AINDA GLOSANDO FLORBELA ESPANCA III
RENÚNCIA
A minha mocidade há muito pus
No tranquilo convento da tristeza;
Lá passa dias, noites, sempre presa,
Olhos fechados, magras mãos em cruz...
Lá fora, a Noite, Satanás, seduz!
Desdobra-se em requintes de Beleza...
E como um beijo ardente a Natureza...
A minha cela é como um rio de luz...
Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada!
Empalidece mais! E, resignada,
Prende os teus braços a uma cruz maior!
Gela ainda a mortalha que te encerra!
Enche a boca de cinzas e de terra
Ó minha mocidade toda em flor!
Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"
AFIRMAÇÃO
“A minha mocidade há muito pus”
No cantinho das coisas já passadas
Que guardo, dia a dia acumuladas,
Porque só a memória as reproduz...
“Lá fora, a noite, Satanás seduz!”
Mas eu que, renegando almas penadas,
Observo as gentes tristes e cansadas,
Deduzo cada medo que as traduz;
“Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada!”
- Só fecho os olhos quando, atordoada,
Possa o sono nublar-me a lucidez!
“Gela ainda a mortalha que te encerra!”
- E eu quero lá saber de quem me enterra,
Se morro por chegar a minha vez?!
Maria João Brito de Sousa – 12.07.2017 - 16.26h