Da autoria de Maria João Brito de Sousa, sócia nº 88 da Associação Portuguesa de Poetas, Membro Efectivo da Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores - AVSPE -, Membro da Academia Virtual de Letras (AVL) , autora no Portal CEN, e membro da Associação Desenhando Sonhos, escrito num portátil gentilmente oferecido pelos seus leitores.
...porque os poemas nascem, alimentam-se, crescem, reproduzem-se e (por vezes...) não morrem.
Uma Santa Páscoa a todos os amigos que tentei, mas não consegui, contactar por email...
este PEC do Sapo não está a ser lá muito pacífico, tenho sérias dificuldades em aceder ao Poetaporkedeusker e é-me praticamente impossível publicar. Ainda por cima
vou estar ausente durante vários dias por dupla imposição da data e de duas consultas hospitalares.
Não partas ainda. Fica mais um bocadinho. Um bocadinho apenas, antes de te diluíres nas memórias que me não permitirão a carícia sedosa da tua pelagem riscada de amarelos de Nápoles e de outros amarelos, maduros como folhas de Outono. Nem o exacto som do teu chamamento, o calor que de ti emanava e todas essas pequeninas coisas do dia a dia de que tanto me queixei enquanto os dias eram dias antes de partires. Olha-me ainda. Repara no meu sorriso triste… tu não o sabes, mas é um sorriso de saudade adiada. Uma saudade que começou a nascer no momento em que me apercebi da inevitabilidade da tua partida e que, não tarda, se começará a esfumar na linha de horizonte das recordações. Conheço-a como às palmas das minhas mãos, sei que me será absolutamente necessária, mas não a quero neste preciso momento. Agora quero adiar-te um pouco, pintar-te na tela da alma, escrever-te no livro do Tempo com letras de tinta indelével. Fica um pouco mais... o tempo de saborear bem, de avaliar e conhecer, sem o desagrado da surpresa, aquilo que de ti me será permitido recordar. Acreditas que sinto saudades até das tuas piores traquinices? Se um dia vier a reparar o cavalete grande que tu me partiste, se um dia voltar a pintar, pintarei para ti. Porque assim se constrói uma vida. Assim, de afectos, memórias e pequenos grandes momentos. Foi curta, a tua passagem por cá e eu sei lá que desígnios te trouxeram até mim naquela tarde de cafezinho na esplanada... mas amei-te e foi em nome desse mesmo amor que tentei - caramba, como tentei! - encontrar alguém que tivesse a disponibilidade financeira e o espaço suficiente para que pudesses ter uma vida mais livre, mais de acordo com aquilo que é natural na tua espécie. Desencontros, amigo. Tantos desencontros. Mas nós cá nos íamos entendendo... era ou não era? E o que eu aprendi contigo! O que aprendi e o que estou agora mesmo a aprender, enquanto te guardo inteirinho neste cantinho de mim e redescubro os mil e um cambiantes deste curto percurso comum. Repara. Viste? Estou quase, quase a terminar. Podes depois partir. Depois desta última pincelada amarela sobre a incompreendida teia da nossa inesperada construção.
Não, mãe. Não tenho remorsos. Peço imensa desculpa, mas não tenho. Bem... talvez tenha tido daquela vez em que estraguei a mochila velha para que o pai me comprasse aquela linda, linda, que combinava às mil maravilhas com o cheiro das aparas de lápis e a textura do papel Almaço que eu teimava em levar comigo para toda a parte... que idade tinha eu? Quatro, cinco anos?
Lembro-me de ter pegado na tesoura, lembro-me daquele apertozinho no coração - talvez lhe chamasses peso na consciência - que senti quando cortei uma das correias. Não foi fácil. As correias eram resistentes e as minhas mãos eram tão pequeninas... mas o que custou mais foi a mentira.
- Pai, a mochila velha estragou-se...
Vi-o observar serenamente a velha sacola. Ainda hoje não sei se percebeu logo o que se passava, mas penso que sim... agora. Na altura disse-me, calmamente, que iríamos, nessa tarde, comprar uma nova.
Fui desenhar para o quarto de brinquedos, mas não estava feliz. Nada feliz. Era estranhíssimo porque me imaginava a criança mais feliz do mundo no dia em que pudesse abraçar, cheirar, manipular uma mochila novinha em folha... no entanto estava muito, muito longe de estar feliz. Muito pelo contrário. Esvaíra-se-me em coisa nenhuma aquela antecipação do objecto cobiçado e as mãos haviam-se-me tornado tão pesadas que as linhas não fluíam em contornos humanos, como nãs manhãs de todos os dias. Levei algum tempo a consciencializar, mas acabei por perceber tudo. Mais uns minutos com as mãos que me pesavam toneladas pendentes sobre
a folha de papel ainda branca e a decisão foi tomada.
Hoje sinto-me orgulhosa dela. Reconheço que era preciso "tê-los no sítio".
- Pai, não quero a mochila nova. Fui eu que cortei a alça da velha.
O resto vem-me meio embaciado. Devia ter lágrimas nos olhos. Não me recordo de ter ouvido nenhum raspanete. Nada. Só me lembro de continuar a usar a velha mochila, reparada pelas mãos hábeis da avó Alice. Por isso, mãe, te digo que já não tenho remorsos, que isso me não é útil, que também te não é útil a ti e que eu sempre fui uma pessoazinha capaz de aprender com os seus próprios erros. Acredita. É a melhor forma de se aprender, mãe.
Vejo que me não entendes... ou que não concordas. Acho que não concordas porque não entendes. Tudo bem, mãe. Eu esqueci-me de ler esse capítulo no Manual de Instruções.