Maria João Brito de Sousa
GATILHOS ***
COROA DE SONETOS ***
Helena Teresa Ruas Reis e Maria João Brito de Sousa ***
1 *
Não apontes gatilhos para os céus
Que o pássaro que voa é também teu.
Não sabes porque voa, nem sei eu,
Mas deixa-o voar, até ver Deus… *
À mosca pequenina não a mates,
Enxota-a p’la janela com cautela,
Se existe, haverá quem a use a ela.
P’lo incómodo que dá é que lhe bates? *
Humano ou ser-humano, afinal qu’ és?
Bicho racional… por que razão?
Por ter inteligência, coração? *
À natureza julgas a teus pés,
Que só para ti é tudo o que vês!
Cuidar dela tem eco em teus porquês? *
Helena Teresa Ruas Reis - 16/10/2020 ***
2 *
"Cuidar dela tem eco em teus porquês(?)",
Ou tens empedernido o coração
E não sabes amar nem o que vês?
Não saberás, então o que é razão! *
Um sem a outra, ou um de cada vez,
Não saberão cumprir sua função;
Coração sem razão será talvez,
Um ógão que traz malformação... *
Cuidado, nunca apertes um gatilho
Por muito tentador que seja o brilho
Do troféu que do tiro possa vir *
E tem também cuidado c`o rastilho
Não venhas a arranjar algum sarilho;
Quando activada, a bomba irá explodir. *
Maria João Brito de Sousa - 16.10.2020 - 14.47h ***
3 *
“Quando activada a bomba irá explodir”
E o pobre coração, sem ter razão,
Se vê num descompasso, a decair,
Que o peito sem um pleito é já prisão. *
Enferruja o gatilho e se desarma!
Fibrilhação sem fé, desordenada,
Cá dentro despoleta como uma arma
Um rastilho que explode. Fica o nada. *
Que resta da manhã em seu esplendor
Se nada vês, tolhido já de dor
Tu que ias ainda agora tão lançado. *
Mais vale sossegar desse furor,
Sentir que ter cuidado é amor!
Mais vale sossegar bem sossegado. *
Helena Teresa Ruas Reis - 16/10/2020 - 20.24h *
4 *
"Mais vale sossegar bem sossegado"
E amainar um pouco esse alvoroço
De correr como um tonto apaixonado;
- Senhora, bem sabeis que nada posso *
Contra este meu pulsar descompassado,
Que sempre me apaixono como um moço!
- Ah, coração, que ficas destroçado
E que a mim me transformas num destroço! *
- Que hei-de fazer, senhora, se estou vivo
E se da poesia estou cativo
Por mor de um "fogo que arde sem se ver"? 1) *
- Corre então, coração. Não mais te privo
Desse amor que te aperta como um crivo;
És o gatilho que me irá perder!
*
Maria João Brito de Sousa - 16.10.2020 - 21.02 h *
1) Alusão ao soneto "Amor é Fogo que Arde sem se Ver" de Luiz Vaz de Camões. ***
5 *
“És o gatilho que me irá perder”
N’ aquela triste e leda madrugada
Em que, querendo, já não possa ver
Nem decorrer do dia nem noitada. *
Oh, aves do meu voo p’ra viver
Levai-me! Levantai-me dessa estrada!
Lá do alto tudo posso conhecer,
A águia guerreira ou a cigarra. *
Hei-de ver todo o mundo num começo,
À bela natureza que estremeço,
Ao planar com as asas da aventura. *
Se de novo te usar, ó terra, peço:
Que seja eu perdoada, se mereço,
Mas não mais te darei qualquer tortura. *
Helena Teresa Ruas Reis - 17/10/2020 - 10,18 h ***
6 *
"Mas não mais te darei qualquer tortura"
Disseste, engatilhado coração;
Sei bem que essa intenção é franca e pura,
Mas sabes tu fugir duma paixão *
Se és como fruta que não está madura,
Se vais pulsando em louca incontenção,
Se sobre mim exerces ditadura
E, sem razão, me privas da razão? *
Terás o monopólio da loucura?
Serás senhor da tua própria cura,
Ou escravo dessa eterna frustração? *
Gatilho és... e à beira da ruptura
Com o tempo que, assim, pouco te dura;
Não tarda, acabarás na tal explosão! *
Maria João Brito de Sousa - 17.10.2020 - 10.59h
***
7 *
“Não tarda, acabarás na tal explosão”
Bem como esse planeta já cansado.
Inconsequente e pobre coração,
Tu sempre serás meu apaixonado! *
A ciência é vã como ilusão…
Um só impulso vence o mais letrado.
Pensar que estás em mim é perdição,
Pois és somente um músculo alheado. *
Engatilhar-me-ei? Digo que não!
Dei tempo ao tempo, sou nova estação,
Passei calor e o frio mais gelado. *
Em voos, não temi, cruzei trovão,
Contigo padeci, pássaro irmão,
Assim, hoje me sinto renovado. *
Helena Teresa Ruas Reis - 17/10/2020 - 22,09 h ***
8 *
"Assim hoje me sinto renovado"
Mas se não fosse a Ciência reconheço
Que há muito que estaria condenado;
Dela estou dependente e pago o preço * Que um músculo serei mas, se parado,
Tudo pára comigo. E recomeço...
À ciência devo este pulsar descompassado
Menos mau que a paragem que não esqueço. *
E o longo vôo no qual me despeço
Do muito ou pouco que de mim conheço
E do tanto que amei demasiado. *
Mais do que isto não posso, nem mereço;
Nasci, cresci... estou gasto e já cansado
De impulsionar um sangue velho e espesso. *
Maria João Brito de Sousa - 18.10.2020 - 11.08h
***
9 *
“De impulsionar um sangue velho e espesso”,
Das veias entupir com inclemência?
Tudo isso viraria pelo avesso
Se no vício usasse de prudência. *
Terei de dar-lhe um novo recomeço
Ou nem me salvará a providência…
Coragem (!) ou desmaio e desfaleço
À míngua de alento e apetência. *
Como terá um músculo indulgência
Como há-de ‘inda usar de sapiência
Em meio ao sobressalto e ao tropeço? *
Pois digo-lhe: Sou eu, mesmo em demência,
Quem buscará salvá-lo em abrangência.
P’lo lema que adoptei, não desfaleço! *
Helena Teresa Ruas Reis - 18/10/2020 - 17,25 h *** 10 *
"P`lo lema que adoptei, não desfaleço(!)"
Mas engatilha o SAAFs o meu pulsar
Congénito, certeiro e sem apreço
Pelo que eu decidir, ou não, tomar. *
Sou um ser racional e tudo meço
Mas do que em mim trazia ao despontar
Ninguém me perguntou se tal começo
Estaria, ou não, disposta a enfrentar. *
Lá trouxe, engatilhado, este defeito
Que não se manifesta só no peito,
Mas todo o corpo deixa em tal mau estado *
Que só se for tratado com preceito
Vai deixando viver quem está sujeito
Ao defeito que trouxe engatilhado *
Maria João Brito de Sousa - 18.10.2020 - 18.15h
***
11 *
“Ao defeito que trouxe engatilhado”
Sem para tal ser perdido ou ser achado,
Feia a doença e feio o nome dado
Como se fosse fruto de pecado, *
A toda a natureza que se expressa
Com um tiro zangado que arremessa
Ao local onde atinja bem depressa
Aquele alvo, de culpa não confessa, *
Respondo, que não pode interferir
Esse mesmo que irias atingir.
Pode somente, como bem o sabes, *
Fazer-te ter vontade, ultrapassar,
Querer ainda assim retaliar
E será bem possível que te SAAFS… *
Helena Teresa Ruas Reis - 18/10/2020 - 22,30 h *
12 *
"E será bem possível que te SAAFS",
E que, com sorte, vivas uns aninhos
Lucidamente, sem cometer gafes,
Sem que troques os ovos pelos ninhos *
Ainda que, por vezes, tu agrafes
Desalinhadamente uns papelinhos
E que ao lavar dois pratos tu te estafes
Tanto quanto em escalada aos Capelinhos... *
Repara, engatilhado coração,
Que ambos vamos na mesma direcção;
Eu não vivo sem ti e tu, sem mim, *
Não serves pra ninguém. Fosses tu são!
Mas furado e depois cerzido à mão...
Nem para doação serves, assim! *
Maria João Brito de Sousa - 19.10.2020 - 11.28h ***
13 *
“Nem para doação serves, assim!”
E já que és meu, vamos disfrutar.
Se foi pela natureza que aqui vim,
De ti e também dela vou cuidar. *
Perdoa que te estafe só um pouco...
Voando até Paris vou viajar.
Irás à Torre Eiffel quase em sufoco
Nos versos do soneto eu hei-de amar! *
De lá de cima o Mundo. Uma vertigem…
O receio que a tudo nos infringem
Dará visão magnânima da vida. *
Nos versos dirimindo o medo virgem,
Mais alto que montanha as rimas cingem
A força de vontade não contida. *
Helena Teresa Ruas Reis - 20/10/2020 - 10,40 h ***
14 *
"A força de vontade não contida"
Engatilha-me os versos desarmados
E reconduz-me ao longo desta vida
Não sei se inteiro, se feito em bocados *
Que indomado serei. Vendo saída
Não me detenho sobre estes telhados;
Muito mais alto vôo de seguida
E dou comigo em céus não navegados *
Sem bússola, nem leme ou capitão
Que dome esta loucura, esta paixão
De voar inda além dos sonhos meus. *
Humano sendo, esta contradição
Não me impede de impor-te este senão:
"-Não apontes gatilhos para os céus"! *
Maria João Brito de Sousa - 20.10.2020 - 11.20h
publicado às 10:19