Maria João Brito de Sousa
Nestes quartos-de-luz da lua-cheia
Desfaço-me e, desfeita, eu pago o preço
De ter virado a vida do avesso
Cozinhando poemas para a ceia...
Divido-me e, assim, fico só meia...
Mas mesmo dividida eu não me esqueço
Que devo ser melhor que o que pareço
E nasce-me outra luz: a nova ideia!
Criança tonta, bato palmas, canto,
Cada ideia me traz um novo encanto,
Cada encanto me espanta mais e mais!
Criança tonta em louca correria
Pelos quartos da lua... que alegria
A de abraçar um mundo de ideais!
Imagem retirada da internet
publicado às 15:18
Maria João Brito de Sousa
ÁGUAS PROFUNDAS
*
Nas águas mais profundas, traiçoeiras,
Que me inundam de mágoas o viver
Eu, que tão pouco sei, fico a saber
Das causas mais remotas e primeiras.
*
Aquilo que aprendi não tem fronteiras,
Vem da nascente onde começa o Ser,
Não acaba depois de se morrer
E não conhece atrasos nem canseiras:
*
É um deslumbramento vertical
A engendrar um mar dentro de mim
Que me enche, me extravasa e me conduz
*
Ao fundo do meu Ego, esse local
Onde reinicio este meu fim
Pra de novo acender a minha luz.
*
Maria João Brito de Sousa - Novembro, 2011
Imagem - FEMME ASSISE - P. Picasso
publicado às 14:48
Maria João Brito de Sousa
Torço o pé,
Estrago o sapato
Nestes passos que vou dando...
Piso o rabo do meu gato,
Fica desfeito o encanto!
Porque, afinal,
Os meus passos
São sempre passos demais,
Ao pisar o rabo ao gato
Torço o pé,
Estrago o sapato,
Fica o percurso estragado...
Por hoje não corro mais!
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publicado às 22:41
Maria João Brito de Sousa
Se passas e não olhas nem reparas
No mundo que te pede o teu melhor,
Se dás indiferença em vez de amor
E se, passando, não ouves nem paras,
Se passas por passar, sem entender
Que não é por acaso que aqui estás,
Se só queres receber e nada dás,
Tens muito, muito ainda, que aprender.
Só dando tu recebes de verdade;
É no sonho que a nossa identidade
Revela a sua humana condição
Só dando-te terás, inteiramente,
Decifrado o enigma da semente
Que este Universo pôs na tua mão.
Maria João Brito de Sousa - 27.11.2008
"Operários" , Tarcila do Amararal, 1933
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publicado às 14:56
Maria João Brito de Sousa
Mar de mim, eu sou quem se partiu,
Quem se tentou colar mas se esqueceu
De viver uma vida que perdeu
Na chama que, inteirinha, a consumiu.
Aquela que a si mesma se impediu
De ser tudo o que foi quando nasceu,
A que, escondida, nunca mereceu
O caminho do Ser a que fugiu.
Vaivém das obras nuas dos meus dedos,
Das minhas disfunções e dos meus medos
E, depois, a certeza de ter visto
Daquilo que se passa e já passou
O caco do estilhaço que sobrou...
Eu já nem sei se vivo ou se desisto!
Maria João Brito de Sousa - 25.11.2008
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publicado às 13:19
Maria João Brito de Sousa
Porque me fica a boca assim amarga
E os olhos, embaçados, se me cerram
Se saio desta casa onde me entregam
Poemas e animais? A minha carga.
Porque será que me não sei mover
Senão neste meu espaço sem fronteiras?
Porque razão me sinto uma estrangeira
Onde possa estar longe de só ser?
E, no entanto, aonde os outros vão,
Onde as coisas se fazem é que são
Os espaços benditos pelo mundo.
E eu, mais uma vez, dobro a vontade,
Me curvo a essa estranha realidade
E me desvio da luz de que me inundo...
UM ESPAÇO AO PÉ DO MEU...
E faço e raspo e limpo e vejo e esfrego,
Depois volto a limpar e a esfregar
Neste vaivém do eterno-começar
Ao qual dedico a vida a que me entrego...
Já mal me sobra tempo pr`ó que escrevo
E quase nenhum tempo pr`a pensar!
Se tempo `inda me resta pr`a sonhar
Nenhum me sobra já pr`a ter sossego...
E escovo e subo e desço e nunca paro
Neste cuidar do muito que me é caro
E nem sei se parando `inda sou eu...
Nem mesmo enquanto durmo eu fico em paz!
Quase sempre um dos "meus" é bem capaz
De lutar por um espaço ao pé do meu...
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publicado às 08:30
Maria João Brito de Sousa
Que estranha, alucinada projecção
Do ego de outro alguém morando em mim...
E que me importa, se me sinto assim
Eu mesma em projectada oposição?
Acordo. Foi um sonho. A sensação
De ter alguém comigo e estar assim,
Capaz de me calar e dizer: - Sim...
Quando eu mesma teria dito: - Não!
Um sonho... e, no entanto, eu aprendi,
Pensei e meditei (ou reflecti?)
Que tenho ainda coisas por fazer...
É a escola do sonho a funcionar,
A mostrar-me o caminho, a ensinar
Que o melhor desta vida é aprender...
"Sinfonia Sol-Lua com Remendo Verde"
Maria João Brito de Sousa, 2006
publicado às 10:00
Maria João Brito de Sousa
Quem sou? Que faço aqui? De aonde vim?
São estas as perguntas que me faço,
Tão banais que reflectem o cansaço
Da rotina geral que existe em mim...
Banais e, no entanto, eu nunca sei
O que hei-de responder-lhes! Quem sou eu?
Por que razão cá estou? Quem me prendeu
Ao mundo ficcional a que me dei?
E dei-me? Dei-me mesmo, ou quero dar-me?
E as perguntas em mim, a perguntar-me
Quanto tempo me resta de caminho...
- Pergunta ao espelho! - Alguém me sugeriu...
Foi então que o meu espelho se partiu
E me deixou a alma em desalinho...
"Puberdade" - Maria João Brito de Sousa, 1999
publicado às 15:00
Maria João Brito de Sousa
Se não fosse outro alguém, seria eu
A despertar a causa de outro alguém,
Mas como não fui eu... não foi ninguém
E a causa calou-se e pereceu...
Quantos "alguéns", pensando ser inútil
Abraçar um causa, pois que tantos
Pensam que ela não traz esses encantos
Que movem sua vida, porque fútil?
Não foi ninguém. Ninguém quis compromisso
Com a causa e a causa, apesar disso,
Acabou por nascer, foi abraçada...
Alguém se levantou, alguém clamou
- Eu creio nessa causa! À causa eu dou
O sonho, a vida, a morte... o tudo e o nada!
"Children`s Crusade" , Paula Rego
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publicado às 12:17
Maria João Brito de Sousa
Embora nós não fossemos ninguém,
Embora nenhum mundo nos quisesse,
Embora nem um de entre nós tivesse
O domínio do Mal, a luz do Bem,
Embora neutros, homens como os outros,
Passíveis de fraquezas e paixões,
Embora uns tantos mais entre milhões,
Lúcidos quanto baste, embora loucos...
Embora apenas meio construídos
Na busca inabalável dos sentidos
Que nos prendem aqui e nos comandam,
Embora estranhos barros imperfeitos
Nós somos - quem diria? - esses eleitos
Que insistem, que não vergam nem debandam.
Tela de Vincent Van Gogh
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publicado às 12:07
Maria João Brito de Sousa
Mar dos luares de prata sobre a areia,
Dos búzios e das conchas nacaradas,
Das algas sob os pés, em caminhadas
Que vão da baixa-mar à maré cheia...
Mar de ouro branco e pérolas de luz
Como os grãos das areias que em ti piso...
Uma vez mais me perco no sorriso
Com que a tua brancura me seduz...
Eu perco-me e perdida encontro em ti
A criança que em mim nunca perdi
No percorrer da areia intemporal
E dissolvo-me em ti e sou tão tua
Quanto a brancura dessa branca lua
Como se, em vez de mim, fosse o teu sal...
Maria João Brito de Sousa - 20.11.2008 - 13.54h
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publicado às 13:54
Maria João Brito de Sousa
Depois de quebrado o espelho
Fica a dúvida no ar...
Tanto espelho! Quanto espelho
Fica ainda por quebrar?
Mais um espelho que se quebra,
Mais um passo... e nunca acaba!
A vida é feita de espelhos.
Espelhos novos, cacos velhos
Quando uma vida se encerra...
Quando a luz se espelha em nós,
Quando, à hora da partida,
Nos sentimos menos sós,
Quando o espelho, já quebrado,
Separa o corpo da alma
E, depois, medo e pecado
Dão lugar a outra calma,
Já o espelho se quebrou
Já os cacos se esqueceram
Reflectindo o que ficou
Das coisas que nos prenderam...
Quantos cacos por aí
E nós sem nos darmos conta...
Quanto espelho eu já parti,
Quanta fachada de montra?
Quebrado o último espelho
Fica a dúvida a pairar...
Tanto espelho! Quanto espelho
Fica ainda por quebrar?
"Vida" - Pablo Picasso, 1903
Nota - Esta alegoria foi concebida como um grupo simbólico de significado aberto e trata-se de uma homenagem ao seu amigo Casagemas - o personagem masculino seminú - que, no ano anterior se suicidara por amor, em Paris.
In "Grandes Pintores do Século XX", Edições Globus, Barcelona, 1994
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Ainda "quebrando o espelho" no http://velucia.blogs.sapo.pt/
publicado às 14:32