Maria João Brito de Sousa
Trago, nos restos de vida
Que a Morte não quis levar,
A memória interrompida
De um sonho complementar
Que ousou esgueirar-se à saída
Só para poder tentar
Banhar-se, de alma despida,
Na lucidez de outro mar…
Daqui vos ouço e vos leio
Na solidão protectora
Do que conquisto ao destino,
Sem timidez nem receio,
Agora, dona e senhora
Dos cordéis com que me animo…
Maria João Brito de Sousa – 29.06.2011 – 18.23h
publicado às 11:40
Maria João Brito de Sousa
Imaculada, escrevo o que não devo
E inundo a absurda cova do meu fim
Com húmus inventado num jardim
Inexistente e, também ele, primevo…
Imaculada… e sei que me descrevo
Com o que de melhor existe em mim
Pois, se não fosse a cova ser assim,
Tão funda, tão escavada em seu relevo,
Talvez eu conseguisse enchê-la toda
Destes versos que enlaçam, numa roda,
O desmentir da minha identidade…
É, porém, tão mais funda e mais real
Do que é, do mar imenso, amargo o sal…
(mas nunca afirmarei que isto é verdade!)
Maria João Brito de Sousa
publicado às 17:05
Maria João Brito de Sousa
publicado às 15:43
Maria João Brito de Sousa
Não me doas assim, tão cruamente,
Roubando-me a noção de tudo o mais,
Deixando-me irascível, descontente,
Exausta do suplício em que me esvais…
Deixa-me em paz o corpo onde sou cais,
Sozinha, eu sei, mas orgulhosamente!
Devolve-me o meu "eu" de aonde sais
Pr´a que o poema nasça urgentemente...
Quem pode assim escrever, desfeita em dor,
Abafando os gemidos da lamúria,
Sem descanso ou momento de conforto?
Quem poderá provar-te sem temor,
Sem que a voz lhe rebente numa fúria,
Ou preferir-te à paz de um cais já morto?
Maria João Brito de Sousa
publicado às 13:01
Maria João Brito de Sousa
É daqui que te escrevo,
desta vontade que me veste de Abril,
de poemas e de farrapos também,
Daqui,
de onde me reconheço em ti espelhada
embora o perfil simples do meu cravo
sem nome, sem espinhos
e tão menos glorioso,
pareça negar cada verso que nasce…
Mas é daqui,
deste lado aguerrido de mim
onde vestida de um Abril em farrapos,
não dispo Abril apesar dos farrapos
de uma resistência que te não sei explicar
mas, presumo,
ninguém imaginaria que florescesse ainda…
Daqui,
de onde também eu
aprendi a amar a solidão
e a recriar o mundo
na sombra das ausências,
nos anos – tantos… - do verde caule
de um mesmo sonho de pétalas ao rubro,
Daqui
e porque o poema me apeteceu,
insurrecto e vermelho,
este escrever-te sem rima, nem medo,
com as armas florindo num canto menor.
Maria João Brito de Sousa – 19.06.2011 – 16.31h
publicado às 14:44
Maria João Brito de Sousa
Por mais que o sol se ponha, devagar,
Por mais que a estrela-d’alva me sorria,
Por mais que a lua venha iluminar
Aquilo que sobrou de mais um dia,
Por mais noite que sobre e o inundar
Da conturbada luz que me alumia
Me inspire ou mesmo tente interpelar…
Por mais que isso aconteça, eu quereria
A mesma rapidez do dedilhar
Que a mão, descontrolada, me assumia
E aquele embriagante não parar,
Para nem duvidar do que sentia,
Na galvânica pressa de acabar
O que nem começado `inda estaria…
Maria João Brito de Sousa – 16.06.2011 – 20.04h
publicado às 12:25
Maria João Brito de Sousa
Que culpa tinha ele da sua dor
Sem medida, nem fundo ou amplitude?
Que culpa, a dessas asas de condor
Em constante mudança de atitude?
Que culpa tinha o mar da sua cor?
Que culpa tinha a Culpa se a Virtude
Se culpava a si própria e, nesse ardor,
Mostrava quanto dela nos ilude?
Mais tarde serenou, calou bem fundo
As paixões funcionais que convocara
E encomendou ao Tempo a sua cura.
Sobreviveu culpando meio mundo
Por cada cicatriz que lhe ficara
De um tempo em que essa dor fora mais dura…
Maria João Brito de Sousa
publicado às 15:31
Maria João Brito de Sousa
Nasceu-me, hoje, um soneto descuidado,
Fazendo ouvidos moucos à razão,
E todos vão pensar que veio em vão
Pois jamais gostará do nosso Fado
Mas o que aconteceu foi que, o estouvado,
Não sabendo fingir, nem dizer “não”,
Mal ouve os mil acordes da canção
Corre a abraçar-se a ela, alvoroçado…
Coitado do soneto… apaixonou-se
Por um fado qualquer que então passava
Nos lábios de um fadista, nas vielas,
E nem sabe dizer quem foi que o trouxe,
Que guitarra, trinando, assim chamava,
Que estranhas vibrações foram aquelas…
Maria João Brito de Sousa – 21.01.2011 – 19.01h
publicado às 12:03
Maria João Brito de Sousa
… e depois, António,
eles benzer-se-ão e partirão gloriosos
para a mortandade
sem que os tenhamos podido desculpar
e agradecerão as palmas
com a consciência do ritual cumprido
e haverá crianças
- crianças como eu era quando,
ao vê-los, fugia do ecrã da televisão… -,
haverá crianças, António,
que também baterão palmas
e que crescerão embaladas
pela apoteótica matança,
abençoadas pelo deus a que eles se confiaram
e em que eu nunca acreditarei
porque, perdoa-me, António,
eu não posso, nem quero, acreditar
nesse mesmíssimo deus cruel e estúpido,
se ele for tão estúpido e tão cruel
que abençoe a ritualização da tortura…
Ou fomos nós que
sempre estivemos enganados?
Ou fomos nós que
errámos quando condenámos a raiz comum
de todas as descriminações
e de todas as atrocidades?
Ou éramos só nós que víamos,
nos olhos do touro,
a mesma inocência dos dos cristãos novos, no Paço,
dos dos negros, nos porões das naus,
dos dos judeus, em Auschwitz,
dos dos nossos amigos, nas masmorras da Pide?
Todos diferentes, todos animais,
António…
E eu, António,
eu que, hoje, como há cinquenta anos,
os sinto, os entendo
e, do mais fundo de mim,
os tento perdoar,
não consigo deixar de condenar
essa crua faceta de tantos
tantos dos que,
caminhando sobre duas patas,
acreditam que a dor é monopólio seu
e que a racionalidade
lhes confere o direito de SERem os únicos.
TODOS DIFERENTES, TODOS ANIMAIS!
Ao meu avô, António de Sousa, Poeta, tradutor, advogado, crítico literário e um daqueles seres vivos que sempre acreditaram na sensibilidade de todos os outros.
Maria João Brito de Sousa - 07-06-2011-11:41h
[against all odds, com honras de blog principal]
Ps – Perdoa-me se te arrasto o nome para o campo de uma batalha que prevejo desproporcional, dura e infindável. Por esta altura, tu, lá na tua Ilha de Sam Nunca e eu, ainda por cá, fisicamente desgastada, pouco mais poderemos emprestar para além disto; nome e versos… mas não fomos nós quem sempre acreditou na força das convicções e das palavras que as levam mundo afora?
publicado às 12:17
Maria João Brito de Sousa
Que pássaro voou? Que lume acende,
Neste terreno palco, uma vontade
Que não desiste nunca e se não rende
Enquanto não alcança a liberdade?
Que absurdo gesto nega e se não vende,
Que lágrima a sulcar-me esta saudade
Me traz quanta vontade aqui me prende?
E quem me diz a mim que isto é verdade?
Foi a asa de um anjo imperativo
Que, apontando este espaço onde me vivo,
Me pediu para olhá-lo desde os céus,
Ou o fruto de um ovo, aceso em chamas,
Trocando as tibiezas que proclamas
Por quanto eu não conheço e chamo Deus?
Maria João Brito de Sousa
publicado às 17:00
Maria João Brito de Sousa
No dia da criança,
venho dizer-te bom-dia, mãe,
e olhar o teu sorriso
na memória das sardinheiras quase murchas,
mas ainda vermelhas, mãe,
nas conchas de barro onde as plantavas
Venho,
neste dia da criança,
lembrar-te, mais uma vez,
que te amo, mãe,
e agora,
que não sei se és, nem onde és,
confessar-te que sempre considerei
que olhavas demasiado a superfície das coisas,
que te esquecias de reparar
nas raizes do tempo por detrás das janelas
e nos sonhos
para além da luta pelo abraço imediato
Mas isso era eu, mãe,
eu tão pequenina como as sardinheiras,
tão abraçada às raizes do tempo,
tão estranhamente além das janelas,
esquecida,
também eu,
de não poder julgar-te
porque eras tu, afinal,
quem plantava as sardinheiras e sorria
sem suspeitar, sequer, de que viriam a murchar…
Hoje, dia da criança,
dia em que não sei se és, nem onde és,
mas não esqueço que foste,
uma lágrima, mãe,
só uma, como tu,
que tanto medo tinhas da morte
e te deixaste levar
sem teres percebido
que as sardinheiras murcham
a seguir ao abraço das raizes do tempo…
essas que estavam por detrás das janelas
além da superfície
das coisas- tantas! –
que nunca chegaste a descobrir
E fica-me
o teu sorriso
por detrás da janela,
vermelho como as sardinheiras,
enquanto nesta lágrima,
tão única como tu,
tão eterna quanto o tempo,
hoje, como dantes, Mãe,
tento esquecer a superfície das coisas…
Maria João Brito de Sousa – 01.06.2011 – 09.29h
publicado às 11:31