ADAGIO PARA VELHOS SONETISTAS (e não só)- Mª João Brito de Sousa e Custódio Montes
ADAGIO
Para Velhos Sonetistas
e
Não Só
*
Coroa de Sonetos
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Mª João Brito de Sousa e Custódio Montes
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1.
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Caminhamos curvados pelas ruas
Geladas e brilhantes como espelhos,
Nós desgastados, nós que estamos velhos,
Nós cujos ossos ferem como puas...
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Cá vamos nós, trocando sóis e luas
Por veias que azularam nos artelhos
E se multiplicaram quais coelhos
Multiplicam no solo as tocas suas...
*
Tentamos proteger-nos do contágio,
Que este Janus* vai estando rigoroso
E nós chegámos ao mais alto estágio
*
Do Inverno da Vida, o mais penoso,
Que apenas nos concede um lento "Adagio"
Em vez de um "Presto" firme e vigoroso.
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Mª João Brito de Sousa
08.01.2024 - 16.47h
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2.
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“ Em vez dum “Presto” firme e vigoroso"
Que trouxe a juventude ao começar
Que agora vai embora sobre o mar,
Deus do ocaso, um velho langoroso
*
No começo o jardim era formoso
Com papoilas e rosas ao luar
Sol nascente e cantigas pelo ar
Agora um astro breu, velho e moroso
*
E vemos primaveras a florir
Jovens belas que passam mesmo ao lado
Com força no andar e no sorrir
*
E num banco um idoso ali sentado
Sem réstias de sonho no porvir
Como sol a deixar o povoado
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Custódio Montes
9.1.2024
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3.
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"Como sol a deixar o povoado"
Nos vamos, nós também, desvanecendo,
As mãos sobre os joelhos que, mordendo,
Nos trazem mais memórias do passado
*
E enquanto os nossos dedos no teclado
Ainda produtivos vão escrevendo,
Ao som do lento Adagio iremos tendo
Um Inverno mais suave e animado
*
Nenhum de nós conhece a hora exacta,
Só sabemos que aos poucos se aproxima
Sem que possamos adiar-lhe a data
*
Mas antes que essa data nos suprima
Vamos mostrar ao frio que nos maltrata
O tanto que este Adagio nos sublima!
*
Mª João Brito de Sousa
09.01.2024 - 11.00h
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4.
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“O tanto que este adágio nos sublima”
E também nos ajuda a ter cuidado
Na minha terra o tempo está gelado
Fico em Braga que há neve lá em cima
*
E para que esse frio não me oprima
Fico na minha “toca” resguardado
Agasalho-me bem agasalhado
Torneio deste modo tão mau clima
*
A vida que fazia não se faz
Temos que ter cuidado, tem que ser
Sair, andar na borga satisfaz
*
Mas cria-me problemas a valer
Gostava de aventuras em rapaz
Mas agora a aventura é o bom viver
*
Custódio Montes
9.1.2024
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5.
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"Mas agora a aventura é o bom viver"
E bem melhor cantar as nossas vidas
Que vão longas mas nada aborrecidas,
Embora muitos não o queiram crer
*
E ao ver-nos assim, a envelhecer,
Nos julguem pela vida já vencidos...
Mas sorrimos ainda! Os tempos idos
Passaram por nós dois sempre a correr
*
Deixando pouco mais do que as memórias
Que docemente agora recordamos
Entre tristezas e pequenas glórias...
*
Somos a soma do que conquistamos:
Se houve derrotas, houve mais vitórias,
E haverá futuro, se o sonhamos!
*
Mª João Brito de Sousa
09.01.2024 - 12.15h
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6.
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“E haverá futuro, se o sonhamos!”
Vida é isso mesmo: é arquitectar
Visitar jardins para os vislumbrar
E não os vendo, nós imaginamos
*
Sempre em frente, parados não ficamos
Ser-se poeta é ir até ao mar
Mas se não se for, basta imaginar
Um mundo novo e belo que criamos
*
Se nos cai o cabelo e nascem papos
O que nós escrevemos tem valor
Merecemos louvor e somos guapos
*
Que tão criativos, nós temos valor
Não somos velhos, velhos são os trapos
Ser-se poeta é ter vida e amor
*
Custódio Montes
91.2024
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7.
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"Ser-se poeta é ter vida e amor"
Tocando até ao fim o suave Adagio
E se é inevitável o naufrágio,
Naufraguemos com arte e com fulgor
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Que há sempre quem acabe bem pior
E venha a ser banido por sufrágio:
Alguém que trema a cada mau presságio
Em cada pedra encontra o Adamastor...
*
Não me assusta a velhice. O que me assusta
É não poder escrever, nem poetar,
E naufragar da forma mais injusta
*
Que um bom poeta possa imaginar...
É isso que me dói, que mais me custa:
Ser só vetusta não me irá calar!
*
Mª João Brito de Sousa
09.01.2024 - 15.35h
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8.
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“Ser só vetusta não me irá calar”
Que quem cala o que sabe é infiel
À sua natureza e ao seu papel
De dizer o que sente e de ensinar
*
Um mestre não fraqueja que parar
É pôr de lado a pena e o pincel
É não mostrar aos outros o cinzel
Com que se adorna a obra a poetar
*
O que interessa é ter o pensamento
E a mente em seu lugar e organizada
Que a obra se verá e o seu talento
*
Com enfeites e forma emalhetada
Que a arte quando existe é um portento
E a artista fica eterna e afamada
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Custódio Montes
9.1.2024
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9.
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"E a artista fica eterna e afamada"
Mas não será a fama que a fascina,
E sim poder voltar a ser menina
Por um instante e por coisa de nada
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Que às vezes basta um verso de uma quadra
Pra transportá-la, envolta em seda fina,
Aos tempos da criança cuja sina
A levaria a ir por esta estrada...
*
Mas voltemos de novo ao andamento
Do suave Adagio que nos guia os passos,
Suavíssimo e melódico, mas lento
*
A criar entre nós profundos laços,
Que toda a poesia é sentimento
E quase sempre acaba em dois abraços.
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Mª João Brito de Sousa
09.01.2024 - 20.45h
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10.
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“E quase sempre acaba em dois abraços”
Que o poema é alegria e amizade
Estimula o carinho e a vontade
Para juntos criarem fortes laços
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O poema preenche e ocupa espaços
Enfeita com fulgor, luz, claridade
Ornamenta os dizeres na cidade
E liga dois amores entre braços
*
O idoso imagina-se menino
As agruras transformam-se em poesia
E, com gáudio, encontra o seu destino
*
A tristeza é um mal que, por magia,
Nem sempre dura, ri, entoa um hino
E, como o adágio diz, vira alegria
*
Custódio Montes
10.1.2024
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11.
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"E, como o adágio diz, vira alegria"
Que estoutro Adagio tenta acompanhar,
Correndo, mas correndo devagar,
Mostrando o que lhe resta de energia...
*
Ao Presto não chegou, mas a harmonia
É tanta que parece suscitar
Um Allegro Vivace a culminar
A nossa inacabada sinfonia...
*
Seja o soneto o piano em que compomos
Este Adagio pra cordas. O violino
Virá depois contar tudo o que fomos
*
E ambos falarão sobre o destino...
Talvez nos caibam fadas, elfos, gnomos,
Ou mesmo o génio que coube a Aladino...
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Mª João Brito de Sousa
10.01.2024 - 12.20h
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12.
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“Ou mesmo o génio que coube a Aladino…”
Na lâmpada e no estro musical
Em andamento era genial
Com toque em dó menor de violino
*
Suave, em andamento muito fino
Trinava o seu acorde em arraial
Dançava todo o mundo e o maioral
E também badalava ao alto o sino
*
Nessa intensa harmonia e fulgor
Ficava alegre o povo com a gesta
E dava à sinfonia mais valor
*
Ficava a gente idosa bem mais lesta
Havia muitos beijos, muito amor
E toda a aldeia andava sempre em festa
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Custódio Montes
10.1.2024
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13
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"E toda a aldeia andava sempre em festa"
Sendo que nós não fomos excepção
E embora sem violino ou violão
Cantámos- e bem alto! - a nossa gesta
*
Alguns tocavam música mais lesta,
Houve até quem trouxesse acordeão:
Toda esta sinfonia era emoção
Porque este Adagio à comoção se presta
*
Soam agora as notas musicais
Das harpas melancólicas, chorosas,
Logo seguidas plo som dos metais
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Que sopram notas tão melodiosas
Que nos fascinam e até os pardais,
Enfeitiçados, pousam sobre as rosas.
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Mª João Brito de Sousa
10.01.2024 - 15.45h
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14.
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“Enfeitiçados, pousam sobre as rosas”
Que nós bem os ouvimos chilrear
Andamos nos jardins a passear
E vemos coisas lindas, valorosas
*
Que mesmo com passadas vagarosas
Com vista nós bem vemos ao olhar
Toda a beleza à volta a espelhar
Além de moças lindas e formosas
*
Idoso, mas ainda a espairecer
Avança, vai em frente, não construas
Altos muros ao nosso envelhecer
*
Verdade que se foram sóis e luas
Mas cantemos alegres sem dizer:
“Caminhamos curvados pelas ruas”
*
Custódio Montes
10.1.2024
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