Maria João Brito de Sousa
APOGEU POÉTICO AVL
Tema: GRATIDÃO
Segmento: Clássico
Patrono: Florbela Espanca
Académica: Maria João Brito de Sousa
Cadeira: 06
GRATIDÃO
(..."... não saiba a tua mão esquerda, o que faz a tua mão direita" - Mateus, 6, 3)
Que maior recompensa pode haver
Pr`a quem possa estender a mão que ajuda,
Do que saber que uma aflição se muda
Num momento de alívio e de prazer?
Há quem só saiba dar pr`a receber
Aplauso, ou recompensa bem choruda,
Porque não sabe dar. Que não se iluda;
Joga segundo as regras do poder!
Que importa quem receba o recebido,
Se mesmo estando grato, é bem sabido
Que pressente o que anseia aquela mão
Que se lhe estende enquanto jaz caído
À qual, aliviado, mas dorido,
Expressa, contudo, a sua gratidão?
Maria João Brito de Sousa - 29.12.2016 - 17.45h
publicado às 12:00
Maria João Brito de Sousa
FOLHAS OUTONAIS
Julguei pintar imagens outonais
De folhas moribundas pelo chão
Soando nos meus pés tão musicais
De acordes dados pela solidão
Sombrios rostos tornam-se banais
Passam por mim, tremenda confusão
Na falsa ilusão serem imortais
Esquecemos que há no corpo um coração
Caem folhas dos ramos do meu peito
As folhas outonais já ressequidas
De tanto sol que enfrentam diariamente
Conseguirei dobrar este conceito
Ser rei dum reino de árvores despidas
Ser cego e mesmo assim ver toda a gente?
António Codeço
AUTO-RETRATO
"Julguei pintar imagens outonais",
Mas foi o meu retrato que pintei
Em pinceladas quase acidentais
Sobre o branco da tela em que as lancei.
"Sombrios rostos tornam-se banais"
E na banalidade me espelhei,
Confundindo esses traços vegetais
Com este, muito humano, em que os pensei.
"Caem folhas dos ramos do meu peito"
Quando o vento outonal sopra a favor
Desta minha cegueira indesmentida...
"Conseguirei dobrar este conceito",
Dobrada em lucidez, saber-me expor
Nos traços, meus também, dessoutra vida?
Maria João Brito de Sousa - 30.01.2017 - 08.36h
publicado às 09:24
Maria João Brito de Sousa
FERMOSO TEJO MEU...
Fermoso Tejo meu, quão diferente
te vejo e vi, me vês agora e viste:
turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
claro te vi eu já, tu a mim contente.
A ti foi-te trocando a grossa enchente
a quem teu largo campo não resiste;
a mim trocou-me a vista, em que consiste
o meu viver contente ou descontente.
Já que somos no mal participantes,
sejamo-lo no bem. Ó quem me dera
que fôramos em tudo semelhantes!
Mas lá virá a fresca primavera:
tu tornarás a ser quem eras d'antes,
eu não sei se serei quem d'antes era.
Francisco Rodrigues Lobo - 1580/1622
(Apud Carolina Michaëlis de Vasconcellos, "As Cem
Melhores Poesias Líricas da Língua Portuguesa"—
Londres, 1910).
Nota - Soneto e dados bibliográficos retirados do blogue "O Secular Soneto"
ROUBANDO UM BEIJO AO TEJO
"Fermoso Tejo meu, quão diferente"
me pareces do rio que outrora amei;
vejo-te tão distante que nem sei
se deste estranho amor ficaste ausente...
"A ti foi-te trocando a grossa enchente",
a mim foi-me moldando o mar que ousei,
o sonho feito barca em que embarquei
e a minha rebeldia impenitente...
"Já que somos no mal participantes"
e havendo um mesmo mar à nossa espera,
saibamos, tu e eu, ser bons amantes...
"Mas lá virá a fresca primavera :"
tornar-te-ás mais brando, eu, mais severa,
e um beijo não nos rouba mais que instantes...
Maria João Brito de Sousa - 29.01.2017 - 11.08h
publicado às 11:53
Maria João Brito de Sousa
PALCO DA VIDA
É imensa esta estrada este caminho
É um palco real com bastidores
Onde actores fizeram o seu ninho
Nas brancas asas de ágeis beija-flores
Encenam seus papéis em desalinho
Que a fadiga provoca-lhes as dores
Que albergam em seu peito num cantinho
Mitigadas um pouco plos amores
Sem saberem da peça qual o fim
Lutam pelo seu próprio camarim
E fazem desta luta seu sustento
Quando se acaba a peça desce o pano
Acaba-se o teatro do engano
Sobra apenas cansaço e desalento
MEA
24/01/2017
IMPROVISO(S)
Sabendo que é perfeita, a analogia,
Em nada a contradigo e se a acrescento
É porque prometi que assim faria,
Se me sobrasse um nada de talento;
Escrevo umas linhas, nesta tarde fria,
Para o papel da vida em que me invento
E abuso duma mão que mal me guia
Na criação de enredo e de argumento...
Neste palco da vida, é sempre assim,
Mesmo na solidão do camarim,
Actuo e vou da lágrima aos sorrisos,
Mas quando cai o pano é mesmo o fim,
Não da Peça da Vida, mas de mim,
Das minhas deixas, dos meus improvisos...
Maria João Brito de Sousa - 26.01.2017 - 17.10h
Imagem - Fotografia de Phil Mckay
publicado às 12:00
Maria João Brito de Sousa
REPENSANDO O VAZIO
Entrei no meu vazio escurecido
Por túneis que cavei e construí
E onde guardei oculto meu bramido
Que em abrigos de plumas eu escondi
Dei-lhe voz, dei-lhe asas, num rugido
E ao esvoaçar de mim sei que cresci
E sonhei-me num porto já esquecido
Moldando do mar ondas que vesti
Entrancei nos cabelos o luar
Que descendo tirou o sono ao mar
E neles me encontrei em novo eu
Raiei de rouxinol e voei calma
Dei ao vazio tons que trago na alma
Dos túneis e ruínas fiz meu céu
MEA
25/012017
NEGANDO O VAZIO ABSOLUTO
"Entrei no meu vazio escurecido"
E logo o preenchi da claridade
Do verbo, nesse instante pressentido,
E da sua sonora intensidade...
"Dei-lhe voz, dei-lhe asas, num rugido"
Fiz ecoar, nas ruas da cidade,
A canção, muito acima do ruído
E o sonho, muito acima da ansiedade...
"Entrancei nos cabelos o luar",
Com mil cuidados, fi-lo então brilhar
Como um pequeno sol, quanto bastasse;
"Raiei de rouxinol e voei calma"
Porque o vazio tão só levava a palma
Se ao vazio dos vazios me não negasse!
Maria João Brito de Sousa - 26.01.2017 - 09.59h
publicado às 11:20
Maria João Brito de Sousa
Eu, que não roubei pão, nem o vendi,
Da mesma forma tenho de o comer,
Mas fá-lo-ei tão só pr`a não morrer,
Que a morte (in)certa nunca eu me rendi
E sempre afirmarei que, se o comi,
Foi só para o poder contradizer;
Ao pão que o demo amassa pr`a vender
E à rija côdea com que o cubro aqui.
Não lha vendo, nem compro, e se lha como,
É na clara intenção de ver se o domo
Usando a minha imensa teimosia,
Mas porque todo o pão contém fermento,
Da mesma levedura eu me alimento
E dela me acrescento a cada dia...
Maria João Brito de Sousa 25.01.2017 - 15.27h
Nota - Soneto escrito na sequência da leitura do poema "Esse Mesmo Pão" de Vergílio de Sena.
publicado às 12:00
Maria João Brito de Sousa
JORNAIS....
Folhas! Um maço delas, cor da neve!
Pouco a pouco elas vão ficando escuras
Com as letras pintadas duma greve,
Das guerras ou até legislaturas
Em letras garrafais ali se escreve
Para que se façam rápidas leituras.
Em pormenor também lá se descreve
Impressas as imagens de amarguras
Nessas folhas há tanta informação
Palavras escritas cheias de emoção
De análise, censura, sentimento
Serão por vezes falsas, outras reais
Há, porém, nas palavras dos jornais
Um excessivo poder, algo sedento
MEA
23/01/2017
O QUARTO PODER
Não fora a mão que o doma a dos burgueses
E os ricos quem lhe paga os ordenados,
Seria, o Poder Quarto, as mais das vezes,
A voz dos povos livres, revoltados,
Mas pelas leis do lucro, quer "fregueses"
E explode em escandaleiras, dando brados,
Contradizendo, alguns dos que mais prezes,
Outros, bem menos lidos e comprados.
Quer saibamos, quer não, tem o poder
De moldar-nos conforme convier
Às ambições do grande capital
E, pr`a fazer de nós quanto quiser,
Basta-lhe, estando atento, obedecer
A quem proclame o bem, fazendo o mal...
Maria João Brito de Sousa - 25.01.2017 - 12.00h
NOTA - Com o meu pedido de desculpas a todos os bons jornalistas que vão resistindo por esse mundo fora...
Imagem retirada do Google
publicado às 12:49
Maria João Brito de Sousa
QUISERA SER…
Quisera ser a brisa perfumada Que vem da rama fresca do pinheiro Fazer dos teus cabelos a morada E soprar-te ao ouvido o dia inteiro
Quisera ser a onda bem picada Se nela te fizesses marinheiro E lá no alto mar de vela içada Nosso barco do amor, nosso veleiro
Quisera ser a chuva de Verão Orvalhando teu rosto de paixão E em teus lábios deixar frugal pecado
Quisera ser o ar, a luz das estrelas Fragrância duma flor, chama de velas Para mais te sentires remansado
MEA 22/01/2017
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"TAKE ONE"
(Luzes, Câmaras, Acção!)
"Quisera ser a brisa perfumada",
Ou mesmo uma nortada que, em crescendo,
Fosse, às tantas, tangendo entusiasmada,
As espias que a Barca vão sustendo.
"Quisera ser a onda bem picada"
Que por um quase nada a está vencendo,
Porquanto de repente, agigantada,
Da proa até à gávea a vai escondendo...
"Quisera ser a chuva de Verão"
Pr`a chorar-te, em sequela, a convulsão
Nascida de um naufrágio, que o não foi;
"Quisera ser o ar, a luz das estrelas"
E, rasgado o guião, ver nascer delas
Outra Barca sem velas, nem herói.
Maria João Brito de Sousa - 23.01.2017 - 18.06h
publicado às 08:16
Maria João Brito de Sousa
Dar-vos-ia o que tenho, nada tendo;
O intenso travo a sal do mar que sou,
A fonte de onde o verso me brotou,
As mãos com que costuro e me remendo,
A dúvida, a certeza e quanto entendo
De uns dotes com que a vida me dotou,
A beleza que tive e já murchou,
A musicalidade a que me prendo,
A rosa, o espinho, a força, o estro, a chama
E tudo, tudo aquilo a que me agarro
Pr`a manter-me de pé, fugindo à cama...
Poeta sobre humanos "pés-de-barro",
- que mil vezes prefiro a ´mãos com lama`.. -
Eu dar-vos-ia o céu... por um cigarro!
Maria João Brito de Sousa - 20.01.2017 - 16.11h
publicado às 21:30
Maria João Brito de Sousa
DEVANEANDO....
De olhos cerrados vejo o mar imenso O mar azul sem fim que beija a areia Com um véu de espuma branco e tão intenso Que tece nela favos de colmeia
Abraça a rocha e faz-se ali suspenso Em farrapos que voam como teia E afastam-se agitando fugaz lenço
De rendilhados claros, em colcheia
Vai, e de novo volta noutro instante Umas vezes sereno outras gigante Naquele balouçar que me adormece
Que me enleva e me faz de mim sair Levando-me nas vagas, a dormir Nesse sonho de brisa que me aquece
MEA 19/01/2017
(RE)CONSTRUINDO
"De olhos cerrados vejo o mar imenso",
Meu berço, meu amante e meu irmão
De um mundo imaginado, ao qual pertenço
Em toda a minha humana dimensão
"Abraça a rocha e faz-se ali suspenso",
Como se eu fora a rocha, a suspensão,
Ou seu cais derradeiro, o meu consenso,
E a sua meta, a minha aceitação...
"Vai, e de novo volta noutro instante";
Ora explodindo em espuma, ora distante,
Marcando, compassado, o seu vaivém
"Que me eleva e me faz de mim sair"
Pr`a ser (re)construída ao descobrir
Na explosão, todo o sal que o mar contém.
Maria João Brito de Sousa - 20.01.2017 - 09.31h
publicado às 21:30
Maria João Brito de Sousa
SONETO DE MAL AMAR
Invento-te recordo-te distorço a tua imagem mal e bem amada sou apenas a forja em que me forço a fazer das palavras tudo ou nada. A palavra desejo incendiada lambendo a trave mestra do teu corpo a palavra ciúme atormentada a provar-me que ainda não estou morto. E as coisas que eu não disse? Que não digo: Meu terraço de ausência meu castigo meu pântano de rosas afogadas. Por ti me reconheço e contradigo chão das palavras mágoa joio e trigo apenas por ternura levedadas.
Ary dos Santos, in 'O Sangue das Palavras'
SONETO DE MAL-LEMBRAR
"Invento-te recordo-te distorço"
Essa velha memória desgastada
Pelo tempo passado, pelo esforço,
Pela estrofe que passa, desgarrada.
"A palavra desejo incendiada";
Erro de paralaxe, ou óbvio escorço
Duma memória em versos recriada
Que é, da figura humana, apenas torso.
"E as coisas que não disse? Que não digo (:)"
Sobre as fomes de um pão que encontra abrigo
Em quadras e sextilhas (en)cantadas?
"Por ti me reconheço e contradigo"
Que andei de verso em verso, qual mendigo
Da esmola das canções que são rimadas.
Maria João Brito de Sousa - 18.01.2017 - 11.02
No dia do 33º aniversário da sua partida.
publicado às 21:20
Maria João Brito de Sousa
UM MUNDO ONDE NÃO SEI ENTRAR
Há um mundo só teu que não conheço
Onde não sei entrar de tão fechado
Mundo misterioso, tão avesso
Que te atormenta, triste e baralhado
Olhas de olhar perdido e não pareço
Quem um dia andejou plo teu passado
Por quem tu declaraste teu apreço
Infindo, teu afecto ilimitado
Não me encontras em ti! Eu não sou eu!
E procuras por mim! E a dor cresceu!
E o meu sorriso dói-me ao ver-te assim
Nesse mundo onde o sol ficou tapado
Deixando o teu eu sujo e sepultado
Nessa amargura atroz que não tem fim
MEA
14/01/2017
UM MUNDO QUE APENAS INTERPRETO
ou IDENTIDADE(S)
Em cada um de nós, um universo,
Um poço infindo, um mundo pessoal
Íntimo, mas sensível e diverso
Do todo que nos veste, no plural,
Um algo indesvendável, controverso,
Profundamente nosso, uno, integral
Que, ao vestir-nos por dentro, anda disperso
E que ao amargo, ou doce, é transversal.
Divisível no génio, ou na loucura,
Durará quanto a vida a nós nos dura
E, tanto quanto sei, perde-se então,
Mas, apagada aquela chama acesa,
Perdida a vida à qual já esteve presa,
Muitos vão perguntar: - Está morta, ou não?
Maria João Brito de Sousa - 15.01.2017 - 11.40h
Imagem - "Cabeza de Mujer", Pablo Picasso
publicado às 21:30