Maria João Brito de Sousa
SONETO-DEDICATÓRIA
*
Terçando as armas que deixei pra trás,
revivalista fui, por um instante,
de um passado tão morto e tão distante
quanto o meu espanto vão, de tão fugaz.
*
Perdido o espanto, nada já me apraz,
mas se arma e sonho fossem a constante
da luta que esta vida leva avante,
então talvez... talvez morresse em paz.
*
Volto ao revivalismo abandonado,
embora velha, embora enfraquecida,
ergo o punho bem alto, bem cerrado,
*
E quem fica pra trás morta e vencida,
não é o sonho nunca conquistado,
é a derrota, nunca consentida!
*
Maria João Brito de Sousa – 30.09.2018 – 12.15h
Imagem - Tela de Pablo Picasso
publicado às 12:24
Maria João Brito de Sousa
“ERRARE HUMANUM EST”
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Se nem todos os pés pisaram uvas,
se nem todas as mãos colheram trigo,
se nem todas as nuvens geram chuvas,
se nem todos os tectos são abrigo,
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Nem todo o bofetão chegou de luvas,
nem todo o que diz sê-lo é grande amigo,
nem todas as formigas são saúvas,
nem tudo o que nos dói será castigo...
*
Semântica, a manhosa, a traiçoeira,
vem por vezes pregar-nos a rasteira
de por-nos sob a língua algo diferente
*
Daquilo que intentávamos dizer
e caímos nesse erro sem saber
que para assim falhar basta ser gente...
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Maria João Brito de Sousa – 29.09.2018- 10.01h
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Imagem surripiada do Google, sem autoria visível
publicado às 11:06
Maria João Brito de Sousa
OLHEI-ME AO ESPELHO, ABRINDO UMA EXCEPÇÃO
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Olhei-me ao espelho, abrindo uma excepção,
mas não vi, das mazelas, os sinais...
Da dor, não vislumbrei sonoros ais
e, como tal, mirei-me ao espelho em vão.
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Eu, que nunca lhe tive devoção,
mas que prefiro o espelho aos hospitais,
só o consultaria uma vez mais
se me desse uma sábia opinião.
*
Nada me diz, porém, que eu desconheça
e não vendo razões pra consultá-lo,
não creio que este espelho me mereça
*
Um segundo que seja para olhá-lo;
não passa de uma velha, inútil peça
que cria pó pra me fazer limpá-lo...
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Maria João Brito de Sousa – 28.09.2018 – 12.45h
Na sequência do poema O MEU ESPELHO, de Joaquim Sustelo.
publicado às 13:18
Maria João Brito de Sousa
“F” de FUSÃO
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Faz frio. A fera firma-se furtiva,
finta a fuga e feroz ferra o furão.
Furioso, faz furor o furacão.
Frente fria. Formal. Facultativa.
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Frágil, fremente, fina, (a)firmativa,
franqueia a fresta, a fenda, a frustração.
Fito. Futuro. Fímbria. Facalhão.
Faz frente à forca, firma a flor festiva.
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Facilmente fraqueja. Frágil fica.
Frenética e fremente, frutifica,
fruto feliz da flora fecundada.
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Fugaz, flexível, fina e florescente,
furta-se à fátua fama. Febrilmente,
fundem-se a flor e a fraga fragmentada.
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Maria João Brito de Sousa – 27.09.2018 -17.41h
publicado às 17:39
Maria João Brito de Sousa
(IN)FLEXÃO VERBAL
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De que ventos irados, de que brumas
te chegam tantos medos pessoais
que irão queimando até que te consumas
no espasmo dos momentos terminais,
*
Quando a ti mesmo e só a ti resumas
em sons, que para ti serão sinais,
se, do que temes, sobrarão só espumas
e, do que afrontas, sobrará bem mais?
*
De que futuro agreste e controverso
te chega o marulhar de um mundo imerso
numa contradição que não tem fim?
*
Ah, se hoje é o futuro de um passado
que antes do tempo vai sendo julgado,
porque mais crês no medo do que em mim?
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Maria João Brito de Sousa – 26.09.2018 -17.32h
publicado às 18:09
Maria João Brito de Sousa
DESACATOS DA MINHA GATA, MISTRAL
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Tais desacatos faz a minha gata,
que me vez de me zangar desato a rir
quando a vejo pular até cair
em torno de uma sombra que a acicata,
*
Mas se na sala entrar uma barata
- e já me aconteceu, devo assumir... -
Se a cama vai ser feita de lavado,
ei-la sobre os lençóis em louca dança
a amarrotar-me o pano bem esticado...
*
Não pára um só segundo, nem se cansa
de o puxar para trás e para o lado
pra revolvê-la toda, sem parança...
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Maria João Brito de Sousa -25.09.2018 – 13.57h
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A propósito do poema “O Gato Fez Desacato” de Joaquim Sustelo
publicado às 16:44
Maria João Brito de Sousa
AO DEMAGOGO
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Dedico este soneto ao demagogo,
exímio enganador de multidões
que faz malabarismos com questões
e de pronto transforma um nada em fogo
*
Que, ao encontrar ouvidos, pega logo
e passa a ser lesivo pra milhões
pois irá propagar-se às gerações
que se inflamem nas chamas do seu jogo.
*
Palavras, só palavras... que lhe importam
os límpidos conceitos que transportam,
se não puderem ser compreendidas?
*
Contudo, teimo ainda em dedicá-las
ao demagogo que intentar calá-las
com verborreias falsas, corrompidas.
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Maria João Brito de Sousa – 24.09.2018 -16.15h
publicado às 16:17
Maria João Brito de Sousa
SINOPSE
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Provou só mais um fruto e descansou,
dormiu, sonhou, amou, teve meninos
e, vendo-se senhor dos seus destinos,
comeu todos os frutos que encontrou.
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Foi tarde, bem mais tarde, que acordou
e viu brotarem frutos pequeninos
dos ramos, quais pequenos desatinos
de arbustos que não viu, que nem provou.
*
Foi caso extremo e não criou padrão,
que a sorte quis poupá-lo à decepção
e, afinal, tudo estava no começo...
*
Depois, os frutos foram rareando
e agora ninguém sabe dizer quando,
nem como irá pagar-se esse alto preço.
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Maria João Brito de Sousa – 23.09.2018 – 11.56h
publicado às 12:24
Maria João Brito de Sousa
O RESTAURADOR DE CONCEITOS
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Construíra a palavra e quis honrá-la,
limpá-la, dar-lhe o uso adequado
para poder depois utilizá-la
em vez de remetê-la pró passado.
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Apanhou-a do chão. Ao levantá-la,
tomou peso ao que tinha levantado
e que era o peso que o levara a amá-la
e a soletrá-la; PROLETARIADO.
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Olhou de novo. De novo encontrou
outra palavra viva que engendrou
e se moldara à sua própria mão.
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O mesmo peso, a mesma infinda luta
que o levara a criá-la, resoluta,
para gravá-la em si; REVOLUÇÃO.
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Maria João Brito de Sousa – 21.09.2018 – 22.54h
publicado às 06:12
Maria João Brito de Sousa
AS JANGADAS DOS POETAS
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Meia dúzia de tábuas bem pregadas,
um pano velho em jeitos de improviso
e temos a Jangada das jangadas
pronta a reinventar um paraíso
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Num mar de ondas – quem sabe? - ionizadas
um pouco – ou muito... - além do que é preciso,
São frágeis, quase sempre inacabadas,
nem visam lucro, só dão prejuízo.
*
Assim vejo as jangadas dos poetas,
assim recrio a minha e traço as metas
de tão frágil conjunto de artefactos
*
E enquanto for poeta e construtora,
também serei, de mim, dona e senhora,
e, dos mais, servidora. Sem contratos.
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Maria João Brito de Sousa – 20.09.2018 – 11.35h
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
COMO DIZER-TO? II
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Ao tédio, que nego, renego e desfaço
pedaço a pedaço, com honras de apego,
com martelo e prego, sou aço sobre aço
zurzindo, qual maço, um arco que é cego,
*
Mas logo o delego pra espaços sem espaço
e nem por cansaço ao tédio me entrego
pois mudo, navego e assim não me maço
se faço e re-faço, ou se guardo e nem pego...
*
É tempo de um espanto de pura vertigem...
Tudo nos exigem. Exigem-nos tanto
que mesmo um quebranto não sei de que origem
*
Parece ser virgem escondida por manto...
Vivemos, portanto, dos medos que infligem
deuses de fuligem e aras de amianto.
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Maria João Brito de Sousa – 19.09.2018 – 10.10h
(soneto em verso hendecassilábico com rima encadeada)
publicado às 06:31
Maria João Brito de Sousa
https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A9_(poesia)
COMO DIZER-TO?
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A ti, que te entreteces num compasso
que não aceita este compasso meu
e o julga vacilando a cada passo
pra não torcer-lhe um pé* que outrem cedeu,
*
A ti, que o imaginas perro e lasso,
morto, a fazer-nos crer que não morreu,
como dizer-te que traz nervos de aço
em braços que lhe vão da terra ao céu
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E que é fruto do próprio pensamento
tão mais liberto quanto mais ritmado,
ou que conquista espanto, espaço e tempo
*
E aí se firma, assim, cadenciado,
sem precisar de pauta ou de instrumento
porquanto nasce e cresce musicado?
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Maria João Brito de Sousa – 17.09.2018- 15.48h
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*Pé – referência ao pé métrico do verso
https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A9_(poesia)
publicado às 06:41