Maria João Brito de Sousa
NEM CALDO FIADO, NEM MEL SEM SABOR! *
(Soneto em verso hendecassilábico) *
Acima hei-de pôr a quem seu caldo entorne
De quem mesa adorne com ranço e bolor!
Sei bem que houve dor, uma dor enorme,
Complexa e disforme. Se inda havia amor... *
Mas sei, sei de cor, não haver quem contorne
Coisa tão conforme com formas de expor
A alma da flor que em todos nós dorme;
Que a dor se transforme em seja o que for! *
Falta-me propor que esse caldo entornado
Seja transformado em mancha incolor,
Não vá o odor denunciá-lo estragado... *
Está posto de lado. Se sobrar vigor,
Renova-se a flor sobre um caule inventado;
Nem caldo fiado, nem mel sem sabor! *
Maria João Brito de Sousa - 27.09.2020 - 13.22h
Imagem retirada daqui
Soneto inspirado numa ladainha rimada da Janita
publicado às 10:18
Maria João Brito de Sousa
O BANDO *
Às negras asas, deixou-as pender,
Nem mesmo a queda agora a apoquentava;
Sabia que este vôo era a perder,
Pra quê lutar se desistir bastava? *
No princípio teimara em não descer,
Mas entendeu que o fim se aproximava,
Que as asas se negavam a bater
E que a queda final pouco tardava. *
Agora que sabia não poder
Escapar ao negro abismo que a chamava,
De que lhe valeria o verbo querer *
Ou a férrea vontade que gabava?
Cerrou os olhos para não mais ver
O bando que a voar continuava. *
Maria João Brito de Sousa - 27.09.2020 - 10.45h
À Clara, minha irmã.
publicado às 10:59
Maria João Brito de Sousa
UM PÃO QUE NÃO TEM PREÇO *
A grandeza do poeta não se mede;
Em metros não se conta. Em peso, pesa
Exactamente quanto a natureza
De mãos dadas c`oa sorte lhe concede.
*
Se a verso usado um novo se sucede,
De espantos se lhe mede essa grandeza
Pois se o não satisfaz certa certeza,
Procura a que lhe dê mais que o que pede. *
Cavalga-me o poema os dias mornos
Sem esporas e sem sela, nem adornos,
Perdendo-se em lonjuras que não meço... *
Logo um segundo acode. Os seus contornos
Começo a vislumbrar. Acendo os fornos
Em que cozinho um pão que não tem preço.
*
Maria João Brito de Sousa - 26.09.2020 - 12.11h
Imagem - Os Comedores de Batatas - Vincent Van Gogh, 1885
publicado às 12:20
Maria João Brito de Sousa
PODE UM VERSO ALBERGAR RAZÕES QUE NEM SONHEI *
(Soneto em verso alexandrino) *
De negro pintarei a esplêndida verdade
De um verso que me agrade. Depois o cantarei
E aos outros deixarei voar em liberdade
Que essa necessidade impõe-se ao que criei. *
Se algum sonhar ser rei, faça-se-lhe a vontade
E embora a realidade arrase o que engendrei,
Nunca aprisionarei um verso que se evade,
Nem mesmo se a saudade entender que eu errei,
*
Que mais quis que o que dei, que ousei contrariar
A órbita lunar, os homens e a lei...
Não, não me calarei. Se posso argumentar *
Devo justificar aquilo por que optei
Em nome do que sei não dever desdenhar;
Pode um verso albergar razões que eu nem sonhei!
*
Maria João Brito de Sousa - 25.09.2020 - 10.00h
Desenho de JÚLIO
publicado às 10:06
Maria João Brito de Sousa
TODO O SONETO É SÍNTESE (IM)PERFEITA *
Todo o soneto é síntese (im)perfeita
Da chama que em nós arde à flor da pele;
Se tudo o que sentirmos couber nele,
É dele que há-de nascer-nos a colheita. *
Fraca colheita quando, por receita,
Nasce um poema que se nos revele
Silenciando quanto ao sangue apele,
Curvando-se, medroso, ao que o rejeita. *
Fraca colheita, a que se não rebele,
Fraco o soneto quando se sujeita
A submeter-se àquilo que repele. *
Fraca estarei, por obra de maleita,
Mas não hei-de partir sem que cinzele
Um que me deixe plena e satisfeita!
*
Maria João Brito de Sousa - 24.09.2020 - 12.15h
NOTA - E claro está que este soneto não é um daqueles que me fazem sentir que "ganhei o ar que respirei". É apenas mais um soneto/síntese (im)perfeita...
IMAGEM - Tela de Álvaro Cunhal
publicado às 12:26
Maria João Brito de Sousa
QUE CASTIGO! *
Se me desdizes, não te contradigo...
Cada qual tem a sua opinião
Mas se eu entendo que tenho razão,
Não deixa essa razão de estar comigo... *
Vês segurança onde destrinço perigo?
Avisar-te é a minha obrigação,
Mas se onde digo sim, tu dizes não,
Respeito e não discuto mais contigo. *
Não me assistem vaidade e presunção,
Só me assiste a amizade e não te obrigo
A partilhar da minha convicção. *
Não me imponhas a tua. Não consigo
Mentir para evitar a discussão,
Nem fingir que concordo. Que castigo! *
Maria João Brito de Sousa - 23.09.2020 - 13.39h
publicado às 14:13
Maria João Brito de Sousa
FRAGILIDADES
Ou
Pequenas Grandes Fraquezas Que se Confessam a Brincar *
Hoje de manhãzinha ia matando
O quase nada que de mim sobrou;
Dez quilos de gravilha levantando,
Senti que o coração quase parou,
*
Que as vértebras rangeram protestando
E que a força nas pernas me faltou...
De a tão pouco saber-me estar vergando
Toda a minh`alma se me rebelou *
E o corpo inteiro, embora vacilando,
Na tarefa impossível se centrou;
Assim a terminei resfolegando, *
Tonta do esforço (mais do que já sou...),
Os "bofes pela boca" arremessando...
Tão pouco fiz... e tanto me custou! *
Maria João Brito de Sousa - 22.02.2020 - 13.05h
publicado às 14:16
Maria João Brito de Sousa
A ESCOLHA *
Esquerda ou direita? Qual de vós se atreve
A decidir-se nesta encruzilhada?
Quantos de vós nunca decidem nada,
Quantos irão por onde a sorte os leve? *
A escolha nunca é fácil, nem é breve,
Mas eu não hesitei e fiz-me à estrada;
Não me arrependo! A escolha era a acertada
E à esquerda é que o poema se me escreve, *
Que o coração me bate como deve,
Que se faz leve a dura caminhada,
Que nem sequer a morte me deteve *
Sempre que tive a vida ameaçada;
Foi essa a direcção que se manteve,
Que a minha decisão não estava errada! *
Maria João Brito de Sousa - 20.09.2020 - 15.04h
publicado às 12:21
Maria João Brito de Sousa
NÓ-CEGO *
Tudo quanto é matéria se dissolve,
Se espalha por aí desfeito em pó
E enreda-se o fio e surge o nó
Da saudade maior que nos envolve. *
Nó decisivo que ninguém resolve,
Definitivamente agreste e só,
Nascido pra magoar, pra criar dó,
Nó-cego desta dor que nos revolve... *
Nódoa caída no mais puro pano,
Inamovível falha a causar dano
Na manta já tecida, fio por fio, *
Dia após dia, um ano após outro ano;
Por cada fio, um nó acorre insano
Sem ter escolhido o pano em que caiu... *
Maria João Brito de Sousa - 20.09.2020 - 11.36h
Imagem retirada daqui
publicado às 11:49
Maria João Brito de Sousa
NO POEMA ACABO POR RESSUSCITAR *
Setembro de doença e de amargura,
De tempestade atrás de tempestade...
Quem disse que Setembro era ternura
Se, para mim, Setembro é só saudade?
*
Mas se o mês de Setembro me esconjura
E me ensombra a noção de liberdade,
Faço-lhe frente. Um pouco de loucura
E invento um sol que muda a realidade! *
De mortos me enches? De versos te cubro
Até que morras nos braços de Outubro
E se também Outubro me magoar, *
Mais versos tecerei. Sempre os descubro
E assim que a vida me derruba a murro,
No poema acabo por ressuscitar! *
Maria João Brito de Sousa - 19.09.2020 - 11.15h
publicado às 11:21
Maria João Brito de Sousa
SILÊNCIO!
*
Silêncio, que um poema vai ser escrito
Ainda que a palavra esteja gasta,
Esvaziada, esmagada como pasta,
Sangue pisado de um verbo proscrito,
*
Mescla magoada que em versos debito,
Mosto de um vinho sem nome nem casta...
Calai-vos por favor, que isto me basta
E em nome deste nada me credito, *
Pois se de alma dorida, atormentada,
Peço silêncio em troca deste nada,
Ouvi-me, que este nada é quanto tenho... *
Silêncio, que a palavra, amargurada,
Só em silêncio pode ser gestada;
Dela renasço e nela me despenho! *
Maria João Brito de Sousa - 18.09.2020 - 11.25h
publicado às 11:34
Maria João Brito de Sousa
Minha única irmã. Tão diferentes e tão iguais, tão distantes e tão próximas...
Ambas dotadas de um sentido de humor algo mordaz, cada uma com sua doença crónica em estado avançado, contactávamo-nos por telefone quase diariamente e encontravamos forma de nos rirmos um pouco tentando adivinhar qual de nós partiria primeiro. Chegámos a fazer apostas... e rimo-nos com isso e rimo-nos por isso.
Desta vez, Clara, foste tu quem ganhou a derradeira aposta... e eu perdi o riso.
Levaste contigo mais um pouco do pouco que me restava. O vazio é maior, muito maior do que o que poderias ter imaginado.
Dorme em paz, minha irmã.
Maria João Brito de Sousa
14.09.2020
publicado às 12:45