SONETILHO - Reedição
por aqui para ler o sonetilho
ou por aqui para entrar na desgarrada de quadras populares
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
por aqui para ler o sonetilho
ou por aqui para entrar na desgarrada de quadras populares
OS MERCADORES DE ILUSÕES
*
Trazemos sedas, linhos, algodões
Pr`aconchegar melhor quem sinta frio,
E espaço e sonhos nas embarcações
Que dentro em pouco irão fazer-se ao rio
*
Rumo ao país das grandes tentações
Que em vós despontam quando finda o Estio
E, quando não encontram soluções,
Vos matam de tristeza ou de fastio...
*
É pegar ou largar! Nas barcas cabem
O medo e as frustrações dos que não sabem
O que é um sonho, ou como construí-lo:
*
Apressai-vos que a hora é de partida,
Não percais tempo nem na despedida,
Que os instantes, aqui, pagam-se ao quilo!
*
Maria João Brito de Sousa
30.08.2018 – 12.44h
***
Tela de Hierorymus Bosch
*
Para quem possa estar interessado, hoje há desgarrada
de quadras populares no José da Xã
Por aqui, se faz favor
Imagem retirada daqui
*
OZYMANDIAS
*
I met a traveller from an antique land
Who said:—Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. Near them on the sand,
Half sunk, a shatter'd visage lies, whose frown
*
And wrinkled lip and sneer of cold command
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamp'd on these lifeless things,
The hand that mock'd them and the heart that fed.
*
And on the pedestal these words appear:
"My name is Ozymandias, king of kings:
Look on my works, ye mighty, and despair!"
*
Nothing beside remains: round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare,
The lone and level sands stretch far away.
*
Percy Bysshe Shelley, 1818
***
OZYMANDIAS
*
Falou-me um viajante de terra ancestral
De duas pétreas pernas do dorso amputadas,
Erguidas no deserto. Perto do local,
Emerge subterrado, de feições lascadas,
*
Um arrogante rosto, mostrando em verdade,
Que o escultor conhecera bem suas paixões
Pois persiste na pedra morta e sem idade
A mão que lhe moldou carácter e feições.
*
Lê-se no pedestal que dela sobressai:
"Meu nome é Ozymandias, o maior dos reis:
Olhai-me, ó poderosos, e desesperai!"
*
Nada restou, porém, senão decrepitude
E junto das ruínas não encontrareis
Mais do que areia infinda e muda quietude.
***
Mª João Brito de Sousa, Portugal
*
Tradução livre em soneto dodecassilábico não alexandrino
***
NÓS, POETAS
*
Aos falsos magos, aos falsos profetas
E ao servidor do abjecto deus dinheiro
Não daremos ouvidos! Nós, poetas,
Seguimos outro rumo, outro roteiro
*
Podemos ser brejeiros ou ascetas,
Um ser gregário e, outro, caminheiro,
Nenhum de nós, porém, persegue as metas
De quem quer subjugar o mundo inteiro
*
Se, dentre nós, algum morde esse anzol,
Poeta não será, tenho a certeza!
Poeta de verdade é como o Sol
*
Pode manchá-lo, um dia, uma incerteza,
Mas logo voltará como um farol
A dar-se inteiro à Terra, à Natureza!
***
Mª João Brito de Sousa
21.08.2023 - 13.00h
***
SONETO DE POUCAS FALAS
*
Com palavras banais, muito banais,
Se tecem tramas quase indecifráveis
E com elas se ditam os finais
Que não consideramos mais prováveis
*
Por vezes são curtinhas, mas letais
Quando aparentam ser irrecusáveis
E quero crer que, mesmo acidentais,
Nos trazem risco e dor incomportáveis
*
Pois numa só palavra há riscos tais,
Tão grandes, de tal forma intoleráveis
Que é bem melhor eu nem explicar-vos mais,
*
Não vá, por conta de uns imponderáveis,
Dizendo pouco, dizer-vos demais
Sobre o que penso de alguns intocáveis.
*
Maria João Brito de Sousa
13.07.2018- 1142h
***
LANTERNA QUE ILUMINA
*
Coroa de Sonetos
***
Maria João Brito de Sousa e Laurinda Rodrigues
*
1
*
Conceitos nossos, os de bem e mal,
Tão naturais quanto água cristalina
E tão inevitáveis quanto o sal
Da rocha que no mar o dissemina.
*
Nossos porque nos é fundamental
Explicar espantos que a vida determina
Desde o tempo remoto e ancestral
Em que o medo nasceu. Quem o domina?
*
Demos e deuses no mesmo bornal;
Era a razão ainda uma menina
Que a cada descoberta acidental
*
Crescia no saber. Esmorece a sina
Na explicação do mundo e do real;
A razão é lanterna que ilumina!
*
Maria João Brito de Sousa - 14.10.2020 - 15.38h
***
2
*
"A razão é lanterna que ilumina"
quando os sentidos exigem perceber
o porquê de nascer e de ter sina
que traçou o caminho a percorrer.
*
Acaso tens "razão" naquilo que sentes
nas emoções que explodem no momento?
Percebes a "razão" ao ver que mentes
se te impunhas verdade a cem por cento?
*
Negaste a todo o corpo ter "razão"
quando adoece, num súbito apagão
do teu desejo "racional" de ter bem-estar?
*
Olha ao fundo de ti e está lá tudo
quando sorris, ou ris, ou estás sisudo,
mesmo quando a lanterna se apagar.
*
Laurinda Rodrigues
***
3
*
"Mesmo quando a lanterna se apagar"
Terei estado segura que a razão
Me acompanhou nas horas de sonhar
Ou de saber conter a frustração,
*
Sempre que navegando neste mar
Soube enfrentar a negra escuridão
E, vez por outra, até soube amansar
As mais brutais rajadas de um tufão...
*
A pulsão que aqui vês canalizada,
Por nós foi decidida e avaliada:
Com ela conto quando aqui me atrevo
*
Que ela me ampara ainda que estragada
(desde que eu nunca minta... ou quase nada),
E tudo o que escrevi, a ela o devo.
*
Maria João Brito de Sousa - 15.10.2020 - 15.30h
*
4
*
"E tudo o que escrevi a ela o devo!"
Lá vai uma mentira! Não faz mal!
Porque a tua poesia é o relevo
de seres intensidade emocional:
*
Pois a cultura, que subjaz ao verso,
nasceu, cresceu e acabou adulta
num balanço vital e controverso
no seio de uma Família que a exulta.
*
Podes, por isso, invocar "razões"
para esquecer o gosto das paixões
que vibram nas palavras da poesia...
*
Mas eu, enquanto Irmã sem ser de peito,
vou vigiando da "razão" o jeito
de, "sem razão" de ser, ser fantasia.
*
Laurinda Rodrigues
***
5
*
"De "sem razão" de ser, ser fantasia"
Que é algo que jamais a antagoniza
Porque a razão é livre e também cria
Quando em verso se faz e se harmoniza
*
Com toda a emoção que em si cabia...
Sabes bem que a razão idealiza
Que pega na meada, a tece, a fia
E não desiste até que a finaliza!
*
Porque as separas e dizes que minto
Se eu digo (quase) tudo quanto sinto
E as trago equilibradas no meu peito?
*
Vemos as coisas de um modo distinto:
Vês-me perdida nalgum labirinto
Só por trazer congénito defeito?
*
Maria João Brito de Sousa - 15.10.2020 - 16.36h
***
6
*
"Só por trazer congénito defeito"
é uma frase que à "razão" reduz:
quem julga quem e afirma desse jeito
talvez não veja para além da luz.
*
A lua às vezes tem forma de corcunda
quando está prestes a ser a lua cheia
e alguém ousa dizer que ela se afunda
numa figura estranha que a desfeia?
*
Pensar o mundo por meio da razão,
rejeitando o oculto, o secreto, a ilusão
que só a alma vê, pressente, reconhece,
*
é como caminhar apenas num sentido
e nunca acreditar que vale ter vivido
sem a razão dizer aquilo que acontece.
*
Laurinda Rodrigues
***
7
*
"Sem a razão dizer aquilo que acontece"
Só serve a quem por tudo se confunde;
Provavelmente a alma desconhece,
Não sabe que a razão na luz se funde.
*
A esse fio, nem toda a gente o tece,
Por muito que a meada em luz abunde:
Há-de haver sempre um nó que o fio empece
E que fuja ao confronto que contunde.
*
Sei que muito bem sabes que te entendo,
Mas saberás da luz que eu vou tecendo
Dentro desta minha alma racional?
*
Pega então na meada que te estendo
E diz-me, sem rodeios, se estás vendo
O despontar do velo original?
*
Maria João Brito de Sousa - 15.10.2020 - 20.02h
*
8
*
"O despontar do velo original"
vi-o nascer no campo entre o rebanho
e não há outra luz que se lhe iguale
nem força visceral do seu tamanho.
*
Não tem de ter "razão" nessa energia
que intuitivamente o alimenta:
agasalha no peito a sua cria
e é o grupo coeso que o sustenta.
*
Se os humanos pudessem entender
que são corpos de luz a florescer,
calando muitas vezes a "razão",
*
talvez não fossem escravos da tristeza
nem estivessem tão cegos para a beleza
e ouvissem mais a voz do coração.
Laurinda Rodrigues
***
9
*
"E ouvissem mais a voz do coração"
Que nunca desprezei porque a mantenho
Bem livre e de mãos dadas co`a razão
Que também viu nascer esse rebanho.
*
Sentes mais do que eu? Creio que não,
Que igualmente sentimos... mas é estranho
Que separes razão e coração
Quando ambos devem ter igual tamanho.
*
Se bem equilibrados, movem mundos,
Mergulham juntos nos lagos profundos,
Juntos sobem ao céu que os não limita
*
E lado a lado serão mais fecundos;
Aquecerão até os vagabundos
Que andem por estradas de alcatrão e brita.
*
Maia João Brito de Sousa - 16.10.2020 - 11.33h
***
10.
*
"Que andem por estradas de alcatrão e brita"
serão uns vagabundos bem saudáveis
porque esta reclusão até irrita
e torna os pacifistas vulneráveis.
*
É difícil manter a coesão
entre aquilo que se pensa e o que se sente:
os estímulos bons para o coração
não são aceites pela razão da gente.
*
Assim, mesmo que queira partilhar
a união do sentir e do pensar,
reconheço que não passa de teoria...
*
E prefiro brincar, sem preconceito,
aos opostos entre cabeça e peito
e fazer, dessa luta, alegoria.
*
Laurinda Rodrigues
***
11
*
"E fazer dessa luta alegoria"
Também eu posso e faço certamente
Mas não me digas que é só teoria
O que em prática ponho honestamente.
*
Manter os dois coesos na harmonia
Pode bem conseguir-se facilmente;
Se assim não fosse eu não conseguiria
Escrever, sorrir, amar, seguir em frente...
*
Opostos, sim, mas só na brincadeira,
Que esta união é mesmo verdadeira
E se um desaguisado acontecer
*
Virá a ansiedade, bem certeira,
Desesperar-nos à sua maneira:
Ambos terão muitíssimo a perder!
*
Maria João Brito de Sousa - 16.10.2020 - 15.14h
***
12
*
"Ambos terão muitíssimo a perder":
mas "perder" qual dos dois é que avalia?
lá estamos novamente a submeter
ao juízo, à razão, a tirania.
*
Eu não fechei as portas à "razão"
mas a ela prefiro o termo "mente"
que tem a ver com a compreensão
de tudo o que se pensa e que se sente.
*
Pode ser só semântica a falar
mas confesso que gosto de brincar
às "coroas" sem princesas ou rainhas...
*
E, depois, no final, apoteose
em que duas mulheres fazem osmose
a entoar, em coro, as ladainhas.
*
Laurinda Rodrigues
***
13
*
"A entoar, em coro, as ladainhas"
De encanto musical e singular,
Pois também eu deponho as tais rainhas
E me entrego à justiça popular
*
Que estas estrofes, sendo muito minhas,
São escritas para quem delas gostar
E pra quem saiba ler nas entrelinhas
Do tanto que por cá se ousou cantar!
*
Quanto ao juízo... para que é preciso
Se é o "todo" que sofre o prejuízo
Do desentendimento do dueto?
*
Seja o meu coração forte e conciso,
Rebente-me a razão em espanto e riso
Que a mente já me fecha este terceto
*
Maria João Brito de Sousa - 16.10.2020 - 18.50h
***
14
*
"Que a mente já me fecha este terceto"
numa união perfeita com o oposto:
são o sol e a lua num dueto
da lua nova que escondeu o rosto.
*
Simbologia que a poesia tece
em melodia feita de palavras:
tem sentido no céu o que acontece
sincronia com a terra que tu lavras.
*
É serena a paisagem deste outono
evoca o inconsciente no seu sono
que obriga a ver o real e o irreal...
*
Afinal, somos nós que fabricamos
todos aqueles arquétipos que invocamos:
"conceitos nossos os de bem e mal".
*
Laurinda Rodrigues
***
Próxima paragem: Oeiras!
Espreite aqui
ESPADA DE POETA III
*
Desmonta a máquina infernal do medo,
Constrói um escudo contra os teus temores
Que mesmo sendo tarde é sempre cedo
Pra deter esta máquina de horrores
*
Abre os olhos, desvenda o seu segredo,
Descobre os mais pequenos pormenores
Da trama em que se tece este degredo
Que não há dor pior do que estas dores!
*
Mas se o corpo dorido to recusa,
Passa o teu testemunho à tua Musa
Que fará da palavra o instrumento
*
Com que irás combater o medo insano...
Poeta, se o combate é desumano,
Que seja a tua espada o teu talento!
*
Mª João Brito de Sousa
15.08.2023 - 16.40h
***
Gravura de Pablo Picasso
*
MUSA
*
Emerge a Musa e esparge a água salgada
Que lhe moldava as ondas dos cabelos
Na areia onde, não estando, estou sentada
Desenrolando os fios dos meus novelos.
*
Já se retira, a musa, mas do nada
Em que pude pensar que pude vê-los,
Emerge um verso, um só, que, extasiada,
Vislumbro ao som de acordes muito belos.
*
Que Musa é esta musa imaginada,
Que traz consigo acordes tão singelos
E mos oferta assim, de mão-beijada?
*
Decifrá-los, não sei, só sei escrevê-los...
Ah, não transcreva a nota em pauta errada
A mão que lhe estendi pra recebê-los!
*
Maria João Brito de Sousa – 10.07.2018
In "...Até a Neve Chorará Num Dia Quente..."
EUEDITO, 2018
***
RENDIÇÃO
*
Vem, camarada, vem
render-me neste sonho de beleza!
Vem olhar doutro modo a natureza
e cantá-la também!
*
Ergue o teu coração como ninguém;
Fala doutro luar, doutra pureza;
Tens outra humanidade, outra certeza:
Leva a chama da vida mais além!
*
Até onde podia, caminhei.
Vi a lama da terra que pisei,
e cobri-a de versos e de espanto
*
Mas, se o facho é maior na tua mão,
vem camarada irmão,
erguer sobre os meus versos o teu canto.
*
Miguel Torga
***
Ergui sobre os teus versos o meu canto
Mas não te rendo os sonhos de beleza
Que não terão, os meus, essa grandeza
Que o mundo galvaniza em puro espanto
*
Mas à força de ansiá-lo tanto, tanto
Quanto o pobre quer pão pra pôr na mesa,
Tentei manter uma candeia acesa
Sobre o canteiro em que os meus sonhos planto
*
Mas quis fazer bem mais que o que podia:
Entre realidade e fantasia
Tentei equilibrar-me sem tombar
*
E sobre a chama ardente da candeia
Quis cozinhar poemas para a ceia
Que não comi porque os deixei queimar...
*
Mª João Brito de Sousa
13.08.2023 - 23.00h
***
O poema RENDIÇÃO, de Miguel Torga, foi retirado do blog "O Cheiro da Ilha". Obrigada, Maria.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.