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poetaporkedeusker

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UM BLOG SOBRE SONETO CLÁSSICO

Da autoria de Maria João Brito de Sousa, sócia nº 88 da Associação Portuguesa de Poetas, Membro Efectivo da Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores - AVSPE -, Membro da Academia Virtual de Letras (AVL) , autora no Portal CEN, e membro da Associação Desenhando Sonhos, escrito num portátil gentilmente oferecido pelos seus leitores. ...porque os poemas nascem, alimentam-se, crescem, reproduzem-se e (por vezes...) não morrem.
31
Jan09

NAQUELE RETRATO

Maria João Brito de Sousa

Acordou mais cansada do que o habitual. Era uma sensação de peso que não conseguia entender e muito menos definir. O simples levantar, revelou-se-lhe uma manobra complexa e algo dolorosa. Estranhou e, incapaz de o  entender, registou e prosseguiu em direcção à cozinha.

Sentia. Sentia de uma forma que não a de todos os dias. Sentia-se, acima de tudo.

Já no corredor, olhou casualmente para o lado e parou tão abruptamente que o corpo acabou por lhe embater ruidosamente contra a mesinha de apoio sob o espelho com que acabava de encarar. A dor foi prontamente abafada pela surpresa. Não se reconheceu na mulher idosa e assustada que via na superfície polida.

 

…E morriam-lhe as mãos pelas curvas do rosto

Na surpresa nascida de quem se conhece

E descobre o sol-posto

Do então que amanhece...

 

Sorriu a custo, meneou a cabeça e levou as mãos aos cabelos brancos e já ralos que, poucas horas atrás, haviam sido a farta cabeleira negra que apanhara numa trança antes de se deitar. Como era possível? Esforçou a memória numa derradeira tentativa de não acreditar no que os olhos viam, mas os olhos continuavam a ver uma face feminina gasta e enrugada, moldada por décadas que haviam passado numa única noite de sono. Parecia-lhe ainda sentir no corpo as mãos do marido que na véspera a amara, rebolando os dois de gozo e juvenil alegria, na mesmíssima cama de que

acabava de se levantar envelhecida e fraca.

 

… E morriam-lhe as mãos pelos anos passados

Na certeza que nasce de quem já não sabe

Os caminhos errados

Do céu que lhe cabe...

 

Envelhecida e fraca, repetiu. Ela que ainda há pouco desabrochara nos braços do homem que amava e que saíra, com um breve adeus e um longo sorriso de plena satisfação, para o turno nocturno do hospital em que trabalhava.

E o cão? Porque não ladrava o cão? Porque não viera lamber-lhe as mãos na efusiva manifestação de carinho das manhãs de todos os dias. E as flores que no dia anterior amorosamente colocara na jarra, sobre a mesa de apoio, e que agora lhe apareciam reduzidas a um punhado de hastes negras e secas como varetas de guarda-chuvas. E ela. Ela e as ausências. Ela e as rugas, o peso, os olhos pequeninos afundados nas órbitas, o cabelo branco que rareava, a memória aparentemente incoerente, as flores negras. E as ausências.

 

 … E morriam-lhe as mãos em ausentes afagos

De corpos passados, de ternas memórias,

De sonhos velados,

Contados em histórias...

 

 Rumou, lenta e pesada, em direcção ao quarto, descansou por segundos contra o guarda-fatos que se erguia como um ombro amigo, mas sempre demasiado alto, e deitou a mão à gaveta da cómoda coberta de um pó espesso, cinzento, inútil. Abriu a gaveta onde guardara, como recordação algumas peças de roupa da recém-falecida avó -  seria? - e retirou um velho lenço que colocou sobre a cabeça. Dirigiu-se à janela, abriu-a com dificuldade, encostou-se ao peitoril, colocou uma mão sob o queixo e deixou que os olhos se lhe perdessem no ponto onde, diariamente, o marido dobrava a esquina e lhe aparecia ao longe, no campo de visão.

 

 

 E nasceu-lhe das mãos, em minutos, segundos,

Uma página em branco, uma noite, um momento,

Uma vida em dois mundos

Alheios ao tempo...

 

 Ali se lhe apagou a memória de ser e mergulhou no sorriso enigmático de quem sabe ter pregado uma partida ao Tempo. Ela e o Tempo. Ali, naquele retrato.

 

Maria João Brito de Sousa - 31.01.2009

 

 

 Ficcionado :) para http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/ 

 

 

 

 

 

 

30
Jan09

A PERFEITA OCUPAÇÃO DAS HORAS

Maria João Brito de Sousa

picasso-the-source-001.jpg

 

No corpo inacessível de um poema

Mora o ritmo, sereno ou agitado,

Que fala da virtude,  ou do pecado,

E faz com que escrevê-lo valha a pena.

 

Essa alma musical que assim me acena

A seduzir-me o corpo já cansado,

Virá trazer-me o verbo inesperado

Que me preenche e torna mais serena

 

E vai-se esse  vazio que então crescia

Mas fica-me o fruir do que se faz

Nas noites renovadas como auroras

 

Em que me torno amante da Poesia

E concebo o poema que me traz

Uma perfeita ocupação das horas...

 

 

Maria João Brito de Sousa - 30.01.2009 - 23.58h

 

 

Tela de Pablo Picasso

 

Imagem retirada da internet

29
Jan09

AUGUSTO!!! (ou DESSINCRONIZAÇÃO)

Maria João Brito de Sousa

Augusto, quão sereno e natural

Me deste essa notícia fulminante:

- Mudei-lhe a chavezinha! Num instante,

Na conta, volta tudo a estar nomal!

 

Augusto, tu nem sabes quanto mal

Já fizeste ao meu ego vacilante!

O Poema é, pr`a mim, um diamante,

Tábua de salvação, amor total!

 

Augusto, quão perdida me deixaste

Por essa decisão que então tomaste

E que abalou a minha identidade!

 

Sei que não foi por mal! És prestativo...

Eu é que já nem sei se sobrevivo

A tal demonstração de caridade!!!

 

Maria João Brito de Sousa -  29.01.2009

 

 

Imagem retirada da internet

 

NOTA - Este soneto humorístico "nasceu-me" e não resisto a publicá-lo... quero, no entanto, deixar bem claro que nenhuma má vontade me move ao publicar esta "brincadeira" e que entendo perfeitamente que este tipo de pequenas dessincronizações podem acontecer a qualquer um e não impedem que eu esteja muito grata a quem me acudiu num momento de aflição. Ninguém, senão eu mesma por evidente precipitação, teve culpa do lapso que fez com que eu ficasse, temporariamente, sem acesso ao poetaporkedeusker.

O meu muito obrigada ao Augusto, ao Pedro e ao Tiago.

 

26
Jan09

UM POST DIFERENTE... O POETA NO PRELO!

Maria João Brito de Sousa
poetaonline
Peço, desde já, desculpa a todos os que ainda não avisei e a todos os que, respondendo a comentários, acabei por avisar mais do que uma vez...
Não, não está "ainda" à venda, mas já está no prelo e já se aceitam encomendas. Aonde?
 
 
Se me sinto feliz?
Ah, sinto pois! Feliz, orgulhosa e grata a todos os que tornaram possível este meu sonho de ter um livro escrito por mim. Porque as árvores já eu plantei e os filhos já eu pus no mundo...
Não sei ainda quando haverá apresentação da obra, mas não podia deixar de partilhar convosco esta minha felicidade!
Obrigada!
 
 
AVISO - Hoje no http://premiosemedalhas.blogs.sapo.pt/  há um desafio "pecaminoso" à espera de alguns de vocês. Se quiserem e puderem, façam o favor de dar um pulinho até lá...
 
25
Jan09

A DOIS PALMOS DE MIM

Maria João Brito de Sousa

Vieira e Arpad 

A dois palmos de mim, o Infinito

Aonde o horizonte se desdobra!

É lá que surge o sonho e nasce a obra…

Além, nessa montanha de granito

 

Aonde vive aquilo em que acredito,

Onde a minha coragem se redobra

E a mais louca verdade não soçobra

Porque se prende àquilo que foi dito...

 

Se essoutro desalento `inda persiste

Porque o real impõe velhas fronteiras

Ao mundo que me quer aprisionar,

 

A dois palmos de mim já não existe

Esta prisão de abismos e barreiras

Nem muros que me possam limitar…

Painel de Maria Helena Vieira da Silva 

 

24
Jan09

POR UM SORRISO DE CÃO...

Maria João Brito de Sousa

 

No cômputo final da situação,

Tendo cumprido meia caminhada,

Quando desanimava, já cansada,

Galgando as pedras deste mesmo chão,

 

Reparo, de repente, neste cão.

Que meiga criatura, que engraçada!

O cãozito a olhar-me... eu, cativada,

Afaguei-lhe a cabeça com a mão...

 

Nasce o sorriso em mim e tudo muda!

Sem que houvesse qualquer humana ajuda

Tornou-se o meu caminho bem mais leve!

 

Que olhar tão terno, puro e cativante!

O caminho, que ainda era distante,

Tornou-se, num segundo, um salto breve...

 

 

Fotografia tirada (por mim) com o telemóvel

 

23
Jan09

O SEGREDO

Maria João Brito de Sousa

Sabia que teria de fazer aquela caminhada. O corpo recusava-lha, antecipando as dores, a vontade negava-se-lhe como se, repentinamente, quisesse tomar o controle de si. Mas impunha-se-lhe aquela caminhada e ela meteu pés à calçada apesar das pontadas incipientes, do frio e da chuvinha constante, irritante, teimosa.

 

No início caminhou sem maiores dificuldades do que a de sentir o corpo invadido pela teimosia da chuva que se lhe colava à roupa, num primeiro e insistente aviso. Depois foram as poucas forças que se foram gradualmente recusando a mover-lhe os passos e, logo a seguir, as dores que vieram coroar esta sinfonia de desconforto. Tornava-se-lhe o corpo pesado como uma árvore que, a cada momento, ganhasse raízes mais e mais fundas, que mais e mais profundamente a prendessem ao chão. Ah! E havia, ainda, o Segredo. O Segredo que constantemente bailava em torno dos poços de palavras - agora confusas - que lhe inundavam o corpo inteiro e lhe pediam para nascer. Não trouxera o caderninho de sonetos, mas não seria por isso… chovia demasiado para que o pudesse utilizar, de qualquer forma. Até o cheque que levava na carteira preta que trazia ao ombro, começava a perder o aspecto de coisa estéril, acabada de imprimir, deformando-se num rectângulo irregular, sob a humidade. Aconchegou ao corpo o pequeno saco negro, esperando salvar o bendito cheque daquela chuva que tudo ensopava, que começava a sentir na carne e que quase, quase a desesperava.

O cheque, - ao menos o cheque! - não poderia ficar inutilizado!

Afinal fora por ele que se metera ao caminho, apesar da chuva, das dores, do cansaço e do Segredo.

 

 

Agora eram os músculos que pareciam dormentes, entorpecidos. Nada lhe obedecia naquele corpo exausto! Fixou os olhos nas pedras da calçada e, num derradeiro e absurdo esforço, imaginou-lhes o auxílio. Observava-as enquanto caminhava. Quereria ser pedra. Quereria que as pedras com ela partilhassem a sua dureza. A angústia pareceu dissolver-se parcialmente. As palavras voltavam-lhe apesar do Segredo. Talvez exactamente por causa do Segredo.

 

Já não via as pedras nem sentia a chuva que a ensopava até aos ossos porque eram as palavras que, agora, nasciam, estranhamente negras sobre o fundo claro da calçada. Nasciam e cresciam continuando-se umas às outras, encadeadas, quase homogéneas como a ribeira zangada que corria, do lado direito daestrada que galgava a custo.

 

 Passou pela ribeira e as palavras continuaram como um outro rio. Não sabia como nasciam elas, não sabia como nascera o Segredo que ora se deixava vislumbrar com a mansidão das coisas benéficas, ora lhe surgia em lampejos de algo que quase a assustava e não sabia, por isso, definir.

 

Continuavam a fluir, em grafismos negros e distintamente traçados pelas mãos de ninguém e só o cansaço parecia, de quando em vez, sobrepor-se a elas. Não fugiam depois de surgirem. Ficavam. Permaneciam como se estivessem gravadas no espelho molhado da calçada, nos ossos que quase anestesiavam, no corpo que negava o desconforto da chuva.

Avançava agora ao ritmo dos grafismos que lhe iam nascendo, embora pontualmente cambaleasse, lhe parecesse que o chão-papel lhe fugia debaixo dos pés ou que o horizonte se lhe balançava na linha que os olhos podiam atingir.

Mais passos, mais letras. Um rio de letras, de palavras, de frases, de orações semi-conscientes. Um texto inteiro.

 

O Banco, ponto de destino, estava finalmente perto. Eram os últimos passos do último parágrafo.

A porta abriu-se automaticamente à sua aproximação e ela parou, indecisa, por segundos. Faltavam-lhe meia dúzia de letras que rapidamente se vieram juntar ao caudal daquela caminhada. Respirou fundo, retirou a bolsinha preta de sob o casaco ensopado e entrou. As pedras da calçada, a imagem da ribeira enfurecida, as raízes da árvore em que quase se transformara (ah, não fora o banco, não fora o cheque…) e o rio de palavras entraram com ela. Como uma multidão de pequenos mas irredutíveis raios de sol, entrou, também, o Segredo. A porta fechou-se. Automaticamente.

 

 

Maria João Brito de Sousa - 23.01.2009

 

"Caminhado" em direcção à http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/

 

 

Imagem retirada da internet

22
Jan09

A APARÊNCIA

Maria João Brito de Sousa

 

A APARÊNCIA

 

Sou, aparentemente, descuidada.

Não cuido do cabelo, visto mal,

Numa estranha tendência natural

Que me não preocupa mesmo nada...

 

Por dentro muda tudo! Empenhada,

Eu zelo pela alma! E é tão total

O zelo que dedico a obra tal

Que trago sempre a alma imaculada!

 

Não pensem que apesar desta aparência

Não cuido do meu duche da manhã!

Só um corpo bem limpo me merece!

 

Aqui assumo a minha incoerência:

Passo a vida na água, como a rã,

Porque nem tudo é o que parece...

 

 

Imagem retirada da internet 

 

20
Jan09

O FIO DE ESPARGUETE

Maria João Brito de Sousa

Rolinho de água pura e trigo rijo

A voltear no fundo da panela,

Numa dança irreal, mas muito bela,

Obedediente àquilo que lhe exijo...

 

Este fio de esparguete é dançarino

No último degrau duma  jornada;

Despede-se, dançando enquanto nada

A preparar seu último destino....

 

E baila enquanto ferve e vai rodando

Enquanto a água quente o vai moldando

E o vai levando ao ponto de alimento...

 

Parece que está vivo... e talvez `steja!?

Quem pode garantir que me não veja,

O esparguete que dança em fogo lento?

 

 

Maria João Brito de Sousa - 20.01.2009 - 22.50h

 

Este soneto sofreu uma ligeira alteração em relação ao original, feito alguns minutos atrás. O final ideal, em termos de ritmo, é o que agora publico.

 

 

20
Jan09

A FACTOTUM

Maria João Brito de Sousa

 

Eu, que já fiz de tudo e mais um pouco,

Mantenho este princípio que é inato:

Nunca vender, nem caro nem barato,

O meu Ego profundo, o tal que é louco...

 

Não quero mudar nunca nem tampouco

Aceitando, do mundo, o desacato,

Viver mais caladinha do que um rato

Que more num buraco do reboco...

 

Pintora, quando Deus assim quiser,

Hei-de dizê-lo ao mundo, a toda a gente,

Venha lá o azar ou venha a sorte...

 

Poeta porque Deus assim o quer,

Não há outro caminho que me tente!

Eu hei-de ser poeta até à morte!

 

 A  B.O.

 

19
Jan09

NESSA CASA

Maria João Brito de Sousa

 

Nessa casa

Os dias eram maiores...

As coisas eram, invariavelmente, vivas

E os vivos eram, pontualmente coisas.

Os medos e as revistas da novela

Arrumavam-se, sempre,

No quarto da criada

E as patologias

Dentro dos livros

Havia sempre livros

Nunca demasiados, contudo,

E as paredes

Eram cúmplices

Dos meus infantis murais.

A enorme janela da sala

A poente

Convidava

A vespertinos arroubos

Da criação

Que seria, sempre,

A Senhora da casa.

Depois havia mais casas

Parecidas, mas muito diferentes

A seguir era o Tejo

Aonde encontra o mar.

O Sol

Punha-se, sempre,

A nascente dessa casa,

Onde nasciam os abrunheiros.

As memórias

Tomavam chá connosco

E jogavam às cartas

Nessa casa.

Para além dela

O mundo era diferente...

No fundo

O mundo era apenas

Uma consequência dessa casa

Nessa casa.

Nessa casa escrevi,

Pintei e desenhei

Como hoje desenho,

Pinto e escrevo

Sempre que reinvento essa casa

Nesta casa onde sou

Consequência de mim

Nessa casa.

 

 

 

Poema dedicado à Ligeirinha

 

Imagem retirada da internet

 

 

A todos os amigos que hoje tiverem a bondade de me visitar, gostaria de pedir que não saíssem sem passar pelo jardinzinho interior   http://mumbles.blogs.sapo.pt/

 

Obrigada!

17
Jan09

A CARTA MANUSCRITA

Maria João Brito de Sousa

Levantou-se e espreguiçou-se tão demoradamente quanto os latidos do cão lho permitiram. Não teve tempo de passar pelo W.C. Não teve tempo para mais nada. Abriu a porta, segurou o molho de chaves e desceu com o animal que mostrava, agora, a sua impaciência através de estridentes e consecutivos ganidos.

A porta da rua parecia mais pesada do que nunca. Teve de empregar toda a sua força para conseguir abri-la e ficou a olhar o pequeno animal que, entretanto, saíra em disparada.

Faltavam os outros todos, pensou. As manhãs sucediam-se-lhe num ritmo constante mas alucinado… demasiado para os estragos que o tempo conseguira já provocar no seu corpo, admitiu. Ao longe o cão perdera-se entre os buxos que revestiam os canteiros das palmeiras.

Lentamente, como quem levanta o peso insuportável de uma mão que vai em busca da última e inevitável conta, abriu a caixa de correio. Nada de contas, desta vez. Pequeno, ocupando metade do espaço habitual e bem conhecido das cartas do gás e da electricidade, estava um envelope encerrado na mudez intrigante das coisas inesperadas. A mão aventurou-se-lhe ao toque, trouxe-lho até diante dos olhos. Nenhuma marca impressa, nenhum selo, nenhum carimbo dos CTT. Apenas o seu nome escrito numa caligrafia que lhe era perfeitamente alheia.

Baixou sobre o nariz os óculos que trazia sobre a cabeça, segurando a rebeldia dos cabelos soltos, e abriu a missiva com um gesto brusco de profunda curiosidade. Uma folha

apenas. Sobre o azul suave do papel, escritas a tinta preta, em letras bem legíveis, estavam as seguintes palavras;

MUDANÇA, s. f.

acto ou efeito de mudar. Passagem ou transporte de um lugar para outro; “mudança de residência”. Variação, inconstância; “a mudança do tempo”.

 

Era tudo. Nem assinatura, nem remetente.

Sorriu e deixou que os olhos se lhe perdessem, de novo, nos traços negros sobre o azuláceo do papel. Ali ficou,

perdida em reflexões, até o cachorro voltar, manco como sempre.  Sabia que jamais descobriria a origem daquela carta. Não sabia porquê, mas sabia.

 Subiram os dois os quatro pisos que levavam à casa de sempre, onde ambos encontrariam os eternos amigos dos quais só a morte os poderia separar e ela dirigiu-se, finalmente, ao W.C. Olhou-se no pequeno espelho sobre o lavatório e viu-se mudada, como todas as coisas. Mais uns cabelos brancos, o despontar de dois vincos que desciam do nariz ao queixo. Mudava. Sem dúvida mudava. Com excepção do espírito que se lhe mantinha constante na eterna busca por um mundo melhor.

A carta azul ficara pousada sobre a estante do hall de entrada onde os livros se eternizavam à espera de uma releitura.

O eterno caderno repousava, ainda aberto, sobre a cama revolta que, como sempre, partilhara com os gatos.

As mãos reocuparam-se-lhe na escrita de mais um poema.

Só na constância se pode mudar. A construção é sempre uma soma de constâncias… a própria mudança é apenas fruto de uma imensa e fluente constância, pensou. E sorriu enquanto as mãos se lhe continuavam a mover sobre o papel.

 

 

 

 

Imagem retirada da internet

 

Texto semi-ficcionado para a http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/

 

 

 

 

 

 

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