Maria João Brito de Sousa
TEMPO INSENSÍVEL
Soneto em versos de 11 sílabas (os meus preferidos)
A noite caíra encobrindo a cidade E as poças que a chuva da tarde fizera! Da minha janela soprava-me a espera Enquanto embalava, no colo, a saudade
Inspirei, absorto, a fria humidade Soltei o soluço que em mim retivera Pensando que bom, oh meu Deus quem me dera Ter hoje e agora quinze anos de idade
Mas sendo insensível o tempo não trava A louca corrida que o relógio grava E segue somando minutos e anos
Indif’rente a sonhos desejos e planos Lá vai me lembrando que ele ao ir passando De mim vai também minha vida levando.
Abgalvão (in Palavras com Alma)
BAIXOS-RELEVOS
(em versos de onze sílabas métricas)
“A noite caíra encobrindo a cidade”
Que em sombras desvenda seus becos, vielas,
Seus prédios mais altos e suas capelas
Que, de alvas, brilhavam sob a claridade.
“Inspirei absorta a fria humidade”,
Chorei sob um céu sem lua, nem estrelas,
Onde nada brilha... nem um rasto delas
No intenso negrume que agora me invade,
“Mas sendo insensível, o tempo não trava”
A lágrima em fuga que escorre e que lava
Memórias doridas, doridos enganos,
“Indif`rente a sonhos, desejos e planos”,
Prossegue incansável nas marcas que grava
E nem se dá conta de ter-me por escrava...
Maria João Brito de Sousa – 26.07.2017 – 14.45h
Imagem retirada do Google
publicado às 13:00
Maria João Brito de Sousa
COLHI CACHOS DE SOL
Colhi cachos de sol já à tardinha
E juntei-lhe uma fruta bem madura
Com água, gelo e gim. Fiz caipirinha
Que fui bebendo em copos de ternura
No olhar ficou em jeito de adivinha
O fulgor que o sol pôs nesta mistura
Senti-me ao fim da tarde uma rainha
Dourada como a mais bela escultura
Já a lua vestia de cambraia
Descalça entrei nas ondas duma praia
E apanhei nelas véus de renda fina
Cobri o rosto e andei sem rumo exacto
Pensamento vazio olhar abstracto
Nos pés descalços asas de menina
MEA
22/07/2017
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FAMILIAR(IDADES)...
“Colhi cachos de sol já à tardinha”,
Gomos de lua cheia e reluzentes
Bagos, desses que brotam duma vinha
De que outros se embebedam, desistentes...
“No olhar ficou um jeito de adivinha”;
Sabes, de saber feito, ou só pressentes,
De mim, quanto era meu? Que me mantinha
Assim, perseverante, entre indif`rentes?
“Já a lua vestia de cambraia”
Quando, no horizonte, o sol desmaia
E, fascinada, então, pelo poente,
“Cobri o rosto e andei sem rumo exacto”
Encontrando um irmão em cada gato
E, em cada cão sem dono, outro parente...
Maria João Brito de Sousa – 26.07.2017 – 11.25h
publicado às 11:47
Maria João Brito de Sousa
RENÚNCIA
A minha mocidade há muito pus No tranquilo convento da tristeza; Lá passa dias, noites, sempre presa, Olhos fechados, magras mãos em cruz... Lá fora, a Noite, Satanás, seduz! Desdobra-se em requintes de Beleza... E como um beijo ardente a Natureza... A minha cela é como um rio de luz... Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada! Empalidece mais! E, resignada, Prende os teus braços a uma cruz maior! Gela ainda a mortalha que te encerra! Enche a boca de cinzas e de terra Ó minha mocidade toda em flor! Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"
AFIRMAÇÃO
“A minha mocidade há muito pus”
No cantinho das coisas já passadas
Que guardo, dia a dia acumuladas,
Porque só a memória as reproduz...
“Lá fora, a noite, Satanás seduz!”
Mas eu que, renegando almas penadas,
Observo as gentes tristes e cansadas,
Deduzo cada medo que as traduz;
“Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada!”
- Só fecho os olhos quando, atordoada,
Possa o sono nublar-me a lucidez!
“Gela ainda a mortalha que te encerra!”
- E eu quero lá saber de quem me enterra,
Se morro por chegar a minha vez?!
Maria João Brito de Sousa – 12.07.2017 - 16.26h
publicado às 16:48
Maria João Brito de Sousa
Quero explicar-vos tudo e não consigo,
Pois falha-me a palavra, o verso manca
E quanto mais tentando ser-vos franca,
Mais sinto que as razões morrem comigo,
Pois se vislumbro o estro, esse estro antigo,
Logo a seguir bloqueio numa “branca”
E o poema que nasce, oscila e estanca
Como se fosse um estranho, um inimigo...
Sei estar precocemente envelhecida,
Falha de vista, pobre e tão dorida
Que nem vou tendo forças pr`a teclar,
Mas como hei-de afirmar que sou poeta,
Não sendo mais do que uma sinesteta
Que por tudo se deixa atrapalhar?
Maria João Brito de Sousa – 08.07.2017 -12.19h
publicado às 12:00
Maria João Brito de Sousa
FANTASIA DE NUVEM
Sou irmã dessa nuvem que chovia
Na tarde entristecida dum poeta
Escura e negra sem alma nem poesia
Escorrendo pelo bico da caneta
E quando o dia é escuro a noite fria
O luar é um fogo que inquieta
Fere-me os olhos, tira a fantasia
Eu viajo na cauda dum cometa
Pelas crateras negras desta vida
Em jeito duma névoa atrevida
Que tapa até a luz da lua cheia
E pela madrugada escorrem versos
Nos chuviscos que caem bem dispersos
Por entre velhas casas duma aldeia
MEA
5/07/2017
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HÁ-DE PASSAR...
“Sou irmã dessa nuvem que chovia”
Sobre um chão sequioso e tão crestado
Que nem uma só planta ali nascia
Porque cada raiz tinha murchado
“E quando o dia é escuro, a noite fria”
E mesmo o céu parece ter secado,
Nem uma só semente brotaria
Se não fosse esse chão dessedentado...
“Pelas crateras negras desta vida”,
Tarde ou cedo, uma nuvem, comovida,
Há-de passar chorando, há-de passar,
“E pela madrugada escorrem versos”
Sobre os torrões inférteis que, submersos,
Desatam a florir, sem hesitar.
Maria João Brito de Sousa – 08.07.2017 – 09.55h
publicado às 10:36