Maria João Brito de Sousa
Lembras-te dos caboclos, já cansados,
Enchendo a escadaria de queixumes?
Dos carregos dos móveis, mal atados,
De arestas afiadas como gumes?
E lembras-te de mim que, aos castigados,
Enchia de perdões, dando perfumes?
A pena que eu senti dos desgraçados
A quem tu foste impondo os teus costumes…
Lembras-te do escritório, dos teus quadros,
Da enorme cozinha onde as mulatas
Preparavam segredos culinários
E cantavam baixinho aos seus amados?
Lembras-te do brilhar das velhas pratas
Por cima da janela e dos armários?
Maria João Brito de Sousa
Imagem retirada da internet
"Le philosophe, lorsqu`il n`a pas de motif pour juger, sait rester indeterminé"
DIDEROT
publicado às 12:05
Maria João Brito de Sousa
“Não tentes comandar-me. Eu vou sozinha!”
Entendo-te a surpresa; não conheces
O exacto teor das minhas preces
Nem aceitas que a escolha seja minha…
Põe sempre em cada saca uma farinha
Senão, mais valeria que as perdesses
Ou que as não cozinhasses nem comesses
Porque a mistura é sempre uma adivinha;
Quase nunca uma espiga dá um grão
Que seja exactamente igual a outro,
Pois mesmo sendo grãos de um mesmo trigo,
Pode um servir pr`a bolo, outro pr`a pão…
Não queiras misturar pois, se és tão douto,
Decerto o teu estará bem dividido…
Maria João Brito de Sousa
"Materialisme et spiritualisme sont les deux pôles de cette même absurdité qui consiste à croire que nos pouvons savoir ce que c`est la matière ou que l`esprit."
Huxley
publicado às 11:50
Maria João Brito de Sousa
Escreve-me uma cartinha pessoal
- meia dúzia de linhas bastarão -
E eu talvez te escreva uma outra igual,
Ou talvez, afinal, nem escreva, não.
Possivelmente irás levar-me a mal,
Mas, quase nunca tenho um só tostão
E a essa situação, por ser, normal
Não lhe presto, sequer, muita atenção,
Mas quero que, no fim, te identifiques
E, sabendo que eu sou muito esquecida,
Te tornes mais preciso e que me indiques
Referências de espaço, tempo e forma,
Ou nem respoderei, por estar perdida
E porque a recorrência gera a norma...
Maria João Brito de Sousa- 28.09.2010
publicado às 11:53
Maria João Brito de Sousa
FICCIONANDO
Eu amo a Poesia e a Verdade
E o meu pior pecado é não mentir…
Ficcionar? Tudo bem, se permitir
Que a ficção venha a ser realidade.
Se ficcionando alcanço a liberdade
- tanto quanto eu a posso pressentir... –
Já dela não me quero redimir,
Nem dela me afastar pela vontade.
Veloz, a poesia, me precede
E seguindo atrás dela nunca hesito
Em chegar onde alcança um simples verso;
Uma mesma vontade nos concede
Tentar ir `inda além do infinito
E vir a conhecer outro universo…
Maria João Brito de Sousa – 26.09.2010 – 15.32h
"I`M EVERY WOMAN..."
Eu sou cada mulher que vai morrendo
C`o filho adormecido nas entranhas,
Cada gesto do grito em que me acendo
E em que ensanguento os cumes das montanhas.
Por cada uma delas me apedrejam,
Por cada uma delas ressuscito,
Por cada uma exijo que me vejam
E reafirmo aquilo em que acredito.
Eu sou cada mulher. Ela também.
Sou filha, companheira, amante e mãe
De cada pulsação desse teu peito.
Sou quem te complementa e te ultrapassa,
Bicho moldado dessa mesma massa
De que, afinal, também tu foste feito...
Maria João Brito de Sousa – 26.09.2010 – 14.34h
FADO [MUITO] MALANDRO
Era noite, rompia a madrugada
Com a Lua já quase a adormecer,
Quando, enfim, acordei, alvoroçada,
Porque o Sol estava já quase a nascer,
Veio a Lua encontrar-me ali deitada,
Olhando para ti, mas sem te ver,
Jurando não te querer nada de nada
Pois sempre que te quis foi só “por querer”…
Ouviam-se uns acordes de guitarra
E o dia acontecia sem saber
Se a Lua se deitara amargurada
Porque o Sol começava a enrubescer
Ou se, ao invés, se rira à gargalhada
Daquilo que ali estava a acontecer…
Maria João Brito de Sousa – 25.09.2010 – 22.39h
publicado às 11:44
Maria João Brito de Sousa
Se um poema dependesse só de mim
E não desses milhares de variáveis
Que se não sabe quando têm fim
E que jamais se tornam dispensáveis,
Ou se escrevê-lo fosse sempre assim,
Tão certo quanto os meus inevitáveis...
Mas não! Erva que cresça num jardim
Expr`imenta mil destinos improváveis...
Agora, neste alívio de proscrita
Que aqui vai renegando o seu castigo,
A tactear, como se se espantasse,
Deixo, enfim, um poema que acredita
E que agora mostrou ser meu amigo
Por muito que o meu corpo o recusasse...
Maria João Brito de Sousa
publicado às 15:39
Maria João Brito de Sousa
Sei lá se posso, ou não, continuar,
Se devo ou nem sequer devo escrever,
Se vale, ou não, a pena `inda teimar
Quando a vontade teima em não nascer...
Não sei! Nem sei se posso acreditar
Que amanhã ou depois me vá esquecer
E que a vontade volte a conquistar
Um dom que lhe parece não caber...
Perdi-me e não me encontro sem escrever-me
Mas escrever-me não sei sem me encontrar,
Por isso nada sei! Não me perguntem
Que estranha coisa está a acontecer-me,
Porquê este soneto a gaguejar
Nas palavras que ainda repercutem...
Maria João Brito de Sousa - agora, só porque seria perigoso para a minha permanência física não me nascer, sequer, um péssimo soneto.
publicado às 16:12
Maria João Brito de Sousa
Não me venhas dizer que é este o preço
Que tenho de pagar mais uma vez!
Não me venhas falar do que não vês
Pois posso valer mais que o que pareço…
Nada tenho pr`a dar-te e nada peço.
Só quero a minha paz porque talvez
Eu tenha um bem maior que os teus porquês
Na estranha lucidez em que me meço.
Não venhas de mansinho e disfarçado
Com as falinhas mansas do costume;
Não finjas ser um nobre protector,
Porque é possível que já tenhas dado
Mais que o suficiente desse estrume
Com que tentas cobrir tudo em redor.
Maria João Brito de Sousa – 20.09.2010 – 22.02h
IMAGEM RETIRADA DA INTERNET
publicado às 15:01
Maria João Brito de Sousa
Ainda bem que há lobos solitários
E que os falsos profetas, se existirem,
Serão sempre execráveis mercenários
Capazes de exultar quando mentirem.
Ainda bem que alguns são solidários
Que, ao dar-se, não será para pedirem,
Em troca, mil favores para os cenários
Que muitos têm medo que lhes tirem.
Ainda bem que que existe um lobo assim,
Capaz de dar-se inteiro e sem esperar
Mais do que essa alegria do momento.
Depois, o solitário lobo em mim
Range os dentes, nauseado, ao constatar
Que alguns vão vendo nisso um fingimento.
M. João Brito de Sousa
publicado às 12:56
Maria João Brito de Sousa
CONVERSAS DE MÃE PARA FILHO II
Vens magoado e esculpido pela sorte
Que em nada bafejou a tua vida,
Revoltado, sem pouso e já sem norte,
Sondar a felicidade prometida…
E não, não era este o teu transporte.
Esta aproximação mal conduzida,
Vai deixando, em nós dois, o travo forte
Da situação que está comprometida.
De nada me serviu tanto poema,
Tanta verdade e tanta confissão;
Ninguém entendeu nada do que eu disse!
Também ninguém entende que o problema
Só se exacerba na contradição
De quem, querendo ajudar , faz mais tolice…
Maria João Brito de Sousa
“Il ne faut pas s`affliger de n`être pas connu des hommes, mais s`affliger de ne pas connaître les hommes."
Confucius, Entret. 1.16
SOPRA O VENTO
Vai o vento soprando em derredor
Deste corpo despido de ideais
E enquanto o vento sopra, mais e mais,
Vão-me esses ideais ganhando cor.
Se enquanto o vento sopra, faz calor
Os corpos que se despem são normais
Pois surgem-lhes ideias geniais
E aprendem a despir também a dor
Mas, quando o frio aperta e já gelado
O meu corpo me pede mais cuidado
Não vá gelar também o que o anima
Peço ao vento que o deixe sossegado,
Ficam os ideais postos de lado
E é ao vento que entrego a minha sina…
Maria João Brito de Sousa – 16.09.2010 – 18.28h
publicado às 15:43
Maria João Brito de Sousa
Vês-me como me viste em tempos idos;
Ingénua, incauta e até perturbadora,
Rastejando nos trilhos mais escondidos…
Vês tudo o que em mim viste e vês-me agora.
Vês-me chorando os mais desprotegidos,
Amando as plantas, tal como era outrora,
Subindo enquanto desço o já subido,
Descendo se só penso em ir-me embora
E, se assim tu me vês, assim serei!
A teus olhos me moldo e pouco importa
Que eu te fale das coisas como as sinto,
Que desvende o que nunca te mostrei,
Te aponte o esconderijo ou te abra a porta,
Pois nunca aceitarás que te não minto…
Maria João Brito de Sousa
publicado às 14:05
Maria João Brito de Sousa
Tu estavas em silêncio, os olhos postos
Na imensidão do mar dentro de ti
E, por fora de ti, estavam mil rostos
Curiosos de te verem por ali.
Teus olhos nada viam; nem desgostos,
Nem medos ou razões. Dentro de si,
Os outros, os que te iam sendo impostos,
Tremiam, tal e qual como eu tremi.
Tu estavas em silêncio, mas não estavas
Ali, onde o rugir das ondas bravas
Assustava os demais que as contemplavam
E nesse teu silêncio me bastavas,
Sem que desses por mim me conquistavas
E era assim que os teus dias se passavam…
Maria João Brito de Sousa – 07.09.2010 – 11.41h
publicado às 16:42
Maria João Brito de Sousa
BEM TE VI
Bem te vi, velho cuco que passavas
Na mira de ocupar alheio ninho
E, repleto de pão, farto de vinho,
Nem por um só segundo vacilavas.
Bem te vi quando tanto procuravas
Voando sobre a mata e, de mansinho,
Mergulhavas a fundo, tão baixinho
Que quase – temi eu… – te despenhavas.
Bem te vi, mas não disse ter-te visto
Na tua insana busca. A natureza,
Deste mesmo planeta em que eu existo
Te criou alheado das razões
Que me vão tendo, a mim, nesta pobreza…
(E não. Nenhum de nós teve ilusões.)
Maria João Brito de Sousa – 04.09.2010 – 11.29h
O LOUCO, O ENIGMA E A ESPERA
… e ria-se das coisas que não tinha
Esquecido, já, das tantas que tivera
Se, em noites de luar, descia à vinha
Ébrio do louco amor que tinha em Hera
E, a seguir, nos vinhedos, se entretinha,
Tão nu como se a própria Primavera
Da nudez lhe engendrasse uma adivinha
Que decifrasse a dor de cada espera…
Se chovia, explodia num desnorte!
Escorria-lhe esse estigma encosta abaixo,
Turbava-se-lhe a fronte em desespero
E, louco, maldizendo a sua sorte,
Sumia-se entre as pedras, cabisbaixo,
Ansiando exactamente o que eu nem espero.
Maria João Brito de Sousa - 13.09.2010
Maria João Brito de Sousa – 05.09.2010 – 11.50h
NOTA – Soneto reformulado a 22.08.2015
HOJE
Hoje não será dia de poema
E, caso os anjos falem, só dirão
Que eu, hoje, ostentarei o velho emblema
Da minha apetecida solidão.
Hoje é um dia mudo e não há tema,
Nem motivo, nem verbo ou convicção,
Não há uma alegria, um só problema
Que possam merecer-me uma atenção.
Hoje este meu soneto não tem voz…
É estático, insondável e proscrito
E não aspira a mais do que ao mutismo.
Ato as amarras d`alma com mil nós,
Desminto absurdamente o que foi escrito,
Cerro os dentes, engulo o meu lirismo!
Maria João Brito de Sousa – 07.09.2010 – 10.08h
publicado às 11:29