Da autoria de Maria João Brito de Sousa, sócia nº 88 da Associação Portuguesa de Poetas, Membro Efectivo da Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores - AVSPE -, Membro da Academia Virtual de Letras (AVL) , autora no Portal CEN, e membro da Associação Desenhando Sonhos, escrito num portátil gentilmente oferecido pelos seus leitores.
...porque os poemas nascem, alimentam-se, crescem, reproduzem-se e (por vezes...) não morrem.
Atravessou com o sinal vermelho. Tinha adquirido aquele perigoso hábito nos tempos em que, ainda jovem, alguém se lembrara de trocar o polícia sinaleiro por aquele mastro inestético, insensível. Era um tempo em que cada segundo era precioso e picar o ponto antes do ponteiro dos segundos cruzar a linha vertical era bem mais imperativo do que obedecer a um sinal.Fosse de que cor fosse.
Mil vezes o haviam alertado. Mil vezes prometera tentar habituar-se. Primeiro com alguma convicção, depois com o automático: - Sim,sim… , de quem tem pressa em livrar-se de um assunto a que não dá a menor importância.
Naquele dia, em nada diferente dos anteriores, o sinal manteve-se invisível, se não aos seus olhos, pelo menos ao cérebro que tão refractário se mostrava em automatizar uma ordem dada por um poste cor-de-burro-quando-foge que, incomodativo, se erguia na perpendicular do plano da calçada…
Foi exactamente por isso que nesse dia, em coisa nenhuma diferente de todos os outros, quando tentava atravessar a estrada do costume, um carro casual se aproximou vertiginosamente, se deu o inevitável impacto e experimentou a surpresa do voo inesperado.
Ultrapassou na vertical o poste cor-de-burro-quando-foge, traçando no ar um arco de elipse, percepcionou o despontar de uma imensa dor surda, ergueu os braços numa infrutífera tentativa de se auto-proteger, sentiu que se lhe tornava impossível respirar, assustou-se ao perceber que não picaria o ponto nesse dia, vislumbrou o azul do céu, o branco da fachada do edifício em frente, o cinzento do asfalto, o vermelho da blusa da rapariga boquiaberta que atravessara antes de si e, pela primeira e última vez, viu o sinal mudar para a cor verde de uma esperança que não mais voltaria a fazer sentido.