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QUEM CANTA A VIDA, NÃO SABENDO AMÁ-LA?
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Quem canta a vida, não sabendo amá-la
E quem modula um verso que não ama,
Se em espanto se lhe acende como chama
E se, à chama, não há como apagá-la?
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Se mal começa o poema a chama estala
E sobre tudo e nada se derrama,
Como não entender que se proclama
Amor, onde a palavra se não cala?
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Ah, se o reduzo à literalidade,
Como hei-de conceder-lhe a liberdade
De ainda o ser, depois de traduzido?
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Se o prendo entre erotismo e sedução,
Como livrá-lo, então, da sensação
De haver usado, amado e destruído?
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Maria João Brito de Sousa – 13.01.2019 – 13.00h
A FONTE DOENTE
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Qual “Fontana Malata” vou tossindo
E que Aldo Palazzeschi me perdoe
Por “fontana” e “malata” me ir sentindo,
Ainda que diversa a voz me ecoe
*
Do “clof, clop, cloch”, resumindo
O som que a fonte faça, o som que entoe
Enquanto assim o vai reproduzindo
Ouvido que o transcreva e não destoe.
*
Tanto a fonte se engasga e regurgita
Que, ao poeta, um poema então suscita,
Piedoso, solidário e fraternal
*
Quanto a mim, que me espelho nessa tosse,
Antes quisera que só dela fosse
Um som que, ao igualar-nos, nos faz mal.
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Maria João Brito de Sousa – 13.01.2019 – 13.43h
Inspirado no poema “La Fontana Malata” de Aldo Palazzeschi, Itália, 1885-1974
COISAS DE NADA
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Notícias sobre mim, coisas de nada;
Sinto uma dor no peito quando tusso
E chegou-me uma tosse desalmada
Que, sem pedir licença e sem rebuço,
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Me deixou tão dorida e tão prostrada
Que cada verso soa qual soluço,
Cada estrofe me sai desafinada
E só em quase-nadas me esmiuço...
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No estado em que me encontro, de momento,
Não tenho musa, força, nem talento
Para melhor escrever seja o que for,
*
Tudo o que faço é tossir e espirrar,
Mas sei que vos não vou contagiar
E talvez amanhã esteja melhor...
*
Maria João Brito de Sousa – 12.01.2019 – 11.21h
Imagem retirada daqui
SE A NAVALHA NOS FALHA, OSCILA E CAI...
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Se, no fio da navalha caminhando,
A navalha nos falha, oscila e cai,
Tudo estremece, tudo se nos vai
E sem asas, nem chão vamos ficando...
*
A que nos agarramos se, cortando,
Até o gume nos desmente e trai
O tanto que nos nega e que subtrai
Ao pouco que antes fomos avançando?
*
A própria musa, desasada fica,
A corda, retesada, já não estica
E os versos, um a um, caem também
*
Dessa pauta invisível que os prendia
Ao fio duma navalha que os servia
E que nunca mais serve a mais ninguém.
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Maria João Brito de Sousa
11.01.2019 – 12.16h
***
Imagem retirada daqui
TUDO BEM?
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Tudo bem? Menos mal? Assim-assim?
Vai-se escrevendo, enfim, vai-se escrevendo...
Mais do que a “ir andando”, sigo crendo
Que só enquanto escrevo adio o fim
*
E nunca guardarei só para mim
A frase que aqui deixo e que defendo
Como a que me traduz neste ir vivendo
Ao qual todos os dias digo sim.
*
Dissesse, “vou andando...”, e mentiria,
Porque mal empreendo uns breves passos,
Mesmo que tendo apoio e companhia
*
E enquanto escrevo, embora de olhos baços,
Ainda vou chegando aonde queria,
Conquanto já semeie uns erros crassos.
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Maria João Brito de Sousa – 10.01.2019 – 12.50h
Imagem retirada daqui
SONETO ACABADO DE ESCREVER
PARA UM “SONETO JÁ ANTIGO”, DE ÁLVARO DE CAMPOS
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Raios me partam que tanto produzo
Sonetos e sonetos e sonetos
Uns atrás de outros, sem fazer projectos
Sobre os demais projectos, que recuso.
*
Se pra meu uso tanto e tanto abuso
De ininterruptos versos obsoletos,
Decerto não acuso outros objectos
Quando a simples objecto te reduzo,
*
Nem vou pedir a Daisy que, por esmola,
Diga esconder a dor que não se evola
Do seu espontâneo gesto costumeiro
*
E não há Cecily que em mim previsse
Mais do que alguns minutos de chatice,
Ou a chatice extrema, a tempo inteiro.
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Maria João Brito de Sousa – 08.01.2019 – 18.13h
Imagem retirada daqui
QUEM SOU, QUEM SOU?
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Sou contra-sensual por natureza;
Frequentemente rio quanto baste
E pouco ou nada existe que me agaste
Ainda que me insultem com torpeza
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Ou, com habilidade e subtileza,
Alguém me considere um mero traste,
Mas pode acontecer que hoje me afaste
De quem me julga ter presa e bem presa.
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Quem sou, quem sou? Se agora perguntaste
Por que razão de tudo saio ilesa,
Dir-te-ei que nos dias me encontraste,
*
Que nas noites me achaste sempre acesa,
Que sou aquela a quem nunca negaste
Lugar na cama e um prato sobre a mesa.
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Maria João Brito de Sousa – 08.01.2019 – 13.49h
Imagem retirada daqui
VAMOS ALÉM?
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Vamos além? , Aonde?, inquire alguém,
E eu que nunca sei onde começa,
Nem acaba um além, respondo à pressa:
- Onde a vida nos leva, ou nos detém...
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Sei que especulo e não me fica bem
Fazer de um pressuposto uma promessa,
Mas prevarico, embora reconheça
Que um passo implica sempre ir mais além...
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Parto sozinho, sem pagar o preço
De sugerir atalhos inventados
Em estradas que de todo desconheço,
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Tentando a sorte no lançar dos dados,
Aproveitando, enquanto não tropeço
Nos dados que por outrem estão lançados.
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Maria João Brito de Sousa – 07.01.2019 – 15.52h
(I)LIMITES & PARADOXOS
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Entre vivos e mortos levantamos
Montanhas de aço vivo e de vontade
Contra as quais esbarrarão os grandes amos
Dos medos, quais torpedos de ansiedade,
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Mas se no espanto imenso em que nos damos
Abstrusa, a novilíngua nos invade,
À nossa antiga concha retornamos,
Pela libertação da liberdade.
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E mudamos. Ó céus!, como mudamos
Quer queiramos mudar, quer não queiramos,
Sem dúvida em excessiva velocidade,
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Ultrapassando mesmo a ubiquidade...
Porém, na rapidez com que avançamos,
Quem mede o estado ao estado a que chegamos?
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Maria João Brito de Sousa – 06.01.2019 – 13.44h
Tela de Jean Michel Basquiat, retirada daqui
AS PEQUENINAS ASAS
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Contemplando as lonjuras circunspectas
Dos altíssimos vôos dos mais doutos
Embora, de asas, tenha uns meros côtos,
Admiro algumas asas mais concretas,
*
Mais amplas, ergonómicas, directas,
Mais densas e frondosas como soutos,
Face às minhas, pequenas como brotos
De sementes adiadas, incompletas.
*
Se cedo as minhas asas desprezei,
Tarde demais a elas retornei
E é fraco, este meu vôo, embora as penas
*
Bem mais cresçam agora que já sei
Poder guardar as penas que penei
Em asas tão modestas quão pequenas.
*
Maria João Brito de Sousa – 05.01.2019 – 12.35h
Imagem retirada daqui
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