ARTIMANHA - Coroa de Sonetos
ARTIMANHA
*
Coroa de Sonetos
*
Laurinda Rodrigues e Maria João Brito de Sousa
*
1
*
O mal faz-se sempre anunciar.
Às vezes, disfarçado, nem se nota.
Poeira venenosa envolve o ar
e um cheiro nauseabundo fica à solta.
*
Não há palavras, gestos ou imagens
que emudeçam, na alma, o medo insano
São sendas de pavor como paisagens
que atravessam a terra e o oceano.
*
Impõe-se a solidão. Ficarmos presos.
É essa a solução para estar ilesos
de um ataque fortuito que nos espreita...
*
Não vale a pena dizer "sim" ou "não":
tudo aquilo que se diz é sempre em vão,
se a confusão lançada é tão perfeita.
*
Laurinda Rodrigues
*
2
*
"Se a confusão lançada é tão perfeita"
Que aos mais sábios confunde e desatina,
Cremos, então, que o Mal está sempre à espreita
Atrás de cada porta, em cada esquina
*
São coisas de que a Manha se aproveita;
Bem sabemos que a Manha, essa ladina,
Se quer fazer passar por insuspeita
E aquilo que prescreve, nunca assina.
*
Mas passe a Arte a bem ou passe a mal,
Contorna os riscos e enfrenta o medo
Que a ameaça de forma desleal;
*
Abre as janelas de manhã bem cedo
Bebe do Sol a força universal,
Reduz o Mal a peças de brinquedo.
*
Maria João Brito de Sousa - 09.11.2020 - 12.29h
*
3
*
"Reduz o Mal a peças de brinquedo"
mas - cuidado! - que o sol é enganador:
faz de conta que é Pai e mete medo
quando os filhos lhe estragam o fulgor.
*
Mas, afinal, o sol é apenas estrela
entre tantas estrelas que há no céu
e, quando esta verdade se revela,
uma outra dimensão aconteceu.
*
Juntando as peças, que temos na memória,
vemos que "chefes-sóis" fizeram história
que lhes servem a eles, sem discussão...
*
E, usando o globalismo como lema,
garantem, no poder, o seu sistema,
impondo, sem destrinça, esse padrão.
*
Laurinda Rodrigues
*
4
*
"Impondo, sem destrinça, esse padrão"
Que a Maga-lua acorre a transformar;
Assim que o Sol se rende à escuridão
Impõe-lhe ela o seu manto de luar
*
E assim concede ao mundo a sedução
Que o Chefe-sol se nem lembrou de dar,
Quem sabe se por pura distracção,
Se por puro capricho de mandar...
*
Amo o Sol e concedo-lhe o perdão
(ou penso que o consigo perdoar...)
Porque me acende a imaginação,
*
Porque a todos se entrega sem cobrar,
Porque - confesso! - me enche de paixão
E porque, enfim, assumo; sou solar!
*
Maria João Brito de Sousa .
*
5.
*
"E porque, enfim, assumo; sou solar"
presa na rota do ciclo de estações,
mesmo, sem canto, encanto à luz lunar,
esquecendo que há, na lua, mutações.
*
Cresce a lua no céu, depois de prenhe
que o sol, na fase "nova", engravidou,
para correr o "quarto" e se despenhe
na "cheia" exibição que a culminou.
*
Podemos ser solares enquanto humanos
mas é como lunares que cultivamos
o caminho perfeito da união...
*
Nada no cosmo existe sem sentido
e é o olhar do poeta, destemido,
que faz, da lua e sol, inspiração.
*
Laurinda Rodrigues
*
6
*
"Que faz, da lua e sol, inspiração"
E que com Arte e Manha lhes dá voz
Porque Arte quer dizer rebelião
E Manha há sempre um pouco em todos nós.
*
Rebeldes, inventamos a paixão,
Manhosos, transformamos algo atroz
Num enredo ideal cuja ilusão
Nasce purpúrea da explosão de uns pós...
*
Triangulamos Terra, Sol e Lua,
Num passe de magia. A Arte, nua,
Por um momento veste os nossos mantos
*
Para, logo a seguir, mostrar-se crua;
Despindo os astros, muda-se em falua
E faz-se ao Mar, explorando outros encantos.
*
Maria João Brito de Sousa - 10.11.2020 - 12.54h
*
7
*
"E faz-se ao Mar, explorando outros encantos"
porque, se a Arte é arte, é a expressão
seja em poesia, dança, sons ou cantos
do tempo, que traduz a mutação.
*
E a mutação prevê-se nas estrelas
no para além deste planeta terra,
mesmo que tentem colocar-nos trelas
na desculpa de que Isto é uma guerra.
*
Seremos sábios, mas sábios disfarçados
de humildes servidores desnaturados,
que aceitaram nascer para mendigar...
*
E, enquanto os Reis solares clamam razão,
os pobres servidores vão dando a mão
prosseguindo a arte e manha de os calar.
*
Laurinda Rodrigues
*
8
*
"Prosseguindo a arte e manha de os calar"
Sempre que as ordens se tornam brutais,
Semeamos a flor que há-de brotar
Nos prados, nos canteiros, nos quintais
*
Da Terra inteira, do céu ou do mar
No qual nadam os peixes e os corais
Proliferam, ainda, sem parar;
Nada, pra si, será longe demais
*
Porque a Arte não cuida de barreiras
E há-de passar por todas as fronteiras
Mais forte a cada palmo que conquista.
*
Escapar-se-á por fendas e soleiras
Mimetizando as coisas costumeiras;
Ninguém pode impedir que ela subsista!
*
Maria João Brito de Sousa - 11.11.2020 - 19.24h
*
9
*
"Ninguém pode impedir que ela subsista"
mesmo vendo que a arte é maltratada
e não é com protestos que resista
a tanta confusão já instalada.
*
Na solidão imposta, versejamos
criando a ilusão que vale a pena...
Mas se, por mero acaso, fraquejamos
as imagens cruéis voltam à cena.
*
Atados ao visor dos aparelhos
que são agora os nossos novos espelhos
retratando o olhar da rendição,
*
talvez ainda sobreviva o sonho
de que este pesadelo tão medonho
se transforme num sonho de paixão.
*
Laurinda Rodrigues
*
10
*
"Se transforme num sonho de paixão"
O que hoje nos parece uma utopia
E a mais que condenada aspiração
De algum idealista em distonia
*
E surdo, face a esta distorção,
Ou cego, face a esta pandemia...
É o sonho, contudo, evolução
E a essa nenhum vírus contraria.
*
Com Arte e Manha enfim se concretiza
O sonho que ninguém desenraíza
Do ser humano que em si próprio o traz
*
E que de quase nada se improvisa
Quando sobre si mesmo profetisa
E acerta, pois de tudo ele é capaz!
*
Maria João Brito de Sousa - 11.11.2020 - 22.53h
*
11
*
"E acerta, pois de tudo ele é capaz":
salta barreiras com a mente adormecida
porque, na noite, o sonho dorme em paz
diferente da vigília consentida.
*
Das trevas do profundo inconsciente
compõe lembranças do aqui e agora
e, às vezes, quando o corpo está doente
a alma criadora ri e chora.
*
A confusão, que alastra, não entrava
que faças com teu sonho a tua lavra
numa terra de fértil energia...
*
Não fiques agarrada à voz macabra!
talvez seja o silêncio que nos abra
os sonhos mais proféticos da poesia.
*
Laurinda Rodrigues
*
12
*
"Os sonhos mais proféticos da poesia"
Nascem-me assim que acordo e fico alerta;
A Manha é pouca, mas a Arte cria
A partir de uma mente bem desperta
*
Que a toda a voz macabra repudia,
Nem a ouvindo que outra é descoberta
Nos tons cantantes de uma melodia
Que sobre mundo e vida se concerta.
*
É dum sossego desassossegado,
Talvez silêncio de pronto quebrado,
Que o verso nasce e depois se compõe.
*
Mas só em força nasce se acordado;
Se dorme, nasce tão desafinado
Que nem percebe ao certo o que propõe.
*
Maria João Brito de Sousa - 12.11.2020 - 11.35h
*
13.
"Que nem percebe ao certo o que propõe"
seguindo em linha a voz dos ditadores
que a todos nós a submissão impõe
para, depois, nos tratar como traidores.
*
Antigamente três "fs" suportavam
a perda, raiva, medo e frustração;
mas, agora, nem "fs" aguentavam
os espaços vazios da solidão.
*
Todos falam. Ninguém percebe nada.
Fazem-se regras apenas para fachada.
Mais tarde se verá quem vai mandar.
*
Pobre consolação em grande estilo!
Cantam melhor o galo, o melro, o grilo
que a gente entende, mesmo sem escutar.
*
Laurinda Rodrigues
*
14
*
"Que a gente entende, mesmo sem escutar"
Porque esses sabem sempre como e quando
E até entendem que comunicar
É bem mais que dar ordens de comando
*
Pois também será forma de exaltar
A própria vida que lhes vai pulsando
Nos pequeninos corpos, a vibrar,
Enquanto a Terra inteira vai girando
*
E eu, aqui sentada, vou glosando,
Apesar de uma mão me estar sangrando,
Os versos que me deste pra glosar.
*
Enquanto alguns de nós vão acordando,
Outros, sem Arte e Manha, vão tombando;
"O Mal faz-se sempre anunciar".
*
Maria João Brito de Sousa - 12.11.2020- 15.26h