Maria João Brito de Sousa
PUDESSE EU SER O MAR *
Pudesse eu ser o mar em que navega
A minha Musa errática e distante,
Ou no mar naufragar seguindo avante,
Alcançar quanto a Musa me não nega... *
Pudesse eu ver, conquanto estando cega,
Ao longe a minha Musa navegante
E estando surda ouvir o som cantante
Da partitura que hoje se me nega *
Mas, vendo, nem sinal da Musa vejo
E, ouvindo, tudo o que oiço é o meu Tejo
A perder-se no mar onde eu, perdida, *
Tento avistar ou Musa, ou partitura,
E nada encontro, tanta é a lonjura,
Tal a imensidão do mar da Vida... *
Mª João Brito de Sousa
20.10.2022 - 12.00h *** ***
publicado às 12:07
Maria João Brito de Sousa
Imagem retirada daqui
A MENTIRA *
Levo à bigorna o ferro incandescente
Da palavra mentira. A fundição
Que a fez chegar ao ponto de fusão
Tornou-a numa massa incandescente *
Mas nem fundida se torna inocente
Pois veste a capa da contradição
E insiste em iludir-nos a razão
Ao afirmar sentir o que não sente *
Que sempre que a mentira se agiganta
E deixa de ser pouca pra ser tanta
Que alastra e contamina a Terra inteira *
Não há fogo, nem malho, nem bigorna
Que a possam anular, que ela retorna
E consegue passar por verdadeira. *
Mª João Brito de Sousa
19.10.2022 - 10.30h ***
publicado às 10:44
Maria João Brito de Sousa
DESENCONTROS *
Dormias nos meus braços fatigados
E, hoje, não me vês, não me conheces,
Não juntas os meus fios aos fios que teces,
Nem há lugar pra mim nos teus cuidados *
É tarde, eu sei, pra redimir pecados
Ou pra saber se tens quanto mereces
E o que me dirias se pudesses
Relevar preconceitos recalcados *
Mas se te move o mesmo que me move,
Segue em frente, não esperes que te prove
Que me sinto por fim realizada *
Pois também para mim o tempo é pouco
E o mundo, minha filha, anda tão louco
Que tudo diz saber sem saber nada. *
Mª João Brito de Sousa
In A CEIA DO POETA
Inédito ***
publicado às 10:26
Maria João Brito de Sousa
Pormenor de mural de Diego Rivera
FOME(S) II *
Se tens fome do pão que ao rico sobra,
A força da razão está do teu lado
Quando acusas traído o resultado
De tudo o que é produto de mão de obra *
E se, do que criaste, outrem te cobra
O fruto inteiro ou o maior bocado
E a ti te deixa pobre e esfomeado
Certo de que te cala e que te dobra *
Mal sabe que te entrega a força toda,
Que essa força em ti cresce e se denoda
Para acender-se em chama renovada *
Porquanto se agiganta, alastra em roda,
Incendeia-se toda e mais te açoda
Quando do que estuou lhe sobra um nada. *
Mª João Brito de Sousa
In A CEIA DO POETA
Inédito
***
publicado às 10:32
Maria João Brito de Sousa
SUSPENSÃO *
Negaram-me as razões pra ter razão
Sem qualquer atenção ao que não vendo
Não posso deduzir de uma equação
Que me não diz se a tenho, ou se a vou tendo... *
E tendo mil razões para a tensão
Que essa equação gerar, sempre em crescendo,
Garanto não saber se há solução
Pra tudo quanto tento ir resolvendo... *
Mas eis que surge um verso em suspensão
Na revolta que engulo e vou retendo
Pra dela desviar toda a atenção *
E logo desse verso me suspendo
Suspendendo também a frustração,
Já que a um só compasso então me prendo.
*
Mª João Brito de Sousa
In A CEIA DO POETA
Inédito
***
publicado às 12:20
Maria João Brito de Sousa
Por aqui , se faz favor
publicado às 13:57
Maria João Brito de Sousa
FUSÃO *
Nas águas do meu rio, no ponto exacto
Em que o mar num abraço o recebeu
Me espelho e nesse amplexo me retrato
E sou muito mais rio do que sou eu *
Mas sou também pinheiro, erva do mato,
Rochedo, alga marinha, azul do céu,
Vento que rodopia em desacato,
Molécula de ar puro, haste que ardeu... *
Na terra em que nasci, se me relato
No que em mim nasce e no que em mim morreu
Ou no mais que de meu guarde em recato *
Qual mastro vertical ou qual troféu,
É nessa (con)fusão que emulo o gato
Que morre a defender um chão que é seu.
*
Mª João Brito de Sousa
In A Ceia do Poeta
Inédito
publicado às 10:16
Maria João Brito de Sousa
E SE? II *
E se em vez de eu ser eu fosse ninguém
Esta que reproduz, que engendra e escreve
Ou se antes de quem sou fosse eu tão leve
Quanto o ar que respiro e me sustém? *
Na decadência do meu corpo, mãe,
Se a chama da vontade se me atreve
A consumir-me mais do que o que deve
E se engendra a partir do que nem tem *
Talvez na persistência dessa chama
Resida eu mesma e tudo o que em mim clama
Por quanto desse fogo ousar nascer *
Ou mesmo no poema quando emana
Do fel de cada dia da semana
E se faz voz da voz que me couber. *
Mª João Brito de Sousa
In A Ceia do Poeta
Inédito ***
publicado às 10:31
Maria João Brito de Sousa
Por aqui , se faz favor
publicado às 10:10
Maria João Brito de Sousa
ASAS DE AREIA *
Dos meus antigos sonhos de menina,
Recordo a tempestade dos sentidos
A fustigar-me o corpo, em tempos idos,
Como se amor nascera em cada esquina *
Por ti fui, na verdade, peregrina,
Cobri-me de paixão, vesti vestidos
Que prometiam gozos desmedidos
A essa minha essência feminina *
Enredada na teia que teci,
Tentei perder-me em ti, fiz-me sereia,
Ou Ícaro-mulher ardendo em brasas *
E ao tombar na praia é que entendi
Que as asas que moldara eram da areia
Com que as penas se moldam. Nunca as asas. *
Mª João Brito de Sousa
03.03.08 - 07.05h ***
publicado às 10:28