Maria João Brito de Sousa
Imagem retirada daqui
BENS (IM)PRÓPIOS *
Tenho uma gata, cactos e uma fonte
Que me concede uns versos transparentes
Nascidos muito além do horizonte
Do consenso das coisas pertinentes. *
Estendem-se, esses meus versos, como ponte
Entre quem sou e os demais viventes
Sem que um único espinho me amedronte;
Gata, cactos e eu, somos valentes! *
Surge a flauta de Pã tangendo notas
Que ecoam nas memórias mais remotas
Da fonte de onde os versos vão jorrando *
Gata, cactos e eu. Cem mil sentidos
Vibrando atentos aos sons emitidos;
Vão-se os versos por mil multiplicando. *
Maria João Brito de Sousa - 31.10.2020 - 12.29h
publicado às 12:33
Maria João Brito de Sousa
FAGULHA *
Concentro-me no verso. O corpo inteiro
Impõe-me a desistência pois reclama
Essa concentração que, feita chama,
O transforma em poeta aventureiro. *
Desta vez, vence o corpo, o carcereiro
Que dorido, infectado, cai na cama;
Venceu porque cedeu. Sem barro ou lama
Nem um verso floresce no canteiro. *
Porém, das suas cinzas apagadas
Solta-se a derradeira rebeldia
De uma fagulha dessas mais ousadas *
Que se evola do corpo que dormia
E se apressa a juntar-se às mais ramadas
Da árvore em que nasce a poesia. *
Maria joão Brito de Sousa - 30.10.2020 - 13.57h
Imagem - "Sick Woman" de Jan Havickszoon Steen, retirada daqui
publicado às 13:58
Maria João Brito de Sousa
lER AQUI, SE QUISER TER A BONDADE
publicado às 15:16
Maria João Brito de Sousa
ESTRANHOS AFECTOS *
Como entender afectos que se escondem
Por detrás de biocos virtuais
Que quando convocados não respondem
E se negam a dar quaisquer sinais? *
Por mais que nos vigiem, que nos rondem,
Podemos lá saber quem são ou quais
As mil razões que fazem com que sondem
As nossas livres mentes racionais? *
Não nos bastava a PIDE e, em directo,
Os velhos "hackers" de trazer por casa?
Ou também esses vêm "com afecto" *
Espiar os nossos livres golpes de asa
E através das paredes de concreto
Sugar de um tecto quanto dele extravasa? *
Maria João Brito de Sousa - 28.10.2020 - 15.17h
publicado às 15:24
Maria João Brito de Sousa
JANGADA III *
Teimosamente eleva o frágil mastro
E mais teimosamente segue em frente
A poética jangada, a transparente
Insurreição do poeta contra o astro. *
De pouco se sustenta e, por arrasto,
Transporta o verso. Os poemas, em semente,
Ora tombam no mar, ora na gente,
Mas não perde a jangada força ou lastro. *
Não busca mais um cais, que o cais que traz
É já porto e destino derradeiro
De coisa que a si própria se refaz *
Depois de ter cruzado o mundo inteiro
Sempre a sonhar um dia ser capaz
De vir a naufragar qual marinheiro. *
Maria João Brito de Sousa - 27.10.2020 - 12.08h *
Ao meu avô, António de Sousa
Gravura de capa da autoria de Alice Brito de Sousa, minha avó
publicado às 12:44
Maria João Brito de Sousa
Imagem retirada daqui, via Google
TEMPO PERDIDO *
De ti me despedi há tanto tempo
Que não me lembro bem se eras real,
Se eras como estes versos que hoje invento
Quando adentro este mar de espanto e sal. *
Se um lamento me ocorre, não lamento
O afastamento agreste e essencial;
Tudo foi brusco e tudo foi tão lento
Quanto uma tela imensa e surreal. *
Enquanto assim vivia, soçobrava;
Vulcão não era. Morria na lava
Que em mim mantinha oculta, sufocada. *
Tenho uma vaga ideia de ter sido
Prisioneira de mim. Tempo perdido,
Tempo de que hoje guardo um quase nada. *
Maria João Brito de Sousa - 26.10.2020 - 13.04 h
publicado às 13:15
Maria João Brito de Sousa
A partir de um verso/mote do poeta Joaquim Pereira Marques
Tenha a bondade de ler aqui
publicado às 14:26
Maria João Brito de Sousa
Imagem retirada daqui
SENTIDA/MENTE *
Se semanticamente o sentimento
Sempre se divorcia da razão
Sei que indossociáveis ambos são
No que toca a alegria e sofrimento. *
Se penso em separá-los, mal o tento
De pronto é consumada essa união;
Não age a mente sem que o coração
Em reacção cambie o batimento. *
Já Damásio mostrou ser ilusão
Desfazer um tão estável casamento;
Não é viável a separação *
Mesmo que, às vezes, surja um pé-de-vento
Que é fruto da fecunda interacção
Entre um que é sopro e outro que é sustento. *
Maria João Brito de Sousa - 23.10.2020 - 14.01h
publicado às 12:13
Maria João Brito de Sousa
UM POEMETO QUE NEM COZINHEI *
Um poemeto suave, açucarado,
Candidamente de si próprio rindo
Resfolegando enquanto vai subindo,
Cantarolando se de asas dotado, *
Chorando, se de riso despojado,
E quando bem disposto del`fruindo,
Subitamente vai-se construindo
Perdidamente em cima do teclado. *
Se é sólido, se é líquido ou gasoso
Ou se de puro plasma, nunca o sei
Que estando del`suspensa, o caprichoso *
Só quando pronto diz que o condensei
Num punhado de rimas tão cremoso
Quanto este doce que não cozinhei. *
Maria João Brito de Sousa - 23.10.2020 - 22.00h
publicado às 23:08
Maria João Brito de Sousa
Gravura de Bartolomeu Cid dos Santos
*
OS LICANTROPOCAPITALISTAS *
Já não há paciência pra doidos varridos
Nem mesmo vestidos de oiro e de inocência,
Há é grande urgência em vê-los despidos
Dos seus aguerridos véus de prepotência! *
Quando de incoerência surgem travestidos,
Dão fortes rugidos, clamam transparência...
De alguma inocência pensam estar munidos;
Dizem-se traídos, tudo é maledicência. *
Não tendo consciência, mostram-se raivosos,
Soltam rancorosos uivos de histeria;
Eis a frontaria dos tais poderosos *
Muito ruidosos, mas sem mais valia
Que a duma hierarquia que os torna vaidosos,
Gulosos, ciosos da própria avaria! *
Maria João Brito de Sousa - 22.10.2020 - 20.39h *
Imagem retirada de PRAÇA DO BOCAGE
publicado às 21:28