Maria João Brito de Sousa
OS PESCADORES
Saem para alto mar, os pescadores
Nos barcos levam redes pro pescado.
Esquecem alegrias e até dores
E enfrentam o mar bravo, revoltado
Fazem daquela noite os cobertores.
Pla aurora com o barco carregado
vendo já o horizonte doutras cores
Voltam ao areal tão almejado
Descarregado, o peixe vai pra lota
E de voo rasante uma gaivota
Junta-se à cerimónia num bailado
-Venha cá ver freguês, peixe fresquinho
De boa qualidade. Baratinho!
Chamam quem quer comprar; neste cantado
MEA
19/11/2016
FAINA INCERTA
"Saem para alto mar os pescadores"
Que a faina é dura, mas a fome aperta
E há que alimentar filhos menores
Que aguardam, dessa faina, a volta incerta.
"Fazem daquela noite os cobertores"
E, do luar, lençóis, quando o alerta
Das vagas a crescer, sempre maiores,
Lhes chicoteia o bote e os desperta.
"Descarregado o peixe vai pr`a lota",
Sonhava um pescador, mas a derrota
Do sonho morre ao som do mar revolto;
"- Venha cá ver, freguês, peixe fresquinho!"
Evoca o pescador, mas foi baixinho
Que apenas murmurou; - "Desta, não volto..."
Maria João Brito de Sousa 28.11.2016 - 12.50h
publicado às 11:06
Maria João Brito de Sousa
AMOR, RAZÃO, JUSTIÇA E PAZ.
Eu queria libertar a minha ‘sperança… acreditar no mundo que há-de vir, queria querer, antever e pressentir um mundo de razão e confiança…
Queria afastar de mim a má lembrança para poder dizê-lo sem mentir… que creio no presente e no porvir e que s’esperam tempos de bonança.
Pudesse olhar o mundo num sorriso… Dizer que estava a ver o paraíso… p’ra lá de ser cretino eu era audaz
Mas…posso eu acaso… em consciência dum mundo aonde impera a violência ‘sperar amor, razão, justiça e paz ?...
Matos Serra
*
SONETO DA MADURA IDADE
"Eu queria libertar a minha `sperança",
Deixar de duvidar, ter só certezas,
Morar dentro de um sonho, entre princesas,
Elfos e fadas. Velha, mas criança!
"Queria afastar de mim a má lembrança"
De algumas, ou de todas as tristezas
E exp`rimentar as glórias das burguesas
Diante da conquista da abastança.
"Pudesse olhar o mundo num sorriso"
E - posso garantir! - perdera o siso,
Bem como o que em bom-senso me traduz,
"Mas... posso eu acaso... em consciência"
Ansiar pelas trevas da demência,
Quando, por fim, vislumbro alguma luz?
Maria João Brito de Sousa - 28.11.2016 -19.36h
publicado às 11:05
Maria João Brito de Sousa
IMPÔS-SE A RAZÃO ACIMA DAS RAZÕES
Houve no céu farrapos escurecidos
Que calaram o sol com a cortina
Que desceu sobre os dias então idos
Sem haver neles débil lamparina
E foram dias, meses, tão temidos
Sem neles perceber luz cristalina
Asfixiando medos e gemidos
Que este fogo ateavam em surdina
E quantos mais passavam mais queimava
Mais me faziam triste e me inflamava
Ateando em mim a chama da razão
Porém, porque a razão se impôs acima
De todas as razões, um raio anima
E brilhou de luz plena de clarão
MEA
24/11/2016
DEPOIS DA TEMPESTADE...
"Houve no céu farrapos escurecidos"
E calaram-se as musas que, assustadas,
Procuravam seus versos diluídos
No vapor dessas nuvens tão cerradas.
"E foram dias, meses, tão temidos"
E foram tantas noites acordadas
Que os versos lhes murcharam, já esquecidos,
E as rimas se renderam, já cansadas.
"E quantos mais passavam, mais queimava"
Aquela frustração que as dominava
Depois de tanto os procurar em vão,
"Porém, porque a razão se impôs acima",
O Sol voltou a expor-se em cada rima
Dos versos semeados pelo chão.
Maria João Brito de Sousa - 25.11.2016 -11.24h
publicado às 10:30
Maria João Brito de Sousa
A CHEGADA DO INVERNO
Ele fez-se anunciar. E veio rude Das nuvens caiu choro de tristeza E as lágrimas da chuva em altitude Foram pérolas brancas de beleza
Pelas serras cobrindo a negritude Imposta pelo fogo à natureza Há cândidos lençóis em plenitude Simbolizando manto de pureza
Arvoredos já nus gemem lamentos Quando os sopros gentios desses ventos Lhes arrancam os troncos ressequidos
Enquanto lá por fora ainda neva Nas lareiras há chama que se eleva Deixando assim os lares aquecidos
MEA 25/11/2016
SOBREVIVENDO...
"Ele fez-se anunciar. E veio rude"
Nas vergastadas de Éolo, em protesto
Contra quem lhe resiste e desilude
A prepotência do tirano gesto.
"Pelas serras, cobrindo a negritude",
Sobra um resto de verde. Ainda um resto,
Como se nos bastasse essa atitude
De um verde resistente, firme, honesto.
"Arvoredo já nus gemem lamentos"
Sobre os terrenos pardos, lamacentos,
E sobre os tiritantes caminheiros;
"Enquanto lá por fora ainda neva",
Cá por dentro, rebelde, enfrento a treva
Nas glosas e na cinza dos cinzeiros...
Maria João Brito de Sousa - 26.11.2016 - 11.55h
publicado às 10:50
Maria João Brito de Sousa
SONETO PRESENTE
Não me digam mais nada senão morro aqui neste lugar dentro de mim a terra de onde venho é onde moro o lugar de que sou é estar aqui. Não me digam mais nada senão falo e eu não posso dizer eu estou de pé. De pé como um poeta ou um cavalo de pé como quem deve estar quem é. Aqui ninguém me diz quando me vendo a não ser os que eu amo os que eu entendo os que podem ser tanto como eu. Aqui ninguém me põe a pata em cima porque é de baixo que me vem acima a força do lugar que fôr o meu José Carlos Ary dos Santos, in "Resumo"
SONETO DE "ANTES QUEBRAR QUE TORCER"
E que posso dizer-te que não saibas
Melhor dizer do que eu jamais direi?
Poeta, não há sonho em que não caibas,
Nos sonhos infindáveis que eu sonhei,
Nem há garra maior, mais ternas raivas,
Nem palavras, das tantas que engendrei,
Nem unhas com que as laive como as laivas,
Nem dedos, nem paixão, nem regra, ou lei,
Mas, vender-me? Isso não, nunca o faria!
Como tu, mais depressa quebraria
Do que me vergaria à adulação
E pata que me pise é pata morta,
Que eu mesmo sendo fraca, sei ser "torta"
E sei, tal como tu, dizer que não!
Maria João Brito de Sousa - 24.11.2016 - 18.29h
publicado às 09:24
Maria João Brito de Sousa
E POR VEZES
E por vezes as noites duram meses E por vezes os meses oceanos E por vezes os braços que apertamos nunca mais são os mesmos E por vezes encontramos de nós em poucos meses o que a noite nos fez em muitos anos E por vezes fingimos que lembramos E por vezes lembramos que por vezes ao tomarmos o gosto aos oceanos só o sarro das noites não dos meses lá no fundo dos copos encontramos E por vezes sorrimos ou choramos E por vezes por vezes ah por vezes num segundo se evolam tantos anos
David Mourão-Ferreira, in 'Matura Idade'
PORÉM...
Noutras vezes, porém, os dias voam
E as noites são parcelas de segundos
No ciclo biológico dos mundos
Que aos sonhos dos humanos não perdoam
E, passando a voar, nos atordoam
O estremunhado sono em espasmos fundos,
A nós que aqui provamos ser fecundos
Na esp`rança de que uns deuses se condoam...
Passageiros da vida, é no naufrágio
Que temos cais seguro e prometido,
Votado e assegurado por sufrágio
Da própria natureza que nos gera...
(pois não! Não nos foi nunca garantido
mais tempo do que o tempo desta espera)
Maria João Brito de Sousa - 24.11.2016 - 14.36h
publicado às 09:45
Maria João Brito de Sousa
QUANDO A LUA TARDAVA DE LUAR
Bebi o néctar fresco desse olhar
Numa tarde ofuscada plo sol pôr
Quando a lua tardava de luar
E as sombras se alongavam sem pudor
E, esqueci-me das horas nesse mar
Nas ondas encrespadas pelo amor
Que vão adormecendo devagar
Num arrasto espumoso de candor
Havia no céu lápis de carvão
Que peenchiam nuvens em fusão
Na noite que beijou restos da lua
Lentamente caíram gotas frias
Que afagaram meu corpo em cortesias
Cobrindo minha pele ainda nua
MEA
23/11/2016
OUSADIAS DE UMA POETA SINESTETA
"Bebi o néctar fesco desse olhar",
Provei o pão das bocas mais famintas,
Mas fui matando a fome num manjar
Composto por pincéis, telas e tintas
"E esqueci-me das horas nesse mar"
Que também será meu, caso o consintas,
Pois que, sem to pedir, te ouso glosar
Com letras de impressão, negras, retintas...
"Havia no céu lápis de carvão"
E eu, que os tinha mesmo ali, à mão,
Usei-os pr`a esboçar-te algumas glosas;
"Lentamente caíam gotas frias"
Sobre estas letras que outras ousadias
Coloriam de azuis, brancos e rosas...
Maria João Brito de Sousa - 23.11.2016 -17.53h
publicado às 12:00
Maria João Brito de Sousa
FUI BARCO AMARRADO NO CAIS
O dia despertou pardo e cinzento E, caindo em cascata dos beirais Inundando o recinto de cimento Desabam grossos rios verticais
Trouxe por companheiro tanto vento! E eu, fui barco amarrado no meu cais. Presa, só passeei em pensamento Ao visitar caminhos e locais
Percorri-os, supondo aquela calma Sabendo não haver neles vivalma Que me fala infeliz ou ansiosa
Sem que do sol tivesse algum aviso Nem sequer pequeníssimo sorriso A noite anunciou-se nebulosa
MEA 21/11/2016,
ESTE ÚLTIMO CIGARRO
"O dia despertou pardo e cinzento"; Cenário de um grotesco furacão Que uivasse o seu fantástico lamento A tão (in)desculpável solidão.
"Trouxe por companheiro tanto vento!" Vergou troncos, mudou a direcção Da louca dança e, sendo um trapalhão, Ufanou-se de ter graça e talento...
"Percorri-os, supondo aquela calma", Aos mais fundos abismos da minh`alma E por lá estacionei meu velho carro.
"Sem que do Sol tivesse algum aviso", Triste me quedo - não perdendo o siso... -, Assim que acabe este último cigarro.
Maria João Brito de Sousa - 21.11.2016 - 18.49h
Rabisco/pincelado de minha autoria - 1999
publicado às 14:58
Maria João Brito de Sousa
AH, UM SONETO...
Meu coração é um almirante louco
Que abandonou a profissão do mar
E que a vai relembrando pouco a pouco
Em casa a passear a passear...
No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, só de o imaginar)
O mar abandonado fica em foco
Nos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços.
há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
Mas — esta é boa! — era do coração
Que eu falava... e onde diabo estou eu agora
Com almirante em vez de sensação?...
Álvaro de Campos
12-10-1931?
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
AH, UMA GLOSA A UM SONETO DE UM HETERÓNIMO DE FERNANDO PESSOA ...
"Meu coração é um almirante louco",
Um tanto entorpecido, um tanto gasto,
Mas ainda capaz de dar-vos troco
Por não ser puritano, ausente e casto.
"No movimento (eu mesma me desloco"
escutando o foco, enquanto del` me afasto),
Pulsa-me esse almirante, atento e rouco,
Ralhando porque o estrago, se o desgasto...
"Há saudades, nas pernas e nos braços",
Que o sem-fim dos meus passos det`riora
Nas emergências de alguns erros crassos.
"Mas - esta é boa! - era do coração"!
Esta constatação deixou-me à nora...
- Almirante, onde, agora, a solução?
Maria João Brito de Sousa - 21.11.2016 - 00.04h
publicado às 10:34
Maria João Brito de Sousa
DE AMOR NADA MAIS RESTA QUE UM OUTUBRO
De amor nada mais resta que um Outubro e quanto mais amada mais desisto: quanto mais tu me despes mais me cubro e quanto mais me escondo mais me avisto. E sei que mais te enleio e te deslumbro porque se mais me ofusco mais existo. Por dentro me ilumino, sol oculto, por fora te ajoelho, corpo místico. Não me acordes. Estou morta na quermesse dos teus beijos. Etérea, a minha espécie nem teus zelos amantes a demovem. Mas quanto mais em nuvem me desfaço mais de terra e de fogo é o abraço com que na carne queres reter-me jovem.
Natália Correia, in “Poesia Completa”
ALECRIM VIVAZ
"De amor nada mais resta que um Outubro".
Abençoado Outubro, este meu fim,
Se inteira refloresço e redescubro
O melhor desta flor que habita em mim!
"E sei que mais te enleio e te deslumbro",
Mesmo que as folhas tombem no jardim
Cumprindo o ritual de um estranho culto
Ao qual se opõe, rebelde, o alecrim...
"Não me acordes. Estou morta na quermesse"
Do que queiras colher, se te parece
Que o rebelde alecrim deu flor sem casta...
"Mas quanto mais em nuvem me desfaço"
Mais sábio se me torna este cansaço
E com maior vigor me afirmo: - Basta!
Maria João Brito de Sousa - 20.11.2016 - 12.37h
publicado às 08:24
Maria João Brito de Sousa
NUVEM
Lá longe, aonde a vida me começa
- sorria por engano um sol de Inverno -
Não sei que deus me fez sua promessa
E fui outro menino, ávido e terno.
Mas a infância passou, nua e depressa
- subira o Sol como um clarão de inferno -
E fiquei-me neste ar de quem ingressa;
Grotesco, trivial, falso e moderno.
- Número sete, um passo em frente! - Pronto!
(A voz que me chamava, certa e calma,
Não viu que eu avançava cego e tonto...)
Achou-me assim, o tal que me perdeu!
- Ó nuvem! - tarde triste da minh`alma,
Quem por seus sonhos sofre como eu?
António de Sousa
In "Livro de Bordo" (2ª edição) Editorial Inquérito
PÓDIO
"Lá longe, aonde a vida me começa",
O Tempo é bem mais lento do que eu sou;
Corro, passo-lhe à frente a toda a pressa,
Sou quem ao próprio Tempo ultrapassou!
"Mas a infância passou, nua e depressa"
E a vida, quando os passos me travou,
Provou-me que, vivendo, se tropeça
Onde jamais o Tempo tropeçou...
"- Número sete, um passo em frente! - Pronto!"
Eis-me que mal avanço... o Tempo, esse,
Nunca envelhece, nem me dá desconto;
"Achou-me assim, o tal que me perdeu!"
(Mas como não esperar que me perdesse,
Se quis roubar-lhe o seu maior troféu?)
Maria João Brito de Sousa - 19.11.2016 - 21.36h
publicado às 11:20
Maria João Brito de Sousa
SONHO ADIADO
Sonhei quando dormia um sonho lindo Sonhei que havia paz, findara a guerra Que todas as crianças estavam sorrindo Sonhei não haver fome aqui na terra
Sonhei que todos estavam construindo Tudo que de melhor a vida encerra Que os idosos viviam lá sorrindo Que havia protecção até pra serra
Que os rios tinham água sem sujeira Que não havia ao povo roubalheira Que pra todos havia um ordenado
Que todos tinham casa, tinham pão Sonhei que não havia exploração Porém, somente foi sonho adiado
MEA 18/11/2016
(R)EVOLUÇÃO
"Sonhei quando dormia um sonho lindo"
Que podia tornar-se bem real
Se acordassem os muitos que, dormindo,
Não têm, nem sonhando, um sonho igual;
"Sonhei que todos estavam construindo"
As bases de uma paz universal
E que o novo edifício ia subindo,
Crescendo sem parar, na vertical,
"Que os rios tinham água sem sujeira",
Que os céus sorriam, livres da poeira
Das cinzas de uma Terra incendiada,
"Que todos tinham casa e tinham pão"
E se cumpria, na (r)evolução,
Em pleno, a humana espécie, humanizada!
Maria João Brito de Sousa - 18.11.2016 - 18.19h
(Imagem retirada do Google)
publicado às 13:01