Maria João Brito de Sousa
DA GRALHA
(A Bainha Descosida)
*
Das gralhas que passam vestindo sorrisos,
Dos gestos precisos que, acaso, as refaçam,
Das névoas que embaçam contornos concisos
Dos passos nos pisos que nos ameaçam
*
Se súbito passam a lisos, tão lisos
Que aos próprios sorrisos ali despedaçam
Sem que outros renasçam. Sisuda e sem siso,
Compõe longo friso, a gralha, se a caçam.
*
Letrinha a letrinha me força a escrever,
Só para a não ver a tornar-se rainha
Da escrita que é minha, enquanto eu puder.
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Mas se eu a esquecer e escrever mais asinha,
A maldosa gralhinha vai sem se deter
Esgaçar, descoser, do vestido, a bainha.
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Maria João Brito de Sousa – 28.01.2019 – 11.05h
publicado às 11:18
Maria João Brito de Sousa
ORA PAPOILA, ORA FRAGA II
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Não me levem as asas. Pouco ou nada
Me vai restando do que em tempos tive
E nem a rocha bruta sobrevive
Caso em cascalho seja transformada
*
Se progressivamente triturada
Até que recidive e recidive
Na total frustração que a prenda e prive
De ser flor, sendo rocha assoreada.
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Devo-me à vida até que a morte chegue
E, antes que soe a hora da partida,
À vida entrego o que me foi entregue
*
Multiplicada, se diminuída,
Entre o que me esclareça, o que me cegue
E aquilo que colhi, sendo colhida.
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Maria João Brito de Sousa – 26.01.2019 – 12.33h
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publicado às 11:55
Maria João Brito de Sousa
REFLEXÃO EM QUEDA LIVRE
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Reboa qual aço e desfaz-se em brancura,
Caindo sem cura do alto do espaço
E mal me refaço de vê-la tão pura
Entro na aventura, descrevo-a num traço,
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Como se, em abraço, lhe ousasse a candura
E na partitura soltasse esse laço...
Sei bem que o não faço, que o sonho não dura,
Mas sonho é procura e sem sonhos não passo.
*
Se eterna, se breve, depressa, depressa
Sei que recomeça, que faz o que deve,
Qual branca de neve que não desfaleça
*
E bem reconheça que tudo prescreve;
Tão grande e tão leve... apenas promessa,
Ou firme confessa de a quanto se atreve?
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Maria João Brito de Sousa – 20.01.2019 – 12.18h
publicado às 10:45
Maria João Brito de Sousa
RISCOS E QUEDAS
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Homem e mulher a galgar seus caminhos
Juntos mas sozinhos, que tal se requer
A quem se atrever a dar alguns passinhos
Pra fora dos ninhos, depois de nascer.
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Se os não conhecer e nem mesmo os vizinhos
Souberem dos linhos que podem tecer
Dos mais comezinhos fiozinhos que houver
No quanto nascer de seus gestos asinhos,
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Talvez vão passando, passando invisíveis
Ou mal discerníveis no meio do bando
Que vai aumentando e traçando impossíveis
*
Nos velhos desníveis que vão confrontando
No como e no quando que os tornam passíveis
Das quedas temíveis que alguns irão dando.
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Maria João Brito de Sousa – 25.01.2019 – 10.56h
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publicado às 10:59
Maria João Brito de Sousa
TEMPO HUMANIZADO
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Dois velhos, tão velhos que o Tempo os media
Por noite e por dia, pedindo conselhos
Que espelhos e espelhos, tão só espelhos via
Se os surpreendia, doridos de artelhos,
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Cobrindo os joelhos na tarde mais fria,
Que o frio que sentia era o frio desses velhos
E os mesmos joelhos cansados trazia
O Tempo que ouvia, dos homens, conselhos.
*
Ah, Tempo irmanado com quem te resiste,
Ser velho é tão triste... ou estarás errado
Ao ver-te espelhado em quem nunca viste?
*
Aquilo que existe de certo e provado
No texto inventado em que a Musa me assiste,
É que me sorriste, Tempo humanizado.
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Maria João Brito de Sousa – 24.01.2019 – 07.00h
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publicado às 07:09
Maria João Brito de Sousa
A METÁFORA DO LIMOEIRO
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Repara que a doce acidez dos limões
Não teve intenções de fosse o que fosse
E, sendo precoce, releva as razões
Das repercussões de quem dela troce.
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Mal tomara posse, florira em botões
Sem provocações. E conquanto remoce,
Mais acre, ou mais doce, mantém os padrões
Sem mais ambições que, nestes, sagrou-se.
*
Verdes e viçosos serão os pomares
Se tu os regares quando sequiosos;
Tais serão teus gozos, assim que os provares
*
E se o não negares, mais e mais gostosos
Frutos bem cheirosos perfumando os ares,
Serão, do que ousares, filhos extremosos.
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Maria João Brito de Sousa – 23.01.2019 – 14.43h
publicado às 15:27
Maria João Brito de Sousa
EI-LA A SER CASA E FOCO E FORTALEZA
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Ei-la a ser casa e foco e fortaleza,
Erguendo-se dos braços da cidade,
Demarcando-lhe as veias com firmeza,
Nutrindo-a de calor, de intimidade,
*
Desse supremo bem que hoje despreza
Tudo quanto a viola, castra, invade,
Tudo o que, vindo pôr-lhe pão na mesa,
Lhe cobra o preço da privacidade.
*
Ei-la a ser casa, ainda que invadida
Por olhos que a verão comprometida
Por faltas que não são nem foram suas.
*
Ei-la a ser fortaleza porque o sabe
E agradece sorrindo, inda que acabe
Desfeita em mil estilhaços pelas ruas.
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Maria João Brito de Sousa – 22.01.2019 -11.34h
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publicado às 11:44
Maria João Brito de Sousa
AQUELE TEU VERSO PERDIDO
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Àquele verso que se te escapou
Enquanto passeavas na cidade,
Julgo ter sido eu quem o achou
No chão caído e morto de saudade
*
Desse poema que nem começou
Por culpa sua, ainda que a vontade
Lhe pedisse uma urgência que calou
Porque perdera a oportunidade.
*
Quis devolver-to mas, fragilizado,
Dissolveu-se inteirinho ao ser tocado
Embora eu lhe tocasse tão de leve,
*
Que simulavam seda, estes meus dedos;
Versos perdidos, tal como os segredos,
Estão condenados a ter vida breve.
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Maria João Brito de Sousa – 21.01.2019 – 14.12h
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Ao soneto “Aquele Verso”, de Joaquim Sustelo.
publicado às 15:19
Maria João Brito de Sousa
MERA ILUSÃO
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Um vinco suspeito no cetim da frase,
Destrói pela base aquilo que aceito
Sobre tal defeito. Passo à nova fase;
Que nada me atrase, pois nada é perfeito
*
E eu fico sujeito a que mais me arrase
Se tão só vir gaze num modelo eleito
Tecido a preceito por mão kamikaze
Que se revoltasse de o ver tão escorreito.
*
Uma imperfeição assim, tão pequena,
Não vale uma pena da minha atenção
Sem hesitação, permaneço serena
*
Olhando essa amena, pequena infracção
Com que a má visão desconcerta e me acena;
Que espanto, ou que pena! Era mera ilusão!
*
Maria João Brito de Sousa – 19.01.2019 – 12.25h
Soneto em verso hendecassilábico com rima interior encadeada
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publicado às 12:41
Maria João Brito de Sousa
DEZASSETE DE JANEIRO
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Irei desintegrar-me em dez segundos
Após a conclusão do que decreto
Aqui, preto-no-branco, a branco e preto,
Em caracteres enormes e rotundos
*
Quais vermes a soltar viscos imundos
Sobre o que já foi sonho e foi projecto
E agora pode ser o mais abjecto
Dos saldos sujos e nauseabundos.
*
Nada de novo aqui, neste poema;
Bem melhor abordou o mesmo tema,
Henriques Britto, o bom soneticida
*
Que no seu Dezanove de Janeiro
Fuzilou um soneto passageiro,
Meteu-se no seu carro e fez-se à vida.
*
Maria João Brito de Sousa – 17.01.2019 – 14.09h
Ao soneto “19 de Janeiro”, de Paulo Fernando Henriques Britto, Brasil.
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publicado às 09:13
Maria João Brito de Sousa
ARPÉU
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Por tudo, por nada e por coisa nenhuma,
A voz se me esfuma, dolente, abafada,
Morrendo arrastada na franja da espuma
Que uma onda costuma bordar, se espraiada
*
Na areia molhada em que a voz se presuma
O véu de uma bruma jamais desvendada,
Tão espessa e velada que nada ressuma
Da alvura que assuma quando desfraldada.
*
Mas do espesso véu que aqui vos descrevo
Se a tanto me atrevo, sou vítima e réu,
Pois não sendo meu, sempre a todos o levo
*
E dói-me o que escrevo, mas lanço o arpéu,
Pois não posso eu pagar quanto devo
Senão neste enlevo convulso de ilhéu.
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Maria João Brito de Sousa – 17.01.2019 - 11.33h
Soneto hendecassilábico com rima interior encadeada
Imagem retirada daqui
publicado às 12:23
Maria João Brito de Sousa
“ERTO A OYIDDNIO E UENTGLAN”*
(Soneto a esta sms, por mim enviada)
*
Não sei por que decifro a voz das horas
No infindo rumorejo dos instantes,
Nem a razão de ser de umas demoras
Que entre uns e outros sejam demarcantes
*
No propagar de frases detentoras
De conteúdos bem ou mal soantes,
Conforme ecoem óbvias e canoras
Ou, bem pelo contrário, tão distantes
*
Que se nos mostrem muito inacessíveis
Mostrengos colossais, armas temíveis
Concebidas tão só pra confundir...
*
Contudo, oiço-as a todas; intangíveis
Podem vir a tornar-se bem legíveis
Pra quem queira aprender a traduzir.
*
Maria João Brito de Sousa – 16.01.2019 – 12.24h
*”Erto a oyddnio e Uentglan” - Estou a oxigénio e Ventilan
publicado às 13:04