Maria João Brito de Sousa
Patrono: Florbela Espanca
Académica: Maria João Brito de Sousa
Cadeira: 06
ALMA PERDIDA
*
Toda esta noite o rouxinol cantou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma de gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!
*
Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente,
D`alguém que quis amar e nunca amou!
*
Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque ao ouvir-te adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!
*
Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh`alma
Que chorasse perdida em tua voz!...
*
Florbela Espanca
In "Livro de Mágoas"
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A VITÓRIA DO ROUXINOL
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"Toda esta noite o rouxinol chorou",
Ou fui quem lhe não soube interpretar
Um canto, que eu pensava soluçar
E era à vitória, quando a conquistou...
*
"Tu és, talvez, um sonho que passou",
Um eco do que um dia ousei sonhar
Sobre a alegria de poder cantar,
Que, chore, ou ria , nunca soçobrou...
*
"Toda a noite choraste... e eu chorei",
Porque amargura, apenas, vislumbrei
Nessa longa e nocturna melodia...
*
"Contaste tanta coisa à noite calma"
Que eu rendida chorei; levas-me a palma
Nas subtilezas d` alma da Harmonia!
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Maria João Brito de Sousa - 27.02.2017 - 12.07h
publicado às 15:12
Maria João Brito de Sousa
HÁ PALAVRAS QUE BAILAM NOS MEUS DEDOS
Há palavras que bailam nos meus dedos
E que zombam de mim, deste cansaço
Fazendo dos meus dedos seus brinquedos
Enquanto eles repousam no regaço
Vão juntinhas contando-lhes segredos
Pra que ao ouvi-los sintam embaraço
E plo papel se percam em enredos
Olvidando a fadiga em que me amasso
E devagar, em esforço cresce o verso
Ora algo indolente ora algo disperso
Troçando dos meus dedos vagarosos
Vai adquirindo forma de poema
Feito com as palavras de algum tema
E os versos, que cresceram rigorosos
MEA
24/02/2017
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O EMBRIÃO
"Há palavras que bailam nos meus dedos"
Seguindo a pulsação das próprias veias,
Compondo, ou recriando os seus folguedos,
Conforme a mente vai moldando ideias.
"Vão juntinhas contando-lhes segredos",
Arrancando e limpando as velhas teias
Que escondem, ou mascaram quantos medos
Possam vergá-las de quebranto, ou peias
"E devagar, em esforço, nasce o verso",
Como se em carne houvesse o próprio berço
E em sangue urdisse a própria concepção.
"Vai adquirindo forma de poema",
Quando a razão brindar cada fonema
Com todas as razões que há na paixão.
Maria João Brito de Sousa - 25.02.2017 - 11.44h
"Mulher Grávida" - Escultura de Pablo Picasso
publicado às 11:55
Maria João Brito de Sousa
Quando a revolta já não faz sentido,
Esgotada a chama de uma rebeldia,
Tudo parecerá estar diluído
Numa existência já sem serventia
Em que o verso parece ter perdido
O estro, a força e mesmo a valentia,
Que antes sentira haver-lhe permitido
Fazer sentido, enquanto o garantia.
Chega a derrota e crê-se, então, vencido
Por causa de uma simples avaria...
Assim se adia o verso, o não-nascido
Que, noutras circunstâncias, nasceria
Por algum tempo ainda. É bem sabido
Que cedo morre o Poeta, se não cria.
Maria João Brito de Sousa - 24.02.2017 - 11.02h
NOTA - O título deste soneto nasce do título daquele que, caso tivesse chegado a ser editado, seria o último livro do poeta António de Sousa, meu avô.
publicado às 11:59
Maria João Brito de Sousa
UM POUCO DE PRIMAVERA
Naquela verde relva do jardim
Há salpicos de vida já brotando
Com a brancura fresca do cetim
São mesa posta a pássaros em bando
Que saltitam por ela em frenesim
Ora ali voando ora debicando
Num bailado de voos sem ter fim
E em alegres chilreios vão rimando
Versos em que prometem Primavera
Em abraços voados pla atmosfera
Que nas manhãs de sol pintam no espaço
E expressam melodia tão fremente
Com destreza singela e inocente
Mudando a cada instante seu compasso
MEA
21/02/2017
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MÁTRIA
"Naquela relva verde do jardim",
Expressando a vida em cor, rejubilantes,
Há vidas que parecem não ter fim,
Que renascem tão vivas quanto dantes,
"Que saltitam por ela em frenesim"
Contrariando os mais recalcitrantes,
Pois Vida, ao renascer, renasce assim,
Em ciclos pré-datados e constantes...
"Versos em que prometem Primavera",
Toda a Vida os compõe, vindos da espera
Que precede as razões de cada dia
"E expressam melodia tão fremente",
Que nada, nem ninguém, nega ou desmente
Que seja, a Vida, a mãe dessa harmonia!
Maria João Brito de Sousa - 23.02.2017 - 09.40h
publicado às 10:17
Maria João Brito de Sousa
ÁGUAS
Águas da chuva são belos brilhantes
Delicados e frágeis a brilhar
Em gotas transparentes, cintilantes
Numa cama de flores, a sonhar
As águas do mar são ondas gigantes
Na imensidão perdida do olhar
Feitas de vento e sal, que estonteantes
No areal se permitem descansar
Águas do rio são leito de jovem
Que em seu curso a embalam e se movem
Como se fora berço confortante
As águas do granizo, sei que são
Em pérolas os sonhos de paixão
Dum cavaleiro audaz belo e galante
MEA
9/02/2017
ÁGUAS, TAMBÉM...
"Águas da chuva são belos brilhantes"
São transparentes lágrimas sem choro,
Ou névoas que, não qu`rendo estar distantes,
Se juntam pr`a formar límpido soro.
"Águas do mar são ondas gigantes"
Que vejo junto à costa, se demoro
Os olhos qu`inda as vêem como dantes
Desde o tempo distante em que hoje moro.
"Águas do rio são leito de jovem",
Pois também se evaporam, depois chovem
Pr`a, novamente, ao rio se irem juntando.
"As águas de granizo sei que são",
Não mais que a simples cristalização
Dessa mesma água, assim que for gelando...
Maria João Brito de Sousa -15.02.2017 -20.08h
publicado às 07:45
Maria João Brito de Sousa
DEIXAI ENTRAR A MORTE Deixai entrar a morte, a iluminada, A que vem para mim, pra me levar, Abri todas as portas par em par Como asas a bater em revoada. Que sou eu neste mundo? A deserdada, A que prendeu nas mãos todo o luar, A vida inteira, o sonho, a terra, o mar, E que, ao abri-las não encontrou nada! Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste? Entre agonias e em dores tamanhas Pra que foi, dize lá, que me trouxeste Dentro de ti?...pra que eu tivesse sido Somente o fruto das entranhas Dum lírio que em má hora foi nascido!...
Florbela Espanca
In, "Charneca em Flor"
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ORDEM DE PRORROGAÇÃO DE SENTENÇA
Desvia essa gadanha, ó velha Parca,
Que por mais alguns anos ta dispenso,
Pois, se ontem te venci, melhor te venço
Enquanto em vida deixo a minha marca
E enquanto for levando a minha barca
Por entre um nevoeiro espesso, denso,
Prossigo nesta rota do bom-senso
Assim que a bujarrona se me encharca
Do sal marinho, quando o vento o traz
À minha barca que demanda a paz
No mar de um Sonho que em tempos me coube
E a todas as barreiras liquefaz;
Aos sonhos que me ficam para trás,
Não há, pr`a já, gadanha que mos roube!
Maria João Brito de Sousa - 14.02.2017 - 10.37h
publicado às 10:45
Maria João Brito de Sousa
Neste silêncio triste embalo os mortos
Entre asas fracas, flácidas, pendentes,
E sobre este regaço, os mesmos hortos
De onde ervas emanavam, persistentes,
Cobrem-se já de caules secos, tortos,
Negros, mirrados, quase transparentes,
Quais longos mastros nos distantes portos
Da rota imaginária dos ausentes...
É outra, no entanto, a minha rota,
E se hoje reavivo a estranha frota,
Razões bem fortes tenho pr`a fazê-lo,
Pois muito se assemelha ao que descrevo
A angústia de não ter para o que devo,
Embora eu mude o esboço a cada apelo.
Maria João Brito de Sousa - 06.02.2017 - 13.23h
publicado às 19:10
Maria João Brito de Sousa
O BURRO
Vai ele a trote, pelo chão da serra,
Com a vista espantada e penetrante,
E ninguém nota em seu marchar volante,
A estupidez que este animal encerra.
Muitas vezes, manhoso, ele se emperra,
Sem dar uma passada para diante,
Outras vezes, pinota, revoltante,
E sacode o seu dono sobre a terra.
Mas contudo! Este bruto sem noção,
Que é capaz de fazer uma traição,
A quem quer que lhe venha na defesa,
É mais manso e tem mais inteligência
Do que o sábio que trata de ciência
E não crê no Senhor da Natureza.
Patativa do Assaré (1909-2002)
In "O Secular Soneto"
(osecularsoneto.blogsot.pt)
BURRO(S)
"Vai ele a trote, pelo chão da serra,"
Carregando no lombo a carga alheia,
Porque burro de carga não coxeia,
Nem quando em sujo lodo um casco enterra.
"Muitas vezes, manhoso, ele se emperra"
Causando ao dono enorme cefaleia,
Quando, na hora de voltar à aldeia,
Entenda ser demais quanto carrega...
"Mas contudo! Este bruto sem noção"
De que quem ganha a teima é o patrão
Que à chicotada o quebra, tarde ou cedo,
"É mais manso e tem mais inteligência"
Do que muito "finório" de aparência
Que nunca diz que não porque tem medo.
Maria João Brito de Sousa - 02.02.2017 -15.19h
publicado às 12:00
Maria João Brito de Sousa
INDEPENDÊNCIA
Recuso-me a aceitar o que me derem. Recuso-me às verdades acabadas; recuso-me, também, às que tiverem pousadas no sem-fim as sete espadas. Recuso-me às espadas que não ferem e às que ferem por não serem dadas. Recuso-me aos eus-próprios que vierem e às almas que já foram conquistadas. Recuso-me a estar lúcido ou comprado e a estar sozinho ou estar acompanhado. Recuso-me a morrer. Recuso a vida. Recuso-me à inocência e ao pecado como a ser livre ou ser predestinado. Recuso tudo, ó Terra dividida! Jorge de Sena, in 'Coroa da Terra'
... OU MORTE.
"Recuso-me a aceitar o que me derem",
Enquanto o não pagar. E pago foi
Por estas mãos que quase nada auferem
Deste trabalho infindo que as corrói.
"Recuso-me às espadas que não ferem"
E à forja em que uma espada se constrói,
Pois, de todos os gumes que me esperem,
Há-de ser sempre o meu que mais me dói.
"Recuso-me a estar lúcido ou comprado"
E recuso-me a ser manipulado
Pelas razões de outra razão qualquer.
"Recuso-me à inocência e ao pecado"
E a viver sorrindo conformado,
Porque aceitá-lo obriga-me a morrer!
Maria João Brito de Sousa - 02.02.201 - 08.23h
publicado às 12:00
Maria João Brito de Sousa
PERDI-ME NUM POEMA
Perdi-me quando entrei por um poema
Que de versos abertos convidava
A um passeio livre sem problema
Plas sílabas e estrofes que eu sonhava
E eram tantas palavras sobre um tema
Tantas quadras dispostas que mostrava…
Que entrando lá fiquei nesse dilema
De nem sequer saber por onde andava
Equipei-me dum lápis e papel
E pra que ao meu querer fosse fiel
Nele refiz os versos dos caminhos
Perfumei-os com rosas e alecrim
Depois criei-lhe um céu só para mim
E bailei-o ao som de cavaquinhos
MEA
31/01/2017
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O BAILADO
Perco-me mais e mais a cada dia,
Nos versos, rimas, notas musicais,
Eu que, quando perdida, encontro mais
Em termos de abundância e de harmonia
E que quanto mais pobre e mais vazia,
Mais rica vou ficando... não notais
Que os versos podem ser paradoxais
Quando engendrando mais que a fantasia?
Garantidos os bens essenciais,
Ao ritmo de alguns versos mais leais
O pouco que nos sobre é garantia
Do nascimento dos originais
Que nos brotam de dentro e, se os juntais,
Bailam numa perfeita sintonia.
Maria João Brito de Sousa - 01.02.2017 - 14.06h
publicado às 12:00
Maria João Brito de Sousa
SONETO A UM VERSO "EM BRUTO"
Gosto-te, ó verso brusco, asselvajado,
Na força em que, apressado, mal respiras
E fumegas no cano, enquanto as miras
Nem foram necessárias. Disparado,
Saído num rompante, alvoroçado,
Sem que pedisses contas, nem às liras
Que quase sempre escutas quando admiras
Requintes de outro irmão mais demorado...
Que esta "embalagem" não te fica bem?
Quem to ousa dizer? Afinal, quem
Te poderia impor tempos dif`rentes?
E sorrindo, apesar de não ter dentes,
Sei que engendrar-te, não me tornou mãe,
Mas em quem te entendeu como ninguém...
Maria João Brito de Sousa - 31.01.2017 - 11.05h
NOTA - Por favor, não se assustem com a imagem que é meramente ilustrativa da metáfora do disparo...
publicado às 11:36
Maria João Brito de Sousa
UM AÇUDE DE ÁGUAS INQUIETAS
Tenho tantas palavras por dizer
E sei nelas tal força pra sair
Que se calcam e falham de nascer
Quando lhes vou dar tempo pra fluir
Deste dia nublado a embater
Nas vidraças querendo-me exaurir
Das forças que me restam por não ver
A clara luz do sol que me faz rir
E do mar a saudade que me dói
Que aninhada em meu peito me corrói
Assim latente traça esta inquietude
Que atropela o que penso e me confunde
E que neste dispor faz que me afunde
Nas águas inquietas deste açude
MEA
29/01/2017
TEMPOS DE SECA
É nos tempos da seca que a planura
Se enche das crostas áridas, gretadas,
Da terra sequiosa, ardente e dura,
Que implora a bênção de águas derramadas.
Se às vezes me sei terra, sou perjura
Quando no rio revejo, bem espelhadas,
Aspirações comuns, árdua procura
Da foz... ou das palavras consumadas.
Virá, ou não, o tempo de uma enchente?
Pr`á terra, sim, mas nunca sabe, a gente,
Quanto tempo esta sede irá durar
E enquanto a seca queima a terra ardente,
Lá vai seguindo o rio, que é sempre em frente
Que alcança a foz aonde abraça o mar...
Maria João Brito de Sousa - 30.01.2017 - 11.15h
publicado às 11:22