DESOLAÇÃO - Coroa de Sonetos -
DESOLAÇÃO
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Coroa de Sonetos
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Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues
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1.
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Choro quem parte e temo por quem fica;
Se a vida tem remédio, a morte não
E o mundo vai caindo em depressão,
Sem que se saiba tudo o que isso implica
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Já que ao que tudo ou quase tudo indica,
Pouco nos deixa, esta devastação
Pr`além do rasto de desolação
Que diante de nós se multiplica
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Como vírus que, entrando em mutação,
Corrói um mundo do qual não abdica
Ao devorar-lhe a carne feita pão.
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Lá longe, ouve-se um sino que repica
E uma voz que suplica a salvação
Na ilusão do que isso significa...
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Maria João Brito de Sousa - 03.03.2021 - 11.07h
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2.
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"Na ilusão do que isso significa"
percorro os calabouços da memória
tentando perceber de toda a história
o que substancialmente significa.
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Recordo aquela força compulsória
que a nossa vida, ao nascer, fabrica
em rejeições que em toda a alma fica
perpetuando a submissão de escória.
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Não! Não temos perdão em aceitar
que tais e tantos bichos tão fatais
tomem conta da perfeição da gente!
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Será que já esquecemos os arrais
que apontam aos humanos qual o cais
aonde aportará espécie diferente?
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Laurinda Rodrigues
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3.
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"Aonde aportará espécie diferente (?)",
Humana, sempre, e mais evoluída,
Mais justa para toda e qualquer vida
Que a não destrua quando lhe faz frente?
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No futuro, mas nunca de repente,
Que a pressa é inimiga da subida
E pode confundir-se se a saída
Estiver ainda longe do presente
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E meta por saída que o não era...
Por mim, confio na tenacidade
Com que renasce cada Primavera
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Tão segura na sua leviandade;
Quem ama a vida é da vida que espera
O doce fruto da maturidade.
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Maria João Brito de Sousa - 03.03.2021 - 17.03h
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4.
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"O doce fruto da maturidade"
tem o sabor da antiga profecia:
quanto mais velho mais sabedoria
se caminhaste na senda da verdade.
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Ela está dentro de ti e, com a idade,
podes rever, em consciência, a via
que te liberta da tensão vazia
para te preencher de felicidade.
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A felicidade é um sentir sereno
onde flui tua alma em tempo ameno
ou mesmo se a tormenta te atacou...
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Podes sentir-te docemente pleno
como sentiu Jesus, o Nazareno,
que, mesmo incompreendido, perdoou.
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Laurinda Rodrigues
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5.
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"Que, mesmo incompreendido, perdoou",
(creio que excptuando os vendilhões)
Aos homens em geral, ódio, traições
E até a quem à morte o condenou.
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Tão perfeita não fui - inda o não sou... -,
Nem tão boa e tão pródiga em perdões,
Mas cá me vou guiando por padrões
Que essa maturidade me doou
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E embora ande no fio de uma navalha,
Conheço muito bem a f`licidade;
Come e bebe comigo e nunca falha
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Quando lhe peço força de vontade,
Um poema mais belo, quando calha,
E a lucidez dos velhos-sem-idade.
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Maria João Brito de Sousa - 03.03.2021- 19.23h
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6.
"E a lucidez dos velhos-sem-idade"
não me venham dizer que é lucidez!
Talvez seja pedaços de saudade
daquele imenso génio português,
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Feito de sonho e força de vontade,
que fez frente ao vazio e à aridez,
buscando, em consciência, a placidez
de descobrir a luz, que o mar invade.
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Vamos perdendo aquilo, já conquistado,
que é sangue desse sangue, semeado
na genética de muitos invasores
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E, depois, numa síntese transformado
em ser diferente e sempre emancipado
de tantas turbulências e horrores.
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Laurinda Rodrigues
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7.
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"De tantas turbulências e horrores"
Se vai cobrindo esta desolação,
Que alguns perdem o norte ao coração
E a razão já viu dias melhores...
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A lucidez, porém, resiste às dores
E a todo o tipo de devastação;
Só mesmo a morte a verga se, à traição,
Lhe crava o letal ferro, entre estertores,
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E, às vezes, a demência também vence
A lucidez profunda conseguida
Por esse ou essa a quem ela pertence,
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Que a lucidez é graça garantida
A quem muito vivendo, muito pense
Sobre Si, sobre o Outro e sobre a Vida...
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Maria João Brito de Sousa - 04.03.2021 - 10.57h
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8.
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"Sobre Si, sobre o Outro e sobre a Vida..."
é pensamento que devora os dias,
coberto de temores e de agonias,
para que a morte não seja consentida.
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O corpo é uma história muito lida
nos sinais onde as horas são os guias
mas, nessas caminhadas tão vazias,
esquecemos que é a alma que convida
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a descobrir a Si, ao Outro, Todos
sem nunca desistir com os engodos
que aparecem na sombra do caminho...
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E, sempre navegando pelos lodos,
com paciência e com suaves modos,
não ficarás nem triste nem sozinho.
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Laurinda Rodrigues
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9.
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"Não ficarás nem triste nem sozinho"
Quando souberes que tudo o que viveste
Faz parte do que, em ti, reconheceste
Como vestido teu tecido em linho
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Por vezes com ternura e com carinho
E, outras, um bocadinho mais agreste,
Pois nem sempre o tecido que teceste
Teve a textura suave do teu ninho,
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Não, não concebo um` alma independente
Deste corpo de carne e sangue e ossos
E só me sei tecer enquanto gente.
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Ainda que me cubram de destroços,
É desse todo que me emerge, urgente,
A rebeldia que há nos velhos-moços.
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Maria João Brito de Sousa - 04.03.2021 - 13.36h
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10.
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"A rebeldia que há nos velhos-moços"
não se confunde com pura teimosia
que a falta de razão às vezes cria
para fugir à prisão dos calabouços.
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Mesmo com cordas presas aos pescoços
onde a voz, já cansada, desafia
quem inda possa ouvi-la muito fria
no momento final que a prende aos ossos,
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Façamos esse gesto de clemência
de dizer versos perante uma audiência
que, entretanto, fugiu de tão cansada
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E imploremos a Deus, numa deferência,
que nunca mais tenhamos consciência
de sermos, uns para os outros, quase nada.
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Laurinda Rodrigues
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11.
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"De sermos, uns para os outros, quase nada"
E, simultaneamente, tanto mais
Quanto mais nos sintamos desiguais
Na sintonia mal sincronizada
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Desta desolação quase assombrada
Das casas já sem portas nem umbrais
Porquanto pela porta já não sais
Se não depois de morta ou condenada.
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Exagero, bem sei... e no entanto,
É mesmo assim que o sente a maioria
Que vive aprisionada no seu canto
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Sem ter a bênção que é a poesia,
Sem estas asas de paixão e espanto,
Murchando à míngua de uma companhia.
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Maria João Brito de Sousa - 04.03.2021- 17.30h
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12.
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"Murchando à míngua de uma companhia"
estamos todos agora em reclusão
sem sentirmos do Outro mão-na-mão
que nos inspira os temas da poesia.
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Mas falar por falar, no dia a dia,
apenas por rotina ou compaixão
agrava esse sentir da solidão
que, já antes de agora, acontecia.
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Exorto cada um à dança e ao canto.
Exorto ao grito de prazer e espanto
porque a voz com expressão tem de se ouvir...
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E dentro de uma casa, num recanto,
deitem fora o papel que enxuga o pranto
e todos, todos juntos, vamos RIR.
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Laurinda Rodrigues
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13.
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"E todos, todos juntos, vamos RIR"
Pra construir algo mais belo e são
Sobre os destroços da desolação
Que como tudo o mais irá ruir
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Então, a solidão irá sumir,
A flor escondida vai brotar do chão,
Nas ruas vai dançar a multidão
E nessa noite ninguém vai dormir...
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Mas muito tempo ainda vai passar
Antes desta batalha estar vencida
E muito, muito ainda há que lutar
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Para podermos ter de novo a vida
Com a qual estamos todos a sonhar
No fim de uma batalha tão sofrida.
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Maria João Brito de Sousa - 04.03.2021 - 18.48h
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14.
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"No fim de uma batalha tão sofrida
nem vamos perceber o que acontece
aquilo que foi vivido não se esquece
mas pode ser um ponto de partida
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Para dar ao pesadelo a despedida
e paz ao coração, que bem merece,
no conforto do amor que o engrandece
sem ter de se afogar numa bebida.
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E, mesmo sem negar o que passou,
a tragédia que a tantos alcançou
numa dor que só a cruz explica,
*
Aceito humildemente o que ficou
e, na prece que essa cruz honrou,
"choro quem parte e temo por quem fica"
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Laurinda Rodrigues
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