Maria João Brito de Sousa
Varina e Pescador, 1918, óleo sobre madeira
de José de Brito (1855–1946). Coleção particular
***
CONVERSA ENTRE DOIS SONETISTAS *
Coroa de Sonetos *
Custódio Montes e Mª João Brito de Sousa *
1. *
O barco vai ao largo a navegar
Leva dentro os seus sonhos em viagem
Mostra-nos a beleza da paisagem
Que circunda esta praia junto ao mar *
Espero que ele volte que ao chegar
Vou sondar qual o sonho e a mensagem
Que deixou ou que teve na passagem
Para nele a seguir eu embarcar *
Hei-de ir onde ele for…à ré me ponho
Sigo a rota que teve no seu sonho
Indo além nessa rota outra vez *
Para quê? Vou dizer: assim abarco
Os sonhos que na rota teve o barco
E terei esses sonhos eu talvez *
Custódio Montes
10.8.2022
***
2. *
"E terei esses sonhos eu talvez",
Ou guardarei os meus noutro porão
Que um bote a remos, feito galeão,
Aguarda nesse porto a sua vez *
De ir ao mar e voltar, mês após mês,
E há nesse bote a absurda compulsão
De enfrentar e vencer um furacão
Apesar dessa sua pequenez... *
Quisera eu ir aos remos desse bote
Inda que só glosando alheio mote
E embora alheada e já sem garra *
Não pudesse movê-lo um metro, não...
Faltam-me, agora, a força e a paixão
E assim não sou formiga... nem cigarra! *
Mª João Brito de Sousa
20.08.2022 - 12.50h ***
3. *
“E assim não sou formiga …nem cigarra”
Mas terei meu trabalho a fazer
No barco o meu ego a crescer
Desde o mar largo até chegar à barra *
Vestido bem de leve, de cimarra,
Na praia a ver o barco aparecer
E à volta nuvens brancas - que prazer-
Ouvindo o som nas cordas da guitarra *
Areia branca, luz pela chegada
Nos braços que me estende a minha amada
Na hora em que aporto do meu mar *
Tormentas lá se foram já passaram
Os sonhos que eu tive e que ficaram
Aumentam o meu gosto de a amar *
Custodio Montes
20.08.2022 ***
4. *
"Aumentam o meu gosto de a amar"
Enquanto eu me procuro em desespero
Que já mal sei quem sou ou o que quero
Da bela barca em que me faço ao mar... *
Não estou dorida mas prefiro estar
Bem mais magoada mantendo o meu esmero
A estar assim sem dor, nem destempero,
Nem Musa que me valha onde eu falhar... *
Entro e saio da Barca, feita tonta
E nestas voltas nunca mais `tou pronta
Pra me fazer ao mar que em mim havia: *
Não sei onde perdi os velhos remos,
Nem onde fica o mar que ambos sabemos
Que à Musa e só à Musa pertencia... *
Mª João Brito de Sousa
20.08.2022 - 16.19h *** 5. *
“Que à musa e só à musa pertencia”
Mas que eu igualmente procurava
Para ver se lá dentro encontrava
O sonho que a pensar tanto queria *
Então ondas saltei que o mar fazia
E no redemoinho que ondulava
A musa para mim de lá olhava
Fiquei cheio de amor e de alegria *
E disse: musa amiga, anda cá
Inspira-me, agora, anda lá
Permite que eu acabe só mais esta *
Modesta poesia que eu prometo
Que quando acabar este soneto
Descansas porque eu tenho uma festa *
Custódio Montes
20.8.2022 ***
6. *
"Descansas porque eu tenho uma festa"
Maior que qualquer outra que conheças,
Que acaba exactamente onde começas
E só se esgota quando nada resta *
Das mil e uma coisas que lhe empresta
Esta (ir)realidade em que tropeças
Quando nós duas andamos a meças
Enquanto equilibradas numa aresta... *
Sendo eu um pouco tu, tu serás eu,
Trarás contigo um pouco do que é meu
E, vice-versa, também de teu trago *
Este dom de escrever como quem canta,
De tecer mantos, de "pintar a manta"
E de compor soneto em verso mago. *
Mª João Brito de Sousa
20.08.2022 - 20.35h ***
7. *
“E de compor soneto em verso mago”
Que encanta a ave rara que esvoaça
E que admirada olha e com graça
Enquanto esse poema aqui eu trago *
A seca transformou quase em lago
Esta grande albufeira de água escassa
Que era a inspiração de quem cá passa
E agora trouxe à musa grande estrago *
O barco passa lento e até encalha
Mas lá se vai remando e não me falha
O remo que me ajuda até à foz *
A festa terminou e vou dormir
Ao acordar então hei-de aqui vir
Para que este soneto ganhe voz *
Custódio Montes
21.8.2022 ***
8. *
"Para que este soneto ganhe voz"
E a Musa não se vá de novo embora
Também a minha voz lhe empresto agora,
Voz que foi feiticeira, há tempo, em Oz *
E que agora se foi, deixando a sós
Aquela em que morou, mas já não mora...
Tentei reinventá-la na demora,
Mas não me resta dela mais que uns pós... *
Contudo, a Barca espera e faz-se tarde
E eu que nunca fora assim, cobarde,
Salto para o convés, pego nos remos *
E consigo avançar um palmo ou dois...
O resto ficará para depois
Que, por ora, isto é tudo quanto temos. *
Mª João Brito de Sousa
21.08.2022 - 11.35h
*** 9. *
“Que, por ora, isto é tudo quanto temos”
E muito é o que leva já o bote
Com ricas prendas idas no seu lote
E outras que hão-de ir pelo que lemos *
A musa por lá anda que bem vemos
Só quem não queira ver e que não note
Poemas com beleza e alto dote
É que em vez de ver musa vê somenos *
O barco ao fazer esta viagem
Voltará com mais força e coragem
E ao chegar ao cais volta a partir *
Com estes viajantes sem ter medo
O seu percurso encanta por tão ledo
E vai querer andar a ir e vir *
Custódio Montes
21.8.2022 ***
10. *
"E vai querer andar a ir e vir"
Que é esse o seu destino, a sua sorte,
Que ora rumando a Sul, ora pra Norte
Levará no porão quanto eu sentir *
Menos do que isto não lhe irei pedir
E ainda que sem Musa menos forte,
Eu própria me encarrego do transporte
De alguns dos versos prontos pra florir *
A Barca avança agora livremente,
Sem grande esforço, ao sabor da corrente,
Quase como se a Musa fosse ao leme *
E, no entanto, a Musa continua
Escondida em parte incerta, muda e crua:
A ninguém obedece e a nada teme. *
Mª João Brito de Sousa
21.08.2022 - 15.00h ***
11. *
“A ninguém obedece e nada teme”
Isso é porque ninguém lhe mete medo
Mas talvez alguém saiba um segredo
Para a obrigar mesmo a ir ao leme *
E digo mais, talvez ela até reme
Se se vir envolvida num enredo
Que a faça ver perigo que bem cedo
Lançará mão ao remo em caso extreme *
Não pode ela fazer só o que quer
Tem que dar ao poeta o que fazer
E perder esse jeito, essa mania *
A musa para ter nossa atenção
Tem que nos dar a força, a inspiração
Porque sem musa acaba a poesia *
Custódio Montes
21.8.2022 ***
12. *
"Porque sem musa acaba a poesia"
E sem ela decerto morrerei,
Terei de impor à Musa a minha lei
Se não quiser morrer triste e vazia... *
Ela é, porém, rebelde e tão vadia
Que juro que não posso - ou que não sei -
Mantê-la no cantinho onde a guardei
Ao dar-lhe o coração por garantia *
Sei que ela existe e que é parte de mim,
Que vai viver comigo até ao fim,
Mas que só faz aquilo que ela quer *
E se o resto de mim estiver doente
Ela se afasta triste e descontente
Pra mostrar que deixou de em mim caber. *
Mª João Brito de Sousa
21.08.2022 - 22.13h ***
13. *
“Pra mostrar que deixou de em mim caber”
E abandona o meu barco a navegar
Sem sonhos em que possa divagar
Nem sequer os do barco conhecer *
Ó musa não me traias, anda ver
Os segredos que andam neste mar
Vem comigo, anda lá, vamos zarpar
Sobre as ondas para sonhos poder ter *
Eu e tu muita coisa realizamos
Abraçados enquanto navegamos
E vais ver que escolhemos lindo tema *
Tu inspiras-me a mim e eu escrevo
Uma coisa bem linda e de relevo
Eu e tu só nós dois e um poema *
Custódio Montes
22.8.2022 ***
14. *
"Eu e tu só nós dois e um poema"
Pra que o naufrágio seja protelado
E deixe o barco de estar encalhado
Na mais deserta praia do fonema *
Que o teu barco de versos jamais tema
A vastidão de um mar nunca explorado
Porquanto navegá-lo é o seu fado,
E num fado não cabe um só dilema *
Vá, barco, faz-te ao mar tempestuoso:
Não temas o Inverno rigoroso,
Nem o mais forte vento que soprar! *
Isto lhe digo, prevendo a recusa
Mas, a dado momento, diz-me a Musa:
"O barco vai ao largo a navegar"! *
Mª João Brito de Sousa
22.08.2022 - 10.40h ***
Imagem - Trabalho de meu bisavô, José de Brito, retirado do blogue A Matéria do Tempo
publicado às 11:32