Maria João Brito de Sousa
CORAÇÃO SUBURBANO E REMENDADO
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Coração suburbano e remendado
É qual punhado de coisa nenhuma
Que perdido entre agulhas de caruma
Julgasse que afinal fora encontrado.
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Ao sentir-lhe o pulsar (des)compassado
Como o de vaga ao desfazer-se em espuma,
Ao mar o lançaria se outra escuna
Mo levasse e trouxesse renovado!
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Mas nem o mar me of`rece tal benesse,
Nem eu lhe of`recerei o que parece
Desafinado, ainda que o não esteja.
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Pulsa enquanto pulsar lhe for possível,
O punho ora rebelde, ora sensível,
Que me traz presa à vida e que lateja.
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Maria João Brito de Sousa – 16.04.2020 – 18.00h
publicado às 22:47
Maria João Brito de Sousa
VIAGEM POR DENTRO DE UM POEMA
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Partiu de si à hora do costume,
Sem ter de precaver-se em demasia
Já que nesta viagem ficaria
A léguas de si mesmo e do cardume.
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De si partiu depois de aceso o lume
Da candeia do espanto, antes vazia
Duma urgência que agora a consumia,
Inda que à pandemia fosse imune.
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Partiu de si por tempo indefinido;
Por um minuto ou dois terá partido,
Ou talvez fossem dias, meses, anos...
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Partiu! Foi sem destino nem sentido
Atrás de um verso em fuga, perseguido
Por dogmas, frustrações e desenganos.
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Maria João Brito de Sousa – 16.04.2020 – 10.52h
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Fografia de António Pedro Brito de Sousa, meu pai
publicado às 11:35
Maria João Brito de Sousa
A HORA DO LOBO II
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Percorri estepes que nunca pisei
Usando a voz do lobo que não sou;
“Matei, sempre que a fome mo ditou,
Mas nunca além de quanto precisei
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Fui pai ou mãe dos filhos que gerei,
Uivei de orgulho sempre que outro uivou,
Morri quando o meu tempo se acabou
E, quer creiam, quer não, também chorei.
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Chorei a morte do meu companheiro
Que devolveu à estepe o corpo inteiro
Quando por vós seguido e acossado.
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Alma, não sei se a tenho ou se a não tenho,
Mas do mais alto abismo me despenho
Antes de algum de vós me haver domado!”
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Maria João Brito de Sousa – 12.04.2020 – 17.46h
publicado às 10:09
Maria João Brito de Sousa
NÓS, HUMANOS
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Cremos em anjos, demónios e santos,
Criamos deuses de humanas fachadas,
Tememos bruxas, duendes e fadas...
E frágeis somos, mesmo sendo tantos!
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Vemos mostrengos por detrás dos mantos
Das nossas mentes pouco habituadas
A questionar-se quando confrontadas
Com dogmas pré-impostos por uns quantos.
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Assim somos! Assim nos coube ser
Na profusão de vidas a nascer
Que povoou este astro todo inteiro.
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O que me cabe a mim senão escolher,
Já que negá-lo seria perder,
Teimar que isto que afirmo é verdadeiro?
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Maria João Brito de Sousa – 10.04.2020 – 17.38h
publicado às 00:16
Maria João Brito de Sousa
ESCONDER O NILO EM TAÇA DE ESPUMANTE
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“Nas águas inquietas deste açude”
Se banha o mundo inteiro em convulsão;
Sonham os velhos com a juventude,
Jubilam jovens na antecipação
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De um futuro ideal. Se algum se ilude
E cai na muito humana tentação
De apenas vislumbrar sonho e virtude
Onde se abre uma porta à decepção,
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Não posso condená-lo nem puni-lo,
Nem poderei tentar dizer que aquilo
Que julga estar tão perto, está distante...
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No entanto, é possível consegui-lo!
Impossível será esconder o Nilo
Numa pequena taça de espumante.
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Maria João Brito de Sousa – 12.04.2020 – 12.09h
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NOTA IMPORTANTE - Soneto criado a partir do último verso do soneto "UM AÇUDE DE ÁGUAS INQUIETAS", de MEA, seguindo o exemplo de JOAQUIM SUSTELO que assim criou o soneto "CHAMASTE POR MIM?".
publicado às 12:44
Maria João Brito de Sousa
GRAUS DE CONSCIÊNCIA
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No asfalto, é devagar, devagarinho
Que hoje se avança. O tempo é de clausura;
Quem a quebre e se faça ao (des)caminho,
Tudo e a todos arrisca na aventura.
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“Daqui à nossa meta, é um tirinho”,
“A fuga à regra nunca foi loucura”,
“É triste estar em casa tão sozinho”,
“Tanto confinamento é já tortura!”,
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São argumentos muito pertinentes
Dos que serão (ou não...) sobreviventes
Desta praga sem nome ou dimensão.
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No fundo, todos somos dependentes
De alheios corpos e de alheias mentes;
Uns disso estão cientes, outros não.
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Maria João Brito de Sousa – 10.04.2020 – 11.16h
publicado às 09:59
Maria João Brito de Sousa
“PELO SEU PRÓPRIO PÉ”
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Há pouco, ouvi o canto insinuante
De um pedaço de verso. Um verso alheio
Que ficou a rondar-me e, neste instante,
Ecoa cá por dentro qual gorjeio
*
De ave que em mim pousasse e que, hesitante,
Em seguida mostrasse algum receio...
Não reisti. Segui-lhe o rasto errante
Quando partiu cantando. Que outro meio
*
Teria eu de ouvi-lo novamente
Se é livre cada pássaro que a gente
Sente pousar em nós, quando acontece
*
Ver-se ou ouvir-se um verso irreverente
Que canta e soa tão divinamente
Que tudo o mais ofusca e empobrece?
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Maria João Brito de Sousa – 09.04.20-20 – 10.30h (?)
publicado às 00:32
Maria João Brito de Sousa
“VA PENSIERO”
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Voa pensamento nas asas douradas
Que hoje amordaçadas espalham seu lamento...
Voa contra o vento que sopra em rajadas
Por ruas e estradas. Redobra de alento,
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Voa como eu tento quando as madrugadas
Passam demoradas, suspensas no tempo...
Voa! Voa atento às gentes magoadas,
Marginalizadas, murchando ao relento...
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Que isso que te eleva te não leve em vão;
Que te sobre o pão e que ninguém se atreva
A pensar que deva pôr qualquer travão
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A quem, por paixão, dê de quanto escreva...
Na próxima leva, leva e traz-me, então,
Mais uma fracção do que ilumina a treva!
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Maria João Brito de Sousa – 08.04.2020 – 23.57h
publicado às 23:32
Maria João Brito de Sousa
TOMAR GATO POR LEBRE
ou
LOBRIGAR RISCOS ONDE BRILHAM ESTRELAS
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Mal vejo porque os olhos baços, baços,
Mais baços do que os vidros das janelas,
Não deixam vislumbrar mais do que uns traços
Das coisas mais comuns e mais singelas.
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Abrem-se-me horizontes, surgem espaços
Nos quais vislumbro absurdas caravelas
Cruzando um céu cortado em mil pedaços
Por estranhas setas que afinal são estrelas...
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Ainda exijo aos olhos que não parem
De ver loucuras, se a tal me obrigarem!
Ainda não entrei em desespero!
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Antes ver pouco e mal do que não ver
Sequer aquilo que algo parecer,
Desde qu`inda discirna esse exagero...
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Maria João Brito de Sousa – 07.04.2020 – 17.11h
publicado às 09:01
Maria João Brito de Sousa
NADA CORTA A RAIZ AO PENSAMENTO
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"E se for amanhã, não será tarde" Que o homem novo não é apressado, Nem costuma fazer o grande alarde Que faz um homem menos assisado... *
A chama inda em nós freme, inda em nós arde, E esse amanhã constrói-se lado a lado! Sejam bem vindos, valente e cobarde, Ao mundo que tivermos conquistado! *
Aos muitos que tombaram, honraremos Nos hinos e poemas que criemos Durante os tempos de confinamento * Porque afinal é certo e está provado Que jamais houve espada, nem machado Que cortasse "a raiz ao pensamento"! *
Maria João Brito de Sousa - 06.04.2020 - 11.40h
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Mais um soneto-resposta a um poema-comentário de Rogério V. Pereira.
publicado às 10:11
Maria João Brito de Sousa
CIDADE ENTRE MURALHAS
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Está vazia, a cidade entre muralhas...
Vestindo um pálio verde acinzentado,
Espelha agora reflexos e migalhas
Do que era humano, urbano e povoado.
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Há silêncios brotando destas malhas
Pelo homem tecidas no passado;
Hoje, nem um sinal de humanas falhas
Contraria o vazio aqui estampado.
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Suspensa, a vida humana mal murmura,
Mas permanece a esp`rança. Essa perdura
No sonho que entre muros se encerrou.
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Quem sabe quando chega esse amanhã
Que há-de trazer consigo a vida sã
Que todo o homem são sempre sonhou?
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Maria João Brito de Sousa – 05.04.2020 – 19.28h
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Soneto criado ontem para o desafio “Imagem/Poema” do site Horizontes da Poesia.
(muito ligeiramente reformulado)
publicado às 23:57
Maria João Brito de Sousa
AGUARDO A MÚSICA DE UM VERSO
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Garanto que jamais procuro um tema;
É um verso qualquer que, de repente,
Se aproxima de mim, me vem à mente,
Mesmo antes que eu pensasse num poema.
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Depois, o tema surge e, sem problema,
Vai-se desenvolvendo qual semente
Que brota de uma terra que a consente
E a aceita sem cuidar de mote ou lema.
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Estou sempre atenta ao som de cada frase
Que elaboro ao pensar. Até à crase
Presto toda a atenção. Estou sempre à espera
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Da toada inerente ao verso incerto,
Que não sei se está longe ou se está perto,
Que nem sei se vem mesmo ou se é quimera.
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Maria João Brito de Sousa – 04.04.2020 – 17.00h
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Soneto-resposta ao soneto "TEMA" enviado pelo poeta Raymundo Salles, Brasil
publicado às 08:14