Maria João Brito de Sousa
EU, O LOBO
(Soneto de Coda)
Sou um lobo e nasci para predar
Quanto me baste pra me garantir,
Bem como a todo o fruto que gerar
Na compulsão de me reproduzir,
Todo o bicho passível de matar
A dureza da fome que eu sentir,
Que também eu a sinto a protestar
Quando o sustento vai tardando em vir...
Se te assusto nas noites de luar
C´o uivo prolongado que emitir,
Mais a mim me violento, se o calar!
Mais tu matas do que eu possa caçar
E bem mais do que a fome te exigir;
A ti, dono e senhor do teu mal-estar,
Que apenas caças para te exibir,
Que mais posso dizer-te pra mostrar
Ter, também, o direito de existir?
Maria João Brito de Sousa – 27.06.2018 – 13.48h
publicado às 08:23
Maria João Brito de Sousa
MIOPIA(S)
A musa está esgotada e já não esgrima
Os floretes dos versos com mestria;
A lâmina gastou-se, rima a rima,
E embotou-se-lhe o gume à fantasia.
Enverga uma armadura que abomina
Que a sufoca, que a aperta e que a arrepia,
Porque há questões que a musa não domina
Quanto às contradições da Poesia,
Por isso hesita e toda se sublima,
De florete na dextra, contra o clima
Que extrema, quando em extremos se extasia
Pois, crendo ver à frente uma obra-prima,
Avança e logo dela se aproxima,
Mas mais não vê que a própria miopia...
Maria João Brito de Sousa – 24.06.2018 – 13.14h
publicado às 09:14
Maria João Brito de Sousa
FUTURO IMPERFEITO
Num porto inseguro, um futuro imperfeito
Promete a seu jeito. Com jeito o esconjuro
Que a outro futuro, só outro, eu aceito;
Não muda o conceito, depois do que apuro!
Saltando algum muro, espraiada no leito
De um quarto desfeito pintado de escuro,
Nunca me descuro, mas pouco me enfeito;
Meu crivo é bem estreito, não tem nem um furo
E nem estrangulada por ferros de algemas
Fiquei afastada dos sons, dos fonemas,
Dos velhos poemas que nascem do nada
Na terra lavrada por falsos sistemas...
Meu fruto, entre os temas da voz divulgada,
Qual fruta bichada, só causa problemas.
Maria João Brito de Sousa – 20.06.2018 – 10.47h
publicado às 09:14
Maria João Brito de Sousa
SEMENTINHA
Ó minha língua, minha Língua-Mãe,
Por cá, cheirando a salsa picadinha,
A açorda de alho, a azeite e a sardinha
Pingando sobre o pão, como convém,
Por lá, temp´rada de óleo de dendê(m),
Bebendo água de côco ou caipirinha
E pondo, na muamba de galinha,
O gindungo, que ardeu mas soube bem...
Abriste em flor e nada mais detém
Os ventos que te levam muito além
Da “cosa nostra” desta terra minha,
Mas tem cuidado, não te arranque alguém
A raiz que frondosa te mantém
No chão de onde brotaste, sementinha!
Maria João Brito de Sousa - 26.06.2014 – 13.17h
(No hospital de Egas Moniz)
publicado às 12:06
Maria João Brito de Sousa
ROL DE VERSOS
Do mal que me governa ou desgoverna,
Do bem que eu faça ou deixe de fazer,
De Platão, quando engendra uma caverna,
Dos muitos que à caverna irão descer,
De uns tantos que a subiram sem lanterna,
Do Sol que nasce a cada amanhecer,
Da Lua quando prenha ou da taberna
Onde homem e mulher a vão beber,
Dos dias em que a noite é quase eterna,
Dos vivos que desistem de a viver,
Dos soldados de chumbo sem caserna,
Do chumbo que os atinge e faz morrer
E, deste rol de temas, a fraterna
Partilha dos poemas que eu escrever.
Maria João Brito de Sousa – 24.06.2018 – 18.09h
publicado às 07:57
Maria João Brito de Sousa
NAS ARTÉRIAS E VEIAS DA CIDADE
O sangue inunda as veias da cidade
Vindo da fonte humana que o contém,
E só por uns instantes se detém
Para beber um copo na Trindade,
Para dizer bom dia a quem lá vem,
Pra dar-se num abraço de saudade,
Pra comer uns natinhas em Belém,
Ou na Avenida que é da Liberdade.
Corre o seu sangue em puro descompasso
Do Marquês ao Terreiro que, do Paço,
Passou a ser do povo que é sa(n)grado,
E nessa imensa/infinda hemorragia,
Esvai-se a cidade inteira, dia a dia,
Ao som das mansas notas do seu fado.
Maria João Brito de Sousa – 22.06.2018 -15.48h
publicado às 09:09
Maria João Brito de Sousa
ALHO PORRO
Se à rua sais levando um alho porro
Para enfeitar a noite ao São João
E alguém, ao ver-te, grita por socorro,
Não sabendo o que trazes tu na mão,
Segue em frente. Nas ruas que percorro,
Na da Memória e na da Tradição,
Encontras quem recorde o que eu discorro
E te devolve, rindo, o gesto são.
O martelinho de hoje está distante
De trazer-me a alegria esfusiante
Do “porro” dos meus tempos de menina,
Quando o brandia em gesto triunfante
Ou, fingindo ter medo do tratante,
Me apressava a esconder-me em qualquer esquina.
Maria João Brito de Sousa- 23.06.2018 – 19.40h
publicado às 10:24
Maria João Brito de Sousa
SONETO AO POOOOOOSTE!!!
Escreve a ponte-de-lança – e vai lançada... ,
E falha numa nota – Assim, já foste!,
Mas nem a multidão se ergue exaltada,
Nem se ouve alguém gritar: - Soneto ao pooooste!
Continua a escrever... não se ouve nada,
Mas pode bem haver quem não desgoste
Da nota musical mais afinada
Que escanda entre jogadas que nem mostre...
Foi golo ou não foi golo? É sempre incerto
Torcer por quem da morte está tão perto
Que só sabe estar viva porque escreve
E não desiste de ir compondo um tango...
Alguns irão espalhar que “meteu frango”,
Mas mais nada lhe importa e... entra em greve.
Maria João Brito de Sousa -
Entre 18.06.2016 (primeira estrofe) e 18.06.2018 (estrofes seguintes)
publicado às 10:09
Maria João Brito de Sousa
TOLERÂNCIA ZERO
Mas onde e quando ouvi a mesma história?
Ouvi-a de Treblinka e de outros mais
Onde os filhos morriam sem os pais,
Sem um nome, sem tempo e sem memória
Em nome de uma abjecta, absurda glória
Por causa de um punhado de ideais
(que o foram, muito embora o não creiais...)
Engendrados de forma aleatória.
Quão perversa se torna a raça humana
Se se dizima e a si se desengana
Quando se extrema em sonho... ou pesadelo?
Como prever ou como prevenir
Toda a desgraça que estará por vir
Se se repete ainda este modelo?
Maria João Brito de Sousa – 21.06.2018 – 15.05h
Imagem retirada da Net, via Google
publicado às 09:32
Maria João Brito de Sousa
… ME APAGO, SE ACESA...
O crime das horas, nestas horas minhas,
É, quais libelinhas, quais aves canoras,
Serem sedutoras, mas também daninhas,
Não para estas linhas dardejando auroras,
Mas para as penhoras dos reis, das rainhas
Que deixam sozinhas as mãos produtoras,
Essas, sim, senhoras dos trigos, das vinhas,
Das frutas fresquinhas sempre tentadoras...
Deixando-me ilesa, correm muito lestas,
Passam pelas frestas, sopram sobre a mesa,
Levam de surpresa rascunhos, palestras...
São vivas arestas às quais fico presa;
Fundem-me à certeza de etéreas orquestras,
Estas horas. Nestas, me apago, se acesa.
Maria João Brito de Sousa – 19.06.2018 – 19.42h
Soneto dedicado ao poema O CRIME DAS HORAS, de António Codeço.
publicado às 10:28
Maria João Brito de Sousa
O ÚLTIMO DEGRAU
Beijou, espantado, o último degrau,
Saiu cambaleando até cair
Redondo e tão sem vida quanto um pau
Que não servisse mais, nem pra partir...
Dos passos dados, nenhum fora mau
E a este, nem cuidou de o prevenir;
Foi num rompante que passou a vau
O rio que separava o seu porvir,
Do caixão onde cumpre agora a morte,
Só porque, no degrau, foi a má sorte
Quem o veio buscar quando caiu.
Por mais que seja um homem fraco ou forte,
Pode perder da vida o passaporte
Por causa de um degrau que ninguém viu...
Maria João Brito de Sousa – 17.06.2018 – 18.10h
publicado às 09:10
Maria João Brito de Sousa
FALO DO QUE SINTO
(soneto hendecassílabo com rimas encadeadas)
Já mortos, no tempo, andam os valores
mas nascem “senhores” neste nosso chão
que serão, ou não, por formação doutores...
porém... estupores?!... Isso eu sei que são!
Com ou sem razão, a esses tais “senhores”
chamo ditadores e aos que a eles dão,
por bajulação, aplausos e louvores
chamo de impostores! Digam lá que não!?
Sempre fiz questão de escrever de falar...
sem medo apontar injustiças que vejo
jamais p’lo desejo de ser aclamado...
foi-me já legado! Sem me comparar
a Ary vou gritar, porque nele me revejo,
não sou nem almejo ser vate castrado!
Abgalvão
...*…
TAMBÉM DO QUE SINTO, FALO!
Também do que sinto falo sem pudor,
Sem mudar de côr. Sobre essas, não minto,
Nem douro, nem pinto valor que é valor,
Nem que erga o teor à dor que hoje consinto
E que evito e finto, seja como for...
Sem um só rubor, direi tudo o que sinto
Sem branco nem tinto que altere o sabor,
Melhor ou pior, do que é claro e distinto.
Fujo ao tal estrelato que não me seduz,
Que sempre reduz a memória do facto
Ao mero aparato de uns jogos de luz...
Isto me conduz e portanto delato
Maldade, mau trato e quanto os traduz
Porque os reproduz sem um termo... e a contrato!
Maria João Brito de Sousa – 18.06.2018 – 12.38h
Pablo Picasso - Self Portrait, 1907
publicado às 09:59