GLOSANDO ARY DOS SANTOS
SONETO DE MAL AMAR
Invento-te recordo-te distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.
A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.
E as coisas que eu não disse? Que não digo:
Meu terraço de ausência meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.
Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.
Ary dos Santos, in 'O Sangue das Palavras'
SONETO DE MAL-LEMBRAR
"Invento-te recordo-te distorço"
Essa velha memória desgastada
Pelo tempo passado, pelo esforço,
Pela estrofe que passa, desgarrada.
"A palavra desejo incendiada";
Erro de paralaxe, ou óbvio escorço
Duma memória em versos recriada
Que é, da figura humana, apenas torso.
"E as coisas que não disse? Que não digo (:)"
Sobre as fomes de um pão que encontra abrigo
Em quadras e sextilhas (en)cantadas?
"Por ti me reconheço e contradigo"
Que andei de verso em verso, qual mendigo
Da esmola das canções que são rimadas.
Maria João Brito de Sousa - 18.01.2017 - 11.02
No dia do 33º aniversário da sua partida.