HOJE HÁ VAGAS! - Mª João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues
HOJE HÁ VAGAS!
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Coroa de Sonetos
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Mª João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues
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1
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No mundo dos versos nascidos de humanos
Descubro um poema que cheira a suor,
Que pode trincar-se, que fede a bolor,
Que treme de frio coberto de panos,
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Que pinga das bicas, que escorre dos canos
De esgoto da casa de um trabalhador
Que ostenta as mazelas sem qualquer pudor,
Que geme de dor, que desmente os enganos...
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No mundo dos versos dos homens reais
Se sonhos encontro, procuro bem mais
Do que fantasias com asas douradas
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E se por achá-lo todos vós me achais
Inconveniente ou rebelde demais,
Replico,"hoje há vagas"; portas arrombadas!
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Mª João Brito de Sousa
03.02.2022 - 15.45h
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2.
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"Replico "hoje há vagas", portas arrombadas!"
Eterno retorno: as salas vazias,
Paredes sem cor, janelas fechadas,
Imenso silêncio com palavras frias...
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Procuro pelos cantos. Onde estão as fadas?
Ou apenas há monstros para nos inspirar?
Encontro-te a ti, cantando baladas
Que me fazem rir, depois de chorar.
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Quero arrebatar-me da tua loucura
que atravessa o céu nesta noite escura
onde o chamamento é apenas som.
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Se somos diferentes na mesma leitura,
Se tanto ganhamos na sorte mais escura,
A vida é um sonho mas um sonho bom!
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Laurinda Rodrigues
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3
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"A vida é um sonho mas um sonho bom",
Quando se acredita, quando cá no fundo
Sabemos ter dedos pra moldar o mundo
E a vontade imensa de mudar-lhe o tom
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Que asas têm penas, não só de "crepon"
Os meus versos cubro quando del`s me inundo;
Por vezes recuso, lanço um NÃO rotundo
Aos que me acenderem luzes de Néon
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Quando um outro fogo me aquece as entranhas
E Simon dedica versos às montanhas
Enquanto Garfunkel faz vibrar as notas... *
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Quem escuta o silêncio dos que não se atrevem
A afrontar os grandes que tudo lhes devem?
Sorrirão as fadas aos das roupas rotas?
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Mª João Brito de Sousa
03.02.2022 - 18.25h
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* The Sound of Silence - Paul Simon/Art Garfunkel
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4.
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"Sorrirão as fadas aos das roupas rotas"?
Por dentro de tudo, que estranha visão:
Crateras na carne como Aljubarrotas
Ou regresso, em sonho, D. Sebastião?
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Me agarro às amarras que têm as frotas.
Navego sem norte. Regresso ao porão.
Aqui não te encontro nem sequer me notas
É o tal silêncio. Maga escuridão.
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Quem quiser saber o mistério denso
Que se avulta em mim quando te pertenço
Envolta nas sombras de um gesto parado...
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Pergunte aos desenhos escritos no lenço
Que vou oferecer-te e julgo que venço
Essa solidão que me evoca Fado.
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Laurinda Rodrigues
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5
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"Essa solidão que me evoca Fado"
Mas Fado não sendo, pode ser trincheira
Onde habita a Musa minha companheira
E nela a encontro (se acaso lhe agrado)
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Pois é caprichosa, há que ter cuidado!
Se vem de bom grado, toma a dianteira,
Escreve tão depressa que "vai de carreira"
C´o pouco que apenas tinha começado...
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Ela é sempre jovem, nunca teve idade,
E eu vou tropeçando na velocidade
Que ela impõe aos versos de que mais gostar
*
Nem Aljubarrota nem Sebastião
Podem ser mais fortes do que as musas são
Quando se decidem a poetizar...
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Mª João Brito de Sousa
03.02.2022 - 20.08h
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6.
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"Quando se decidem a poetisar",
Humanos caminham com outros p'la mão
Que, ao ser conscientes, fazem recordar
Como o sonho é vago e vaga a razão.
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No espelho da alma retratam a mão
Com linhas dispersas, que dão p'ra pensar,
Sobre este destino que é o nosso chão
Onde, sem escolher, temos de pisar.
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Cobertos de medo, preparam a fuga.
De olhos abertos (que o saber enxuga)
vão a caminhar para o fim da existência...
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Conhecem a voz de longe, que os suga,
Mas o som dos versos, que o vento madruga,
Será, certamente, a sua referência.
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Laurinda Rodrigues
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7
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"Será, certamente, a sua referência"
Tal como o será a vida que acolheram
E os passos que somam aos passos que deram,
Desde que esses passos marquem a cadência
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Porque aos passos dados soma-se a consciência
Do que vão perder e do que já perderam
E ganharam força (toda a que puderam)
Nos sons que se esmeram nessa mesma urgência...
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Se é velho, o guerreiro que andar não consegue,
Não será por isso que os passos renegue,
De outra forma avança pela mesma estrada
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E vai-se esquecendo da dor que o persegue;
Se a velhice pesa, que a Musa a carregue,
Que ela bem mais pode não podendo nada.
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Mª João Brito de Sousa
04.02.2022 - 11.15h
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8
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"Que ela bem mais pode não podendo nada"
Um nada que encobre o Todo da vida
Presa nos seus dedos na palma fechada
Que, em tempos de guerra, serve de guarida.
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Nessa luta inglória onde já foi ferida
mas sempre cantou a sombra, encarnada
De palavras doces mas sempre temida
Por quem não conhece pr'além da fachada...
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Retornemos ora, na luz e na paz!
Porque toda a idade mostra que é capaz
De tecer a arte e criar do Nada.
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E, em palcos humanos, em gesto tenaz,
Aceita o que é e não é capaz
Canta a despedida, cantando balada.
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Laurinda Rodrigues
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9
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"Canta a despedida, cantando balada"
E sempre seguro, dando o seu melhor,
Quer, enquanto vivo, ver que dão valor
Ao que é construído na sua empreitada
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E do pão cozido naquela fornada
Nascerão poemas com melhor sabor,
Que um travo de raiva traz outro de amor,
Fatia a fatia, dentada a dentada
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E se o gás é caro, se o arroz escasseia,
Se o feijão não cabe onde o poema ateia
Chamas tão fugazes que se desvanecem,
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Prefiro a modesta chama da candeia
Que, sendo real, toda me incendeia
Sempre que a aproximo dos fios que me tecem.
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Mª João Brito de Sousa
04.02.2022 - 13.50h
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10.
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"Sempre que a aproximo dos fios que me tecem",
Deixo que essa vela me encha de calor...
E as almas alheias, nesse gesto, aquecem
Relaxando o corpo à espera do amor.
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P'ra que tantos choros agora acontecem?
Não querem esperar que se acabe a dor?
Não sabes que a mente nossos erros tecem
Parecendo que são versos de amador?
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Posso dar-te pão, cozido na aldeia
Onde há forno aceso, ao ser lua cheia
e os lobos pressentem o cheiro a comer...
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Assim conjugadas em voz, numa teia,
Esperamos que alguém nos ouça ou nos leia,
Nos faça sentir, pensar ou viver.
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Laurinda Rodrigues
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11
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"Nos faça sentir, pensar ou viver"
Quem nada sentindo em viver pensasse
E em ventos de proa que a barca enfrentasse,
Pudesse algum sonho tomar forma e ser
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Já desmaia o dia num entardecer
Sem ter de aguardar por pintor que o pintasse
E o Sol que esmorece fica num impasse
Que a noite depressa virá resolver...
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Vão cozendo os versos que amassámos juntas
Feitos de incertezas, cheios de perguntas
Que ou terão resposta, ou nunca a terão
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Quando tudo pronto, será partilhado
Inteiro, um poema, bocado a bocado,
Que para poetas também isto é pão...
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Mª João Brito de Sousa
04.02.2022 - 17.45h
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12.
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"Que para poetas também isto é pão"
Cheiroso, macio, para regalar
Os olhos, a boca e o coração
de quem nossos versos queira partilhar.
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Depois, esvaídas com tanta paixão,
Olhamo-nos nuas sem véus a tapar
O que fez de nós um forte cordão
Que a força do tempo não pode quebrar.
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Somos atrevidas, rebeldes, profundas
Quando assim tecemos nossos versos juntas
E, sem pretensões, abrimos caminhos...
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Na estrada há veredas que são as perguntas
Mesmo que as respostas sejam desconjuntas
Ficamos felizes: criamos os ninhos.
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Laurinda Rodrigues
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13
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"Ficamos felizes: criamos os ninhos"
Onde haverá vagas para toda a gente
Quando esse futuro se tornar presente,
Depois de um passado crivado de espinhos
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Das mãos dos pisados, dos que estão sozinhos,
Dos muitos que lutam por algo diferente,
Nascerá um dia o que se pressente
Ser o mais humano dos nossos caminhos
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E enquanto isto escrevo, porque mais não posso,
Vai-te preparando que o poema nosso
Veio arrombar portas que estavam fechadas...
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Uma que arrombasse e que bom seria
Termos apostado nesta parceria
Que acolhe palavras rotas e suadas!
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Mª João Brito de Sousa
04.02.2022 - 29.50h
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14.
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"Que acolhe palavras rotas e suadas"
Em vírgulas, pontos, em linhas e espaços
Onde cabem risos, choros e abraços
E a filosofia de sábias mimadas.
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Tu teimas, insistes. Ficamos caladas.
Depois, só os gestos. Os gestos em traços
de provocações feitas de embaraços
que os outros perdoam por sermos aladas.
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Memória do tempo liberto da vida
Agora suspensa, agora perdida
Pelos desencantos, pelos desenganos...
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Por muito que esqueça nunca são esquecidas:
Todos são eternos, todas são queridas
"no mundo dos versos nascidos de humanos."
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Laurinda Rodrigues
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NOTA IMPORTANTE PARA A COMPREENSÃO DESTE LONGO TEXTO POÉTICO - O primeiro soneto desta Coroa foi inspirado no poema NÃO HÁ VAGAS, de Ferreira Gullar