Maria João Brito de Sousa
Eu Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada ... a dolorida ... Sombra de névoa ténue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida! ... Sou aquela que passa e ninguém vê ... Sou a que chamam triste sem o ser ... Sou a que chora sem saber porquê ... Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver E que nunca na vida me encontrou! Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"
EU
Eu, em contrapartida, sei quem sou;
Poeta, fui-o sempre, a vida inteira,
Dos versos dedicada companheira,
Rocha, ou papoila, que do chão brotou
E, depressa demais, desabrochou,
Tomando a sua própria dianteira
Na caminhada junto à ribanceira
Em que o passo apressado a colocou,
Mas vive, agora muito lentamente,
Um tempo mais incerto e mais urgente
Que teima em não para pr`a repousar
E que passa por ela e segue em frente,
Sem dar conta do mal que faz à gente
Que vai estando cansada de passar...
Maria João Brito de Sousa - 28.01.2016 - 11.00h
publicado às 17:09
Maria João Brito de Sousa
CONTO DE FADAS
Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.
Os meus gestos são ondas de Sorrento... ~
Trago no nome as letras duma flor...
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento...
Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é de oiro, a onda que palpita.
Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez!
– Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A Princesa do conto: “Era uma vez...”
Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"
CONTO SEM FADAS
"Eu trago-te nas mãos o esquecimento"
Que aqui te deixo como um bem maior;
Sai demasiado caro, o seu sustento,
Mas raramente achei coisa melhor...
"Os meus gestos são ondas de Sorrento"
Perdidas no meu Tejo, irei supor,
Pois só desse me brota o estranho alento
Que, às vezes, me faz alga, em vez de flor...
"Dou-te o que tenho; o astro que dormita",
Bom-senso - quanto baste -, um gato manso
E a profunda paixão que me une à escrita;
"Dou-te, comigo, o mundo que Deus fez!"
- Posso ser essa a quem não dás descanso,
Mas jamais tentarei saber quem és!
Maria João Brito de Sousa - 23.01.2016 - 18.33h
publicado às 09:56
Maria João Brito de Sousa
Eu ando a mendigar, literalmente,
O pão de cada dia, a cada hora,
Apenas por estar gasta e estar doente,
Mesmo sendo poeta e produtora...
Se algum dia fui estrela, fui cadente,
Das muitas que dão luz indo-se embora
Pr`a logo se apagarem, num repente,
Negando a própria força propulsora,
E como confessar-vos que o estrelato
Se me afigura pouco apelativo,
Que bem mais ambiciono o são recato
Da pequenina casa em que (me) vivo
Tendo por companheiro um velho gato
Que é - como eu sou... - sensato e combativo?
Maria João Brito de Sousa - 21.01.2016 - 11.47h
publicado às 12:43
Maria João Brito de Sousa
(Soneto em decassílabo heróico)
De mim, não esperes “mágicos cansaços”,
pois não me sobra tempo prós sentir,
nem me urge a languidez, nem sonho abraços
e muito menos tento seduzir
Algo que não palavras, gestos, traços...
A quem mos tente impor sem deduzir
que me nascem de dentro e, como laços,
me abraçam, por si só, sem me mentir,
Falarei dos poemas - nunca escassos... -
dos sons, do que me leva a descobrir
as melodias, quanto aos seus compassos,
E de algo que não posso definir
senão voando... E, mesmo de olhos baços,
aguardo e fico atenta ao que surgir.
Maria João Brito de Sousa – 26.07.2015 -22.47h
publicado às 16:22
Maria João Brito de Sousa
Tiram-me braços, pernas, coração...
Levam-me o velho espaço onde me insiro
E, por arrasto, a mim me levarão,
Talvez em breve, ao último suspiro,
Que só eu sei da estranha condição
De ser tábua do chão do meu retiro
E, assim que mo negarem, negarão
Até o próprio ar que nele respiro...
Não gosto de queixar-me e sei ser vão
Falar do estranho amor que aqui refiro,
Mas nada mais me resta! É deste chão
Que o verso se me eleva a quanto aspiro,
Enquanto vos vou expondo a situação...
(... mas quanto mais me exponho, mais me firo...)
Maria João Brito de Sousa - 06.01.2016 - 18.00h
publicado às 14:37