
30.11.2022 - 19.25h
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7.
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“Combatem fome e frio, vencendo tudo”
Pois são dois bons amigos, combatentes
Que lutam contra ventos inclementes
Com o corpo sem vestes e desnudo
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Tivessem eles mais algum estudo
E teriam empregos competentes
Ou com outras acções inteligentes
Teriam um futuro mais sortudo
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Já não são moços, pesa-lhes a idade
Mas a noite passaram-na a cantar
Lembrando o seu passado, a mocidade
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Os tempos de alegria, o namorar
Com mais atrevimento ou castidade
E noites que tiveram a sonhar
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Custódio Montes
30.11.2022
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8.
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"E noites que tiveram a sonhar"
Partilham-nas também, feitas memórias
Que vão narrando como se vitórias
Sobre o que antes tiveram que penar
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Sob um céu todo estrelas e luar
Vão um e outro desfiando histórias
E as mais pequenas coisas são já glórias
Que convencem o Tempo a recuar...
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Do pão amanhecido que um trazia
Ao outro é of`recida uma metade
E assim jantaram nessa noite fria
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Em que ambos celebraram a amizade:
Se o amanhã traz sempre um novo dia,
Trouxe-lhes, essa noite, a eternidade.
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Mª João Brito de Sousa
30.11.2022 - 22.15h
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9.
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“Trouxe-lhes, essa noite, a eternidade”
Mas só em pensamento que a viver
Continuaram mais e a conviver
Lembrando toda a sua mocidade
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De noite só se vê pela metade
Mas eles viram bem no seu dizer
Tudo aquilo que andaram a fazer
Chegando mesmo até à hilaridade
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Um lembrou as amigas e conquistas
O outro suas fases do namoro
Aquele disse até as longas listas
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De moças que beijou sem ter decoro
Este também lhe deu algumas pistas
E riram riram riram ambos em coro
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Custódio Montes
30.11.2022
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10.
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"E riram riram riram ambos em coro"
Do seu passado e até das suas dores,
Das suas ambições, dos seus amores,
De forma tal que desaguava em choro
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Todo esse riso, como um meteoro
Rasgando a noite com as suas cores...
E foi a melhor cura, entre as melhores,
Valendo tanto ou mais do que um tesouro!
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Dissessem-lhes que a vida são dois dias
E rir-se-iam de quem tal dissesse:
Não crêem nessas vãs filosofias,
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Sabem que nada é o que parece
E se a noite lhes traz tais alegrias,
Que não se apresse o dia que amanhece.
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Mª João Brito de Sousa
01.11.2022 - 11.00h
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11.
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“Que não se apresse o dia que amanhece”
Para gozar a vida e a mais valia
De voltar ao passado e à alegria
Que tanto nos recorda e engrandece
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Nestas recordações a gente tece
A manta que nos cobre de euforia
E busca-se aí toda essa magia
Que no-la traz de volta e oferece
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Que continue o sonho e a alvorada
Demore que ao voltar de novo a vir
Havemos de cantar à desgarrada
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Voltando-nos de novo a divertir
Da nossa vida bela, vida airada
Que nessa altura era um elixir
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Custódio Montes
1.12.2022
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12.
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"Que nessa altura era um elixir"
E continua a sê-lo noite afora
Porque hoje é numa noite que se escora
A c´roa que se está a construir
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Na qual dois velhos tentam redimir
Os muitos pecadilhos desse outrora
Que ambos recriarão antes que a aurora
Radiosa comece a ressurgir
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Mesmo as falsas memórias são bem vindas
À noite que em coroa entretecemos
E que, antes de fechar, toda se alinda
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Com os sons e silêncios que lhe demos...
Mas dois sonetos vão faltando ainda
Pra que feche em beleza, bem sabemos.
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Mª João Brito de Sousa
01.12.2022 - 14.40h
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13.
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“Pra que feche em beleza, bem sabemos “
E ao fechar abriu-se o coração
Por ter voltado a ter recordação
De tudo o que amamos e vivemos
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De noite, nas estrelas, tudo vemos
Lampeja à nossa volta um clarão
Que nos recorda os anos que se vão
E voltamos atrás e tudo temos
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Na noite giram muitos impropérios
Mas também flui a luz e a claridade
E são sonhados tantos desidérios
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Que se emaranha em nós gosto e vontade
De sondarmos amores e mistérios
Que trazem à memória a nossa idade
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Custódio Montes
1.12.2022
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14.
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"Que trazem à memória a nossa idade"
E as muitas ilusões de antigamente
Que a vida derrubou tão lentamente
Quão depressa cresceu esta amizade
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Que à noite, numa rua da cidade,
Nasceu de uma conversa frente a frente...
Quase no fecho, sinto-me impotente
Pra prolongar toda esta f`licidade
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Prossigo porque tudo tem um fim
E engendrámos dois homens, não dois santos
Desses que são talhados em marfim,
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Que (en)cobrem a nudez com longos mantos
E que jamais virão dizer-me assim:
"A noite tem mistérios e encantos"...
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Mª João Brito de Sousa
01.12.2022 - 17.45h
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