Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Vai um cafezinho?
Fotografia de Luís Raimundo Rodrigues
*
À FLOR DO NOSSO ESPANTO
*
"Numa brisa soprada pelo vento",
Nas asas de uma pomba que esvoaça,
Deponho uma centelha - só! - da graça
Que às musas concedeu algum talento
*
E a minha que, privada de alimento,
Murchando se enrugara como passa,
Vai retomando, ao vê-la, a antiga traça
E de novo recobra algum alento
*
Voemos pois ainda que pousados
No maltratado chão dos nossos fados
Ou na magoada voz do nosso canto
*
Voemos tal e qual bichos alados
Sobre as montanhas ou rasando os prados
Que irão nascendo à flor do nosso espanto.
*
Mª João Brito de Sousa
13.12.2022 - 10.40h
***
Soneto concebido a partir do último verso do soneto "A Voar" do poeta Custódio Montes.
Leia aqui, por favor
Eu, depois do banhinho, fotografada pelo meu pai, 1952
*
UM LENÇOL DE ÁGUA PURA E LINHO CRU
*
É lençol de água pura e linho cru
Este amor que se expande e gratifica,
Que não tem voz, mas te trata por tu
E em ternura te eleva e multiplica
*
Tal qual nasce um menino e, todo nu,
Reduz a nada a imensa dor que implica
O parto, qual memória de baú
Que se revê quando já nada a explica...
*
Cobrimo-lo de panos pra que aqueça,
Amparamos-lhe a queda, se tropeça,
Tentamos dar-lhe tudo, nada tendo
*
E o mesmo fazemos, sem sabê-lo,
Se a mão nos obedece ao estranho apelo
De um verso que nos nasce e vai crescendo...
*
Maria João Brito de Sousa
Oeiras, Portugal
***
Fotografia de Mª João Brito de Sousa
*
Exorcismos? É por aqui, se faz favor.
Eu, com três anos, na varanda da casa da Rua Luiz de Camões, Algés
*
Por aqui, por favor
***
Eu, fotografada por Carlos Ricardo, 22.09.2023
*
GLOSANDO CARLOS FRAGATA II
*
MORAR EM TI
*
Não quero viver livre, não aceito,
Vou viver preso a ti, em ti morar,
Ser tua água pura, p’ra matar
Essa sede de amor que há no teu peito,
*
Quero ser o desejo satisfeito,
Quero ser a razão do teu cantar,
Quero ser esse brilho no olhar
Que me faz adorar esse teu jeito!...
*
Um jeito de menina já mulher,
Que merece viver felicidade
E será pouca, toda a que te der!
*
Quero ser o teu sol, tua verdade,
Quero ser tudo aquilo que puder,
Agora, amanhã, p’la eternidade!!!
*
Carlos Fragata
***
ETERNIDADE(S)
*
"Não quero viver livre, não aceito"
Esta incondicional libertação
Que assumo, sendo humana, ter defeito
Porque me amarra, ainda que à traição
*
"Quero ser o desejo satisfeito"
Daquilo em que acredito, feito acção
E não mera intenção de tê-lo feito
Quando me faltou gesto e sobrou mão...
*
"Um jeito de menina já mulher",
Recordo quando afasto, com saudade,
A imagem do que nunca mais vou ser...
*
"Quero ser o teu sol, tua verdade"!,
Dizia quando jovem, sem saber
Quão breve era esta nossa eternidade.
*
Maria João Brito de Sousa
16.09.2016 - 12.18h
***
Fotografia de Luís R. Rodrigues
*
SONETO A UMA DOR
QUE VEM DO DESERTO
*
"Como é triste e mata este deserto em volta"
Quando a dor se solta porque se desata
Da peia inexacta da minha revolta
E segue sem escolta, com espada de prata
*
E escudo de lata, lança desenvolta...
Na reviravolta tudo desbarata;
Solta-se em cascata livre e desenvolta
Inunda-me absolta de ver-se inundada
*
E eu, sem mãos de fada, não posso detê-la,
Não posso prendê-la nem por um momento
Que o meu pensamento está cativo dela...
*
Fosse eu barco à vela veloz como o vento,
Mas sou muito lento, mais lento do que ela
Que ainda que bela me inveja o talento...
*
Mª João Brito de Sousa
22.09.2023 - 14.30h
***
Soneto em verso hendecassilábico com rima entrançada - interna e final - criado a partir de um verso de Luís Raimundo Rodrigues
Fotografia gentilmente cedida por Carlos Ricardo
*
SONETO DO MAR
*
Serei, na (in)completude dos gentios,
Quem de ti fez o berço original,
Quem te encheu da grandeza natural
De invernos, dos agrestes, e de estios;
*
Sou quem te enfeita de ilhas e baixios,
Quem te escava esse leito de água e sal,
Quem te cobre de bancos de coral,
Quem te devolve a água dos seus rios
*
E sou quem te deu essa imensidão
Das coisas que mal sabes desvendar,
Quem cresce ao renovar-te e quem te fez,
*
Sou, a Vontade - sempre em gestação -
De me expandir, de me multiplicar
E a força que adivinhas mas não vês!
*
Maria João Brito de Sousa
23.01.2008
***
In Poeta Porque Deus Quer
Autores Editora, 2009
***
UM PASSEIO COM CUSTÓDIO MONTES
*
Coroa de Sonetos
*
1.
*
Ao andar, a tristeza vai-se embora
Que vejo lindas moças a passar
Também cravos e rosas ao olhar
E vem-me uma alegria acolhedora
*
Desenvolvo, ao andar, força motora
Que me faz ir mais longe a caminhar
Fortalecem-se os músculos a andar
Sentindo-me melhor a cada hora
*
Vejo cravos e rosas, raparigas
Que me inspiram no verso e nas cantigas
Ao olhar o seu rosto e o seu seio
*
Vejam bem o que ganho, pois remoço
Ao andar sem cansaço e pouco esforço
E a ver coisas lindas no passeio
*
Custódio Montes
19.9.2023
***
2.
*
"E a ver coisa lindas no passeio"
Apesar dos tropeços e dos sustos,
Sou tentada a espreitar entre os arbustos
De onde emana um dulcíssimo gorgeio
*
Um melro distraído em seu recreio
Consigo vislumbrar sem grandes custos
E sinto-me a mais brava dentre os justos
Por ter vencido incómodo e receio!
*
Correm crianças junto do canteiro
Nestes cinquenta metros do carreiro
Que vai da minha porta ao cafezinho
*
Mas não fora a bengala que me ampara,
Nem esse quase nada eu avançara
Que é cada vez mais duro o meu caminho...
*
Mª João Brito de Sousa
19.09.2023 - 16.00h
***
3.
*
“Que é cada vez mais duro o meu caminho”
Porque já avançou a minha idade
E mesmo que eu siga com vontade
As pernas já me cansam um pouquinho
*
Mas para mostrar força ao vizinho
Na rua vou com mais velocidade
Levanto o peito impante com vaidade
E para não sofrer vou com jeitinho
*
Faço por parecer que sou um jovem
E para que os que passem o comprovem
Eu ando com um ritmo bem veloz
*
Mas quando chego a casa já cansado
Deito-me a descansar um bom bocado
E só mostro a fraqueza quando a sós
*
Custódio Montes
19.9.2023
***
4.
*
"E só mostro a fraqueza quando a sós"
Me encontro com meus versos... mas sem Musa
Porque ela odeia ver-me assim, contusa,
E ainda que me tolha dor atroz
*
Monta no seu cavalo e vai veloz,
Sem qu`rer sequer ouvir a minha escusa,
Pra onde o corpo meu se me recusa
A tentar alcançar, ficando nós
*
Eu e a dor que maldigo e me maldiz,
Achacada talvez, não infeliz,
Que sempre acabo assim, nem mal, nem bem:
*
Acostumada à dor já eu vou estando
E se uma musa parte cavalgando,
Outra qualquer ressurge e me sustém!
*
Mª João Brito de Sousa
19.09.2023- 20.00h
***
5.
*
“Outra qualquer ressurge e me sustém”
E assim eu vou andando devagar
Sento-me na parede, volto a andar
A musa às vezes vai atrás também
*
Por norma inspiração ela contém
Pensa, escreve, corrige sem parar
Eu tomo as minhas notas e a olhar
Caminho mais um pouco e o verso vem
*
O tempo passa, anda mais depressa
A musa vai-se embora e regressa
Outras vezes amua e vai embora
*
Quando chego a casa já nem sei
Se o verso se compôs e se rimei
Ou se o poema vem ou se demora
*
Custódio Montes
20.9.2023
***
6.
*
"Ou se o poema vem ou se demora",
Eis o que a toda a hora me espicaça
A alma, sob a velha carapaça
Do corpo estropiado no qual mora
*
E enquanto envelhecendo, hora após hora,
Esta estranha incerteza me trespassa,
Vou-me enchendo de rugas porque a traça
Se faz pagar bem cara... mas valora!
*
Passeio - mais por dentro que por fora-
E nasce em mim a fauna e cresce a flora
Que o tempo em mim semeia enquanto passa
*
E quanto mais o tempo me decora,
Mais este corpo gasta e det`riora,
Mas mais a minha Musa aumenta em graça!
*
Mª João Brito de Sousa
29.09.2023 - 14.30h
***
7.
*
“Mas mais a minha musa aumenta em graça!”
Porque tem lá por dentro o pensamento
Que extravasa cá fora de momento
*
E apanha com élan tudo o que passa
Depois juntando a musa à sua raça
Envolve o seu poema com talento
*
Que a gente sabe bem ser um portento
E cobre-o de beleza e assim o enlaça
*
Andar é bem preciso para mim
Porque se não andasse julgo, enfim,
Que a minha musa nunca me ajudava
*
A dar um lindo enfeite ao meu poema
E para o escrever era um dilema
Porque estando eu parado ela amuava
*
Custódio Montes
20.9.2023
***
8.
*
"Porque estando eu parado ela amuava"
Tal como a minha amua se eu, teimando,
Me esforço para andar e tropeçando
Caio e nem sequer saio de onde estava...
*
Porém, não sendo dela mera escrava,
Posso bem dispensá-la... ao meu comando
Irá meu coração, mesmo mancando,
Cobrar da Musa o que ela me cobrava
*
Se o cavalo-de-fogo é meu também,
Se somos filhas de uma mesma mãe
E de um só corpo estamos dependentes
*
Somos apenas uma, tu e eu...
Sofrerá uma o que outra já sofreu,
Chorando um dia e, noutro, sorridentes.
*
Mª João Brito de Sousa
20.09.2023 - 20.20h
***
9.
*
“Chorando um dia e, noutro, sorridentes”
Porque a alma e a musa em unidade
Andam, mesmo paradas, na cidade
Trabalham como moiras permanentes
*
Não descansam e até mesmo doentes
Andam a magicar, pois, na verdade,
Não param no seu reino a majestade
De musa e alma tão eloquentes
*
Mas eu transporto a musa a passear
Que ela segue contente a me inspirar
E se a sinto cansada então descanso
*
Sentamo-nos num banco e encostados
Fica-nos livre a mente e abraçados
Mais facilmente a ideia eu alcanço
*
Custódio Montes
20.92023
***
10.
*
"Mais facilmente a ideia eu alcanço",
Mais esta tresloucada e velha Musa
Correndo se me escapa e me recusa
Do verso o suave e pendular balanço...
*
Ainda agora, qual touro não manso,
Tentou mudar de ritmo... e eu, confusa,
Vi-me aflita, lhe juro, que ela abusa
E não segue o compasso em que eu avanço!
*
Uma única vez me aconteceu,
Vê-la muito mais forte do que eu,
Mudar-me um hemistíquio todo inteiro,
*
Impor-me as cinco sílabas sonoras
E deixar-me um vazio que durou horas
Nas teclas e na tinta do tinteiro!
*
Mª João Brito de Sousa
20.09.2023 - 22.30h
***
11.
*
“Nas teclas e na tinta do tinteiro”
Ficou-me o pensamento a fraquejar
A ideia foi-se embora e a baralhar
A palavra ficou sem paradeiro
*
Andei a procurá-la o dia inteiro
Foi-se a manhã e a tarde a procurar
A noite apareceu e ao acordar
Encontrei-a bem junto ao travesseiro
*
Falei com ela, amei-a, fiz-lhe festas
Ficou muito feliz, limou arestas
Levou-me à porta, então, da poesia
*
Palavra harmoniosa, obrigado
Encontrei o teu rumo e encontrado
Deixaste-me inundado de alegria
*
Custódio Montes
20.9.2023
***
12.
*
"Deixaste-me inundado de alegria"
O coração que quase me parou
Quando senti que alguém me sequestrou
O dom de dominar a melodia
*
E já só me restava o que saía,
Qual disco velho que outro alguém riscou...
Sim, meu amigo, o susto já passou
E serenou-me a mão que então tremia,
*
Mas não me sinto ainda bem segura
De nunca mais viver esta loucura,
Esta impotência face à poesia
*
Este não conhecer-me em quem eu era
E a sensação de ser eterna a espera
A que me condenou esta avaria!
*
Mª João Brito de Sousa
21.09.2023 - 00.00h
***
13.
*
“A que me condenou esta avaria!”
Mas andar faz-me bem ao coração
Alivia-me a mente e a tensão
E vejo cravos, rosas, harmonia
*
Inspira-me a vereda que me guia
A ver e encontrar o pontilhão
Que atravesso com toda a atenção
E chego logo ao cais da poesia
*
Salto dentro, onde encontro a palavra
E vou lançando a ideia e sigo a lavra
Com harmonia, gosto e com carinho
*
Descanso, sinto cheiros, vejo flores
E penso, nessa altura, nos amores
Fazendo-lhes poemas no caminho
*
Custódio Montes
21.9.2023
***
14.
*
"Fazendo-lhes poemas no caminho"
Está o nosso passeio quase findo
E devo-lhe dizer que foi bem lindo,
Embora me pareça, a mim, curtinho...
*
Ainda que eu não tenha um passo asinho
E me atrapalhe para o ir seguindo...
Outro virá e eu esperarei sorrindo
Que da próxima vez não vá sozinho
*
Porque embora tolhida e vagarosa
Quero poder ver uma ou outra rosa
Dessas que brotam da terra onde mora
*
E passo a passo, ainda que me assuste,
Sei que o que diz não é nenhum embuste:
"Ao andar a tristeza vai-se embora"!
*
Mª João Brito de Sousa
21.09.2023 - 13.15h
***
Na fotografia, eu com a minha saudosa Ficus elastica, nos alvores deste século
SILÊNCIO!
*
Silêncio, que um poema vai ser escrito
Ainda que a palavra esteja gasta,
Esvaziada, esmagada como pasta,
Sangue pisado de um verbo proscrito,
*
Mescla magoada que em versos debito,
Mosto de um vinho sem nome nem casta...
Calai-vos por favor, que isto me basta
E em nome deste nada me credito,
*
Pois se de alma dorida, atormentada,
Peço silêncio em troca deste nada,
Ouvi-me, que este nada é quanto tenho...
*
Silêncio, que a palavra deslumbrada
Só em silêncio pode ser gestada;
Dela renasço e nela me despenho!
*
Maria João Brito de Sousa
18.09.2020 - 11.25h
***
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.