Da autoria de Maria João Brito de Sousa, sócia nº 88 da Associação Portuguesa de Poetas, Membro Efectivo da Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores - AVSPE -, Membro da Academia Virtual de Letras (AVL) , autora no Portal CEN, e membro da Associação Desenhando Sonhos, escrito num portátil gentilmente oferecido pelos seus leitores.
...porque os poemas nascem, alimentam-se, crescem, reproduzem-se e (por vezes...) não morrem.
Acordou mais cansada do que o habitual. Era uma sensação de peso que não conseguia entender e muito menos definir. O simples levantar, revelou-se-lhe uma manobra complexa e algo dolorosa. Estranhou e, incapaz de oentender, registou e prosseguiu em direcção à cozinha.
Sentia. Sentia de uma forma que não a de todos os dias. Sentia-se, acima de tudo.
Já no corredor, olhou casualmente para o lado e parou tão abruptamente que o corpo acabou por lhe embater ruidosamente contra a mesinha de apoio sob o espelho com que acabava de encarar. A dor foi prontamente abafada pela surpresa. Não se reconheceu na mulher idosa e assustada que via na superfície polida.
…E morriam-lhe as mãos pelas curvas do rosto
Na surpresa nascida de quem se conhece
E descobre o sol-posto
Do então que amanhece...
Sorriu a custo, meneou a cabeça e levou as mãos aos cabelos brancos e já ralos que, poucas horas atrás, haviam sido a farta cabeleira negra que apanhara numa trança antes de se deitar. Como era possível? Esforçou a memória numa derradeira tentativa de não acreditar no que os olhos viam, mas os olhos continuavam a ver uma face feminina gasta e enrugada, moldada por décadas que haviam passado numa única noite de sono. Parecia-lhe ainda sentir no corpo as mãos do marido que na véspera a amara, rebolando os dois de gozo e juvenil alegria, na mesmíssima cama de que
acabava de se levantar envelhecida e fraca.
… E morriam-lhe as mãos pelos anos passados
Na certeza que nasce de quem já não sabe
Os caminhos errados
Do céu que lhe cabe...
Envelhecida e fraca, repetiu. Ela que ainda há pouco desabrochara nos braços do homem que amava e que saíra, com um breve adeus e um longo sorriso de plena satisfação, para o turno nocturno do hospital em que trabalhava.
E o cão? Porque não ladrava o cão? Porque não viera lamber-lhe as mãos na efusiva manifestação de carinho das manhãs de todos os dias. E as flores que no dia anterior amorosamente colocara na jarra, sobre a mesa de apoio, e que agora lhe apareciam reduzidas a um punhado de hastes negras e secas como varetas de guarda-chuvas. E ela. Ela e as ausências. Ela e as rugas, o peso, os olhos pequeninos afundados nas órbitas, o cabelo branco que rareava, a memória aparentemente incoerente, as flores negras. E as ausências.
… E morriam-lhe as mãos em ausentes afagos
De corpos passados, de ternas memórias,
De sonhos velados,
Contados em histórias...
Rumou, lenta e pesada, em direcção ao quarto, descansou por segundoscontra o guarda-fatos que se erguia como um ombro amigo, mas sempre demasiado alto, e deitou a mão à gaveta da cómoda coberta de um pó espesso, cinzento, inútil. Abriu a gaveta onde guardara, como recordação algumas peças de roupa da recém-falecida avó -seria? - e retirou um velho lenço que colocou sobre a cabeça. Dirigiu-se à janela, abriu-a com dificuldade, encostou-se ao peitoril, colocou uma mão sob o queixo e deixou que os olhos se lhe perdessem no ponto onde, diariamente, o marido dobrava a esquina e lhe aparecia ao longe, no campo de visão.
… E nasceu-lhe das mãos, em minutos, segundos,
Uma página em branco, uma noite, um momento,
Uma vida em dois mundos
Alheios ao tempo...
Ali se lhe apagou a memória de ser e mergulhou no sorriso enigmático de quem sabe ter pregado uma partida ao Tempo. Ela e o Tempo. Ali, naquele retrato.
NOTA - Este soneto humorístico "nasceu-me" e não resisto a publicá-lo... quero, no entanto, deixar bem claro que nenhuma má vontade me move ao publicar esta "brincadeira" e que entendo perfeitamente que este tipo de pequenas dessincronizações podem acontecer a qualquer um e não impedem que eu esteja muito grata a quem me acudiu num momento de aflição. Ninguém, senão eu mesma por evidente precipitação, teve culpa do lapso que fez com que eu ficasse, temporariamente, sem acesso ao poetaporkedeusker.
O meu muito obrigada ao Augusto, ao Pedro e ao Tiago.
Ah, sinto pois! Feliz, orgulhosa e grata a todos os que tornaram possível este meu sonho de ter um livro escrito por mim. Porque as árvores já eu plantei e os filhos já eu pus no mundo...
Não sei ainda quando haverá apresentação da obra, mas não podia deixar de partilhar convosco esta minha felicidade!
Obrigada!
AVISO - Hoje no http://premiosemedalhas.blogs.sapo.pt/ há um desafio "pecaminoso" à espera de alguns de vocês. Se quiserem e puderem, façam o favor de dar um pulinho até lá...
Sabia que teria de fazer aquela caminhada. O corpo recusava-lha, antecipando as dores, a vontade negava-se-lhe como se, repentinamente, quisesse tomar o controle de si. Mas impunha-se-lhe aquela caminhada e ela meteu pés à calçada apesar das pontadas incipientes, do frio e da chuvinha constante, irritante, teimosa.
No início caminhou sem maiores dificuldades do que a de sentir o corpo invadido pela teimosia da chuva que se lhe colava à roupa, num primeiro e insistente aviso. Depois foram as poucas forças que se foram gradualmente recusando a mover-lhe os passos e, logo a seguir, as dores que vieram coroar esta sinfonia de desconforto. Tornava-se-lhe o corpo pesado como uma árvore que, a cada momento, ganhasse raízes mais e mais fundas, que mais e mais profundamente a prendessem ao chão. Ah! E havia, ainda, o Segredo. O Segredo que constantemente bailava em torno dos poços de palavras - agora confusas - que lhe inundavam o corpo inteiro e lhe pediam para nascer. Não trouxera o caderninho de sonetos, mas não seria por isso… chovia demasiado para que o pudesse utilizar, de qualquer forma. Até o cheque que levava na carteira preta que trazia ao ombro, começava a perder o aspecto de coisa estéril, acabada de imprimir, deformando-se num rectângulo irregular, sob a humidade. Aconchegou ao corpo o pequeno saco negro, esperando salvar o bendito cheque daquela chuva que tudo ensopava, que começava a sentir na carne e que quase, quase a desesperava.
O cheque, - ao menos o cheque! - não poderia ficar inutilizado!
Afinal fora por ele que se metera ao caminho, apesar da chuva, das dores, do cansaço e do Segredo.
Agora eram os músculos que pareciam dormentes, entorpecidos. Nada lhe obedecia naquele corpo exausto! Fixou os olhos nas pedras da calçada e, num derradeiro e absurdo esforço, imaginou-lhes o auxílio. Observava-as enquanto caminhava. Quereria ser pedra. Quereria que as pedras com ela partilhassem a sua dureza. A angústia pareceu dissolver-se parcialmente. As palavras voltavam-lhe apesar do Segredo. Talvez exactamente por causa do Segredo.
Já não via as pedras nem sentia a chuva que a ensopava até aos ossos porque eram as palavras que, agora, nasciam, estranhamente negras sobre o fundo claro da calçada. Nasciam e cresciam continuando-se umas às outras, encadeadas, quase homogéneas como a ribeira zangada que corria, do lado direito daestrada que galgava a custo.
Passou pela ribeira e as palavras continuaram como um outro rio. Não sabia como nasciam elas, não sabia como nascera o Segredo que ora se deixava vislumbrar com a mansidão das coisas benéficas, ora lhe surgia em lampejos de algo que quase a assustava e não sabia, por isso, definir.
Continuavam a fluir, em grafismos negros e distintamente traçados pelas mãos de ninguém e só o cansaço parecia, de quando em vez, sobrepor-se a elas. Não fugiam depois de surgirem. Ficavam. Permaneciam como se estivessem gravadas no espelho molhado da calçada, nos ossos que quase anestesiavam, no corpo que negava o desconforto da chuva.
Avançava agora ao ritmo dos grafismos que lhe iam nascendo, embora pontualmente cambaleasse, lhe parecesse que o chão-papel lhe fugia debaixo dos pés ou que o horizonte se lhe balançava na linha que os olhos podiam atingir.
Mais passos, mais letras. Um rio de letras, de palavras, de frases, de orações semi-conscientes. Um texto inteiro.
O Banco, ponto de destino, estava finalmente perto. Eram os últimos passos do último parágrafo.
A porta abriu-se automaticamente à sua aproximação e ela parou,indecisa, por segundos. Faltavam-lhe meia dúzia de letras que rapidamente se vieram juntar ao caudal daquela caminhada. Respirou fundo, retirou a bolsinha preta de sob o casaco ensopado e entrou. As pedras da calçada, a imagem da ribeira enfurecida, as raízes da árvore em que quase se transformara (ah, não fora o banco, não fora o cheque…) e o rio de palavras entraram com ela. Como uma multidão de pequenos mas irredutíveis raios de sol, entrou, também, o Segredo. A porta fechou-se. Automaticamente.
A todos os amigos que hoje tiverem a bondade de me visitar, gostaria de pedir que não saíssem sem passar pelo jardinzinho interior http://mumbles.blogs.sapo.pt/
Levantou-se e espreguiçou-se tão demoradamente quanto os latidos do cão lho permitiram. Não teve tempo de passar pelo W.C. Não teve tempo para mais nada. Abriu a porta, segurou o molho de chaves e desceu com o animal que mostrava, agora, a sua impaciência através de estridentes e consecutivos ganidos.
A porta da rua parecia mais pesada do que nunca. Teve de empregar toda a sua força para conseguir abri-la e ficou a olhar o pequeno animal que, entretanto, saíra em disparada.
Faltavam os outros todos, pensou. As manhãs sucediam-se-lhe num ritmo constante mas alucinado… demasiado para os estragos que o tempo conseguira já provocar no seu corpo, admitiu. Ao longe o cão perdera-se entre os buxos que revestiam os canteiros das palmeiras.
Lentamente, como quem levanta o peso insuportável de uma mão que vai em busca da última e inevitável conta, abriu a caixa de correio. Nada de contas, desta vez. Pequeno, ocupando metade do espaço habitual e bem conhecido das cartas do gás e da electricidade, estava um envelope encerrado na mudez intrigante das coisas inesperadas. A mão aventurou-se-lhe ao toque, trouxe-lho até diante dos olhos. Nenhuma marca impressa, nenhum selo, nenhum carimbo dos CTT. Apenas o seu nome escrito numa caligrafia que lhe era perfeitamente alheia.
Baixou sobre o nariz os óculos que trazia sobre a cabeça, segurando a rebeldia dos cabelos soltos, e abriu a missiva com um gesto brusco de profunda curiosidade. Uma folha
apenas. Sobre o azul suave do papel, escritas a tinta preta, em letras bem legíveis, estavam as seguintes palavras;
MUDANÇA, s. f.
acto ou efeito de mudar. Passagem ou transporte de um lugar para outro; “mudança de residência”. Variação, inconstância; “a mudança do tempo”.
Era tudo. Nem assinatura, nem remetente.
Sorriu e deixou que os olhos se lhe perdessem, de novo, nos traços negros sobre o azuláceo do papel. Ali ficou,
perdida em reflexões, até o cachorro voltar, manco como sempre.Sabia que jamais descobriria a origem daquela carta. Não sabia porquê, mas sabia.
Subiram os dois os quatro pisos que levavam à casa de sempre, onde ambos encontrariam os eternos amigos dos quais só a morte os poderia separar e ela dirigiu-se, finalmente, ao W.C. Olhou-se no pequeno espelho sobre o lavatório e viu-se mudada, como todas as coisas. Mais uns cabelos brancos, o despontar de dois vincos que desciam do nariz ao queixo. Mudava. Sem dúvida mudava. Com excepção do espírito que se lhe mantinha constantenaeternabuscaporummundomelhor.
A carta azul ficara pousada sobre a estante do hall de entrada onde os livros se eternizavam à espera de uma releitura.
O eterno caderno repousava, ainda aberto, sobre a cama revolta que, como sempre, partilhara com os gatos.
As mãos reocuparam-se-lhe na escrita de mais um poema.
Só na constância se pode mudar. A construção é sempre uma soma de constâncias… a própria mudança é apenas fruto de uma imensa e fluente constância, pensou. E sorriu enquanto as mãos se lhe continuavam a mover sobre o papel.