Da autoria de Maria João Brito de Sousa, sócia nº 88 da Associação Portuguesa de Poetas, Membro Efectivo da Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores - AVSPE -, Membro da Academia Virtual de Letras (AVL) , autora no Portal CEN, e membro da Associação Desenhando Sonhos, escrito num portátil gentilmente oferecido pelos seus leitores.
...porque os poemas nascem, alimentam-se, crescem, reproduzem-se e (por vezes...) não morrem.
Chamo-me Kico! O meu primeiro nome ninguém o sabe e nem já eu me lembro...
Corria o ano da graça de 2001 quando me abandonaram na autoestrada que liga Cascais a Lisboa. Assustei-me deveras! Os carros passavam por ali a uma velocidade aterradora e eu bem tentava correr mais do que eles... um deles acabou por me atingir e fiquei estendido no asfalto, cheio de dores e impossibilitado de andar. Passou-se muito tempo, mas um desses carros acabou por parar e saiu um jovem casal que pegou em mim e me levou a um veterinário.
- Fractura da coluna. Nunca mais anda!
- Mas nós não podemos ficar com um cão paralítico. Faça favor de abater!
- Os senhores é que sabem...
Mas não sabiam nada! Nesse consultório trabalhava- e trabalha -a irmã da minha dona e embora não estivesse, também ela, muito disposta a carregar o fardo de um animal paralítico, sabia que a irmã não conseguiria recusar...
A minha dona estava, então, a tomar conta de uma idosa que morava em Paço de Arcos, perto do consultório.
- Olá. Vem cá num instantinho, que eu quero mostrar-te uma coisa...
- Mostrar-me o quê? Estou a trabalhar!
- Não digo... mas vem que vais gostar!
E lá vem a palerma da minha dona (que ainda o não era...) sem saber o que a esperava...
- Olha, o teu sobrinho chama-lhe "Quasimodo". Vai ser abatido esta tarde e eu não consigo dá-lo a ninguém...
Sempre me gabaram a doçura do olhar... e eu gostei daquela humana logo à primeira vista. Foi tiro e queda. Paixão "assolapada". À noite já eu estava em sua casa a levar injecções de vitamina B12 e a refastelar-me com latinhas da Pedigree Pall.
Claro que estava incontinente e não podia andar, mas tanto eu como ela somos sobreviventes por natureza e não nos rendemos facilmente às adversidades da vida.
Três meses depois já andava e corria. Muito coxo, pata aqui, pata ali, o que me valeu das pessoas do café mais próximo, as alcunhas de "saltitão", "coxinho", "dançarino",etc. Mas todos gostam de mim porque sou, de natureza, meigo como poucos e, embora sendo muito pequeno, sou um acérrimo defensor da minha dona e da minha "irmã" Lupa.
Hoje vim aqui falar-vos dos meus irmãos que não tiveram a sorte que eu tive. Porque estas coisas de solidariedade também são importantes para nós, que nos movemos sobre quatro patas, mas não deixamos, como vós, de SENTIR. Porque nós sentimos mesmo! Dor, felicidade, orgulho, tristeza, amizade e abandono. Somos
produto de uma biologia tão perfeita como a vossa e gostaríamos de fazer exercer os nossos (poucos) direitos. A minha dona já vos falou da ANIMAL. É uma ONG que dá voz àqueles que, como eu, sofreram na pele a crueldade de alguns humanos.
Hoje a ANIMAL manifesta-se às 14h, na Lapa, em Lisboa, contra as atrocidades cometidas sobre os meus irmãos na China. Amanhã será em frente ao Campo-Pequeno, pela abolição das touradas. Porque nenhum de nós pode ficar indiferente ao apelo de quem, como eu, tem tanta ternura no olhar...
Todos nós sabemos que "navegar é preciso". Desde muito pequenina estive consciente disso. É uma dessas coisas que se "sentem" assim que começa a despontar em nós a magia do raciocínio abstracto-conceptual. Por isso aprendi a navegar por dentro de mim, por dentro das palavras e da sua melodia, por dentro dos outros animais (humanos ou não humanos).
Todo o bom navegador, por experiente que seja, encontra no seu percurso escolhos e baixios. Eu, por exemplo, não sei navegar no "mar dos negócios". Nem sequer alguma vez me aproximei deles... este sexto sentido de "marinheiro-de-sonhos" pedia-me águas mais profundas e menos tumultuosas...
Também eu, como o meu avô António de Sousa, percorro o mar numa "Jangada de Eterno" e as "alfândegas do mundo" só aceitam grandes navios. Por isso me mantive sempre a navegar longe dos portos, onde são inevitáveis as transacções comerciais...
Agora, que os cabelos brancos começaram a chegar, senti que corria o risco de, (como infelizmente veio a acontecer com António de Sousa) partir sem que o meu"espólio de versos" me sobrevivesse.
Apareceu-me, em plena navegação, uma Editora interessada nos meus poemas. Quem diria? Um "Tecto de Nuvens" em pleno oceano!
Falaram-me em patrocínios. Como?
Coisa pouca - responde-me a voz do outro "timoneiro" - 50 euritos aqui, 50 euritos ali... e as Empresas são grandemente publicitadas na contra-capa!
Contemplo o ponto onde o mar encontra o Tejo. Tem de ser! - Responde-me o estuário da minha infância...
Acendam-me um "farol" porque vou mesmo "aportar"!
Algum de vocês conhece uma entidade que patrocine uma sonetista que sabe"navegar"?
É tempo de pôr os pés em Terra!
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Maria João Brito de Sousa
Nota de Reedição - Custou-me a "engolir", mas fui eu mesma quem escreveu isto!...
Quero agradecer publicamente aos meus amigos Miragem, Yodleri e Catespero por tanto terem contribuído para a criação do blog http://antoniodesousa.blogs.sapo.pt/
Esta é uma homenagem que há muito devo a esse Poeta e que não havia ainda sido prestada por falta de capital para a publicação do livro "O Regresso do Encantado - Poemas a Quatro Mãos e Um Sonho".
Não tenho qualquer dúvida sobre os misteriosos desígnios do Grande Arquitecto.