MOVER MONTANHAS - Coroa de Sonetos - Mª João B. Sousa e Ró Mar
MOVER MONTANHAS
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Coroa de Sonetos
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Mª João Brito de Sousa e Ró Mar
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I
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Não te procurarei até que venhas
E que tragas contigo o que levaste
De mim, que te dei mais do que sonhaste,
De mim, que hoje abandonas e desdenhas
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Como se as tuas glosas fossem estranhas
Aos versos que comigo partilhaste...
Voa, então, até onde te encantaste
Ainda que voando me detenhas
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Mas se em verdade, Musa, me olvidaste,
Enquanto noutras vozes te entretenhas
Ache eu a voz da voz que em mim calaste
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E ainda que me perca se me ganhas,
É no poema que hoje me negaste
Que encontro a força pra mover montanhas.
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Mª João Brito de Sousa
19.01.2022 - 13.45h
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II
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"Que encontro a força pra mover montanhas"
E destrono a Musa feiticeira,
Que de repente em manhas e artimanhas
Dá volta ao miolo e traz canseira!
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Ah, como me apraz saber-me capaz
De improvisar sem ter fada madrinha
P'ra o toque final, tão bem que isso faz!
Não sendo ingrata, também sou estrelinha!
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Venha o pôr do Sol, que eu desfilo ao lado!
Haja mar altaneiro e mais natureza
Para me consolar no poema amado!
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Se tiveres de novo a delicadeza
De sobrevoar o meu céu estrelado
Serás o luar dos meus dias de tristeza.
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© Ró Mar | 20/01/ 2022
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III
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"Serás o luar dos meus dias de tristeza"
E o sol das minhas noites de alegria,
Mas fada não serás onde a magia
Seja maior que o pão que levo à mesa...
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Se sou plebeia, serás tu princesa
De um reino que nem sei se principia
Ou finda assim que cessa a melodia
A que vou estando noite e dia presa?
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Existirás pr`além da teoria
E serás, realmente, a chama acesa
Duma candeia que só me alumia
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Quando a palavra voa e me não pesa?
Musa, não sei que chama ardente ou fria
Soube acender em mim tanta incerteza...
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Mª João Brito de Sousa
19.01.2022 - 23.30h
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IV
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"Soube acender em mim tanta incerteza..."
Por minha culpa, entreguei o coração
Num dia núveo p'ra sentir firmeza
Na minh' alma ao compor uma canção;
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Mas, dias não são dias, hoje sei bem
O quanto tu me amaste na surdina;
Se me foges é porque queres-me bem
E eu sempre preciso da lamparina...
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Ah, quantas as noites o Morfeu não vem!
E, o que me têm acesa noite adentro
És mesmo tu: ó Musa de todos sem...
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Querubina da colina, epicentro
Da retina, qual o horizonte advém
Liberto, peculiar do circuncentro!
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© Ró Mar | 20/01/ 2022
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V
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"Liberto, peculiar do circuncentro(!)",
Polígono imperfeito, deus de barro,
Espiral de fumo ou cinza de cigarro
E tudo o mais que exista cá por dentro
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Quando de ti me afasto e desconcentro
E nunca sei se agarro e quando agarro...
Desse abraço improvável e bizarro
Há-de nascer a luz de um céu cruento
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Montanhas trazes dentro do teu tarro
E algumas são de ferro e de cimento
Ainda fresco ou já mostrando o sarro
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Do tempo em imparável movimento
Como se o ir e vir de um autocarro
Que não tem um motor nem traz assento
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Mª João Brito de Sousa
20.01.2021 - 11.00h
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VI
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"Que não tem um motor nem traz assento"
E este carcomido, desamparado,
Onde a poeira aninha no argumento
Ressaltando o tempo pré-encerrado!
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Por mais que abra janelas p'ra arejar
A maleita está aqui de tal forma,
Que não resta dúvida a despistar
Nem exclamações, tornando-se norma.
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O vai-e-vem de engrimância na escalada
Ressalta, saltam os carretos, teia
Premiando a permuta prá 'pousada'.
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Imagético, contudo recheia
De esperança o olhar da voz calada
E os dedos tremulando a ideia!
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© Ró Mar | 20/01/ 2022
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VII
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"E os dedos tremulando a ideia",
Movem montanhas, plantam mil florestas
E, solidários, limam as arestas
Das estrelas-do-mar na maré cheia
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Ninguém os pára, ninguém os refreia;
Nem os arqueiros com as suas bestas
Podem abrir mais que pequenas frestas
No muro de vontade que os rodeia
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E se cansados fazem suas sestas
No sal do mar, em castelos de areia,
Jamais as horas lhes serão funestas
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Que à noite hão-de ter astros para a ceia
Degustados ao som de mil orquestras
Conduzidas por uma só sereia.
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Mª João Brito de Sousa
20.01.2022 - 15.40h
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VIII
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"Conduzidas por uma só sereia"
É mote de génio, que iça esta barca
Cambaleante entre o mar e a candeia
Na mística e aventurada matriarca;
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Protetora das ninfas Oceânides
Criadora de floreado marítimo,
Que ascende às excelsas efemérides,
Ah, Tétis, Musa do vento Oceânico!
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Move-se a Terra e ascende-se aos Céus
Neste belo pedaço mitológico
Onde se faz viagens pelos ilhéus;
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Metáforas de mérito cronológico
Filiadas na Lumena dos coruchéus
Onde nasce o poder morfológico.
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© Ró Mar | 20/01/2022
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IX
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"Onde nasce o poder morfológico"
E a lógica se despe de sentido,
Surge um ardor imenso e desmedido
Como se o surrealmente fisiológico
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Nascesse, por acaso, num zoológico
E fosse um estranho sem nunca o ter sido...
Ah, quem o não teria enaltecido
Se fosse belo e sábio ou antológico?
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Vogasse a Barca num mar já rendido
Ao vírus mais letal, mais patológico
E fosse o tripulante dissolvido
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Num punhado de plâncton ideológico...
Seja este poema aceite ou proibido,
Nada do que foi escrito é escatológico!
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Mª João Brito de Sousa
20.01.2022 - 17.20h
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X
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"Nada do que foi escrito é escatológico"
São meros laivos de raízes profundas
Ao vocábulo impugnando o lógico
Da maré, que se adivinha nas fundas!
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Assim, esvaziado o pote mágico
Calcorreado vai o pensamento
Ao leme dum desnorte nostálgico
Implorando pelo sentimento.
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Desvanece o modo de frasear
Porque escasseia a leda inspiração,
Que só dotados sabem desenrolar.
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Cabe-me mover montanhas p'ra achar
O dom que outrora abria o coração
Num leque emotivo de fascinar!
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Ró Mar | 20/01/2022
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XI
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"Num leque emotivo de fascinar(!)"
Lançou ao vento um punho de sementes;
De pé ficou, cerrados os seus dentes
Que mais não tinham para mastigar
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Já que as sementes rodavam no ar
Todas seguindo rotas bem diferentes...
Que faria sem ter ingredientes
Pra pôr na mesa o pão do seu jantar?
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Por que razão tivera tais repentes
E perdera as sementes sem pensar?
O vento não devolve em pratos quentes
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Palavras acabadas de idear,
Mas pode um poema ser manjar de gentes,
Tentear-lhes a fome... e até sobrar?
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Mª João Brito de Sousa
20.01.2022 - 19.15h
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XII
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"Tentear-lhes a fome... e até sobrar"
Para procriar fiapos noutra sequência
Expetante que venha a melhorar
O cardápio com dose de paciência.
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E, por este labirinto sequiosa
Duma boa prosa escarafuncho
Até aos confins, nada receosa,
Embora se denote o caruncho.
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Tenha eu ainda alguns dentes molares
Até ao dia de partir... hei-de sorrir,
Dar dentadas nas côdeas e acenares
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Ao universo o uno verso de devir
Num cear coerente de afagares
Saciar famintos de estro... coexistir...
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© Ró Mar | 20/01/2022
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XIII
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"Saciar famintos de estro... coexistir..."
Ser verbo e carne e nervo e até ser pão
Que desse verbo nasce humano e são
Enquanto a mão da Musa o permitir
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E com dentes, ou não, saber sorrir,
Explorar a vida até à exaustão,
Escrever com toda a força da paixão,
Ser-se um vulcão que aprende a não explodir...
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Movemos a montanha, mão com mão,
E abrimos as janelas do devir
Como quem abre uma outra dimensão
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E se essa dimensão nos não servir,
Depressa mais janelas se abrirão
Sobre as montanhas que houver que subir!
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Mª João Brito de Sousa
20.01.2022 - 22.05h
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XIV
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"Sobre as montanhas que houver que subir"
Se o fôlego falhar, basta a vontade
Que ela é quem nos traz a felicidade
E este pequeno orgulho de existir
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Que vai nascendo em quem não desistir
De ir dando quanto pode em qualidade,
Pois só assim se alcança a igualdade
E a alegria imensa de a fruir...
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Não desistas agora! Mais um passo
E um outro ainda. Nunca te detenhas
Que o teu maior troféu é o cansaço;
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Se lhe resistes, moverás montanhas...
Mas nunca esperes pelo meu abraço,
"Não te procurarei até que venhas"!
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Mª João Brito de Sousa
20.01.2022 - 22.45h
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