Maria João Brito de Sousa
JANGADA
*
Olhei-te em tempo incerto, à hora errada;
Inda o dia tardava a despontar,
Já eu te olhava como se esse olhar
Pudesse dar-te tudo, sem ter nada.
*
Olhei-te nesse alvor de madrugada,
De manhã, à tardinha e, ao deitar,
Já esquecera que havia todo um mar
Ao qual eu prometera uma jangada.
*
Para te olhar, desconstruí-me inteira
E esqueci-me do mar, que nem ribeira
Cheguei a ser, sem vagas, nem marés...
*
Nessa jangada nunca mais pensei,
Se não quando de olhar-te me cansei
E vi que a tinha inteira sob os pés.
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Maria João Brito de Sousa – 11.08.2018 – 12.19h
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
FUNDADO EM PENAS
(Empenas)
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Ó bela e crudelíssima Natura,
Na ausência dos conceitos MAL e BEM,
Cada espécie se espraia e se te apura
Segundo o que funciona e que a mantém
*
E quando, dura, a vida te conjura
A seres tudo o que à VIDA mais convém,
Não hesitas e sonhas, criatura
Que nem sequer a morte te detém...
*
Sim, venho-te dizer não ser viável
Singrar perfeita, a vida, e que é expectável
Que nem sequer percebas que a condenas
*
Se lhe auspicias toda a perfeição
Que trazes, sei-o bem, num coração
Esquecido de dever fundar-lhe empenas.
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Maria João Brito de Sousa – 26.08.2018 – 18.07h
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
SEGUNDA CARTA ABERTA A UMA MUSA INEXISTENTE
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O que é feito de ti? Por que partiste?
Nunca a ti te falhei; mesmo doente
Dei-te toda a atenção que me pediste
E se uma vez ou outra te fiz frente
*
Foi porque demasiado me exigiste
E, às tantas, te tornaste prepotente...
Repara que o poema em mim persiste,
Embora a tua voz lhe esteja ausente,
*
O verso seja fraco e lasso e triste
E apenas pra mostrar que não desiste
Teime em dizer-se, assim, penosamente,
*
Como quem perde a força, mas resiste,
E admite que, afinal, a musa existe,
Mesmo quando lhe chama inexistente.
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Maria João Brito de Sousa – 26.08.2018 – 11.31h
publicado às 06:03
Maria João Brito de Sousa
NAUTILUS E A BARCA
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Vós que credes num demo em que não creio
E que tremeis de infernos e castigos
Pois receais quanto eu já não receio.
(concretos, bem reais, sobejam perigos)
*
Vós que espreitais por frestas e postigos
E que implorais, do horrendo, o menos feio,
Mas sonhais com fortunas por sorteio
Sem parar pra pensar. Vós, meus amigos,
*
Vós que me sois iguais, diferentes sendo
À conta do que a alguns nos foi movendo
E, por outros, passou sem deixar marca,
*
Que temeis desse demo que eu não temo?
(e evoco ainda o Nautilus de Nemo
enquanto solto a amarra à minha Barca)
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Maria João Brito de Sousa – 17.07.2018 -14.22h
Às minhas infantis memórias de leitura de Júlio Verne
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
AS QUATRO TORRES DA ALAMEDA
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Adeus, minha alameda sem palmeiras
Onde tanto edifício vi nascer...
Adeus, adeus, que o tempo é de beber
As ondas do meu Tejo sem fronteiras.
*
Assombrando o meu prédio, sobranceiras,
Erguem-se quatro torres. Que fazer
Se desde a prima-pedra as vi crescer
Até se me tornarem companheiras?
*
Adeus, pedras pisadas, repisadas,
E mais que desgastadas por meus pés.
Agora estais-me vós a ser pesadas,
*
Porque já vos não piso e estou rés-vés
Com a terra onde fostes calcetadas
Em chão roubado à concha das marés.
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Maria João Brito de Sousa -17.07.2018 -20.53h
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Na sequência da leitura do soneto “Adeus à Rua Castilho” de Ribeiro Couto (1898-1963)
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
“S” de SONETO
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Sublime silvo, sopro sussurrado,
Suave solfejo seco ou sibilante;
Sorvo-te o simbolismo segredado,
Sofro-te a sedução simbolizante.
*
Subliminar, sopraste-me o sondado,
Secreto e só, sem som sintonizante,
Supino, singular e separado,
Sumindo-te, sereno e sublimante.
*
Soberano soneto, suavemente
Segredas sempre (a)ssim, sociavelmente,
Suavíssimos, soberbos sons sentidos.
*
Sei-te sempre sincero e silencioso
Secundando-me o sonho, são, sedoso,
Secular sob os sons subentendidos.
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Maria João Brito de Sousa – 24.08.2018 – 14.30h
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
FÁBRICAS DE DEUSES
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Nas fábricas de deuses passam lentas
As minuciosas horas das rotinas
Desdobrando-se infindas em sebentas
De dogmas, penitências e doutrinas,
*
Ora pregando amor, ora agoirentas,
Induzindo a posturas assassinas
Muitas vezes terríveis e sangrentas,
Que alguns nos dizem ser acções divinas.
*
Raramente o produto fabricado
É mais que um pensamento alienado,
Embora muitos, muitos nunca entendam
*
Que o verdadeiro amor é bem diferente
Dessoutro que é vendido a tanta gente
Nas lojas que alguns doutos recomendam.
*
Maria João Brito de Sousa - 24.08.2018 – 11.36h
Imagem retirada da net, via Google
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
CHARADA POÉTICA
(soneto sem as vogais A, I e U)
*
Este pobre soneto de colete
Sente-se preso, torpe, tolo, lento;
Conhecedor do jogo, só promete
Escrevê-lo se o tempero for fermento.
*
Retomo o jogo, como me compete,
E se o som mo concede, logo o tento...
Porém nesse momento se derrete,
Como se gelo sob o sol sedento.
*
Revejo o Tejo. Doce Tejo nosso...
Norte? Nordeste? Onde me perco, posso
Esconder-me desse Tejo sofredor?
*
E prevendo esse Tejo neste jogo,
Se o vejo só rochedo e ferro e fogo,
Como crer nele e tê-lo por senhor?
*
Maria João Brito de Sousa – 04.08.2018 – 09.24h
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
UMA TARDE NO JARDIM – Sem a letra “E”
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Logo após as crianças saltitando
Virão os pais formando casalinhos.
Tudo junto, à distância, forma um bando
Pousando pouco a pouco nos banquinhos
*
À sombra do carvalho ou do arando.
Arrulham pombas, cantam passarinhos
No jardim, junto ao lago volitando,
Quais magnólias traçando altos caminhos.
*
Um pai, junto do filho já com sono,
Toca um braço tombado ao abandono.
A hora do jardim acaba agora.
*
Vai nos braços do pai, vai a dormir,
Mas inda brinca aos sonhos a sorrir,
Ainda rindo, inda ao sabor da hora...
*
Maria João Brito de Sousa – 05.08.2018 -19.04h
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
CONFRONTOS
*
Nascem versos a torto e a direito;
Aonde o dedo pouse, o verso emerge,
Inexplicado, urgente e com defeito,
Ou sem defeito, quando em som converge.
*
De carne, sangue e nervos sendo feito,
De nervos, sangue e carne não diverge
E pulsa-me nas veias que são leito
Do mesmo sangue que este corpo asperge.
*
Nascem-nos versos sem pedir licença;
Virámos costas, demos-lhes dispensa
E, de repente, sem nos darmos conta,
*
Nasceu mais um... mais um que, em rebeldia,
Se impõe, nos contradiz, nos contraria,
Nos conquista a vontade e nos confronta.
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Maria João Brito de Sousa – 21.08.2018 – 18.50h
Na sequência da leitura do soneto NASCEM VERSOS, de MEA
(escrito à pressa. Pode conter erros ortográficos, sintáticos, métricos ou tipográficos)
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
FORMA... E CONTEÚDO
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Imputo à minha própria estupidez
Alguma culpa; a que morrer solteira!
Não fiz asneira, tendo feito a asneira
De não prever a eterna cupidez.
*
Pra tudo o mais me sobra a lucidez
Mas, neste ponto, não vejo maneira
De detectar a abjecta ladroeira
Se mascarada, como dessa vez.
*
Não vejo poesia no que digo,
Nem vejo poesia no que escrevo...
Só no compasso de um formato antigo
*
Reconheço o poema a que me elevo
E a forma em que me encontro, em que me abrigo,
Pra falar do que devo e que não devo...
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Maria João Brito de Sousa – 18.08.2018 – 15.23h
publicado às 06:30
Maria João Brito de Sousa
O SONETO E EU
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Desde a mais tenra tenra idade o conheci,
Que meu avô paterno era escritor
E os tecia, ainda com fervor,
Nesse tempo já gasto em que nasci.
*
Se bem o conhecia, mais temi
Sua complexidade e seu teor...
Chamavam-me poeta, mas, valor
Nunca eu vira nos textos que escrevi.
*
Só aos cinquenta e cinco me atrevi
A dedilhar-lhe o verso e a compor
Um soneto qualquer, que já esqueci...
*
Não sei se era melhor, se era pior,
Do que este que vos deixo agora, aqui,
Mas sei que o preenchi de infindo amor!
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Maria João Brito de Sousa – 13.07.2018- 17.19h
publicado às 07:00